tag:blogger.com,1999:blog-85780732024-03-14T12:59:23.939-03:00Pedro Alexandre SanchesPedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comBlogger527125tag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-91829524218971037452011-08-31T11:43:00.002-03:002011-08-31T11:45:30.905-03:00FAROFAFÁComo sabe todo mundo que entrou aqui em algum momento nos últimos sete meses, este blog está desativado.
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<br />Nosso endereço e local de encontro agora é <a href="http://www.farofafa.com.br">Farofafá</a>, www.farofafa.com.br, FAROFAFÁ.
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<br />Seja bem-vindo, entre sem bater!
<br />Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-9753303205694879462011-01-14T12:45:00.001-02:002011-01-14T12:46:45.215-02:00chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valorVamos lá, que a turma do Twitter inspirou o @pdralex a pensar sobre A Grande Família. Assim falou Carlinhos Brown, neste trecho da entrevista exteeeeeeensa publicada pelo iG (<a href="http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/carlinhos+brown+apresenta+seus+adobros/n1237864420092.html" target="_blank">aqui</a>, <a href="http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/sou+nganga+abicum+obicura+filho+de+santo+antonio/n1237864438386.html" target="_blank">aqui</a> e <a href="http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/o+que+a+gente+quer+e+uma+franchising+de+acaraje/n1237864460513.html" target="_blank">aqui</a>):<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Quem era italiano na sua família? Branco?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Meu avô , Bertolino Gonçalves, pai da minha mãe, Madalena. Branco de origem italiana-libanesa. Aos 2 anos de idade o pai faleceu, e um dos tios doou pra ele fazendas de laranjas em Cruz das Almas, ali no Recôncavo, perto de Caetano, Santo Amaro etc. etc. Ele sempre falava: “Sumiram com o baú”. Perdeu o interesse total por riqueza. Foi acudido por um grande empreendedor da Bahia, um homem com visões sociais junto aos Ahmed, aos Amado. Foi o que criou o Mercado do Ouro, o lugar onde hoje estou tentando organizar o Museu do Ritmo. <br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Esse Amado é o mesmo de Jorge Amado?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Não, é a família dos Ahmed, que viraram Amado, árabes. Meu avô passou a cuidar da Barra, onde eu faço carnaval. Não quis mais ficar lá, conheceu essa mulher de Irará, terra de Tom Zé, que é minha avó Damiana Costa Santos. <span style="font-weight:bold;">O pessoal falava que era Costa Santos Valente, porque tem parentesco com Assis Valente</span> (<span style="font-style:italic;">autor de marchinhas carnavalescas lançadas por Carmen Miranda</span>). Era negra, mas meu avô dizia: “Não é negra, não, é Cabo Verde. Não pelo lugar, mas porque Cabo Verde está muito associado a quem tem cabelo liso. Ela tinha cara de nigeriana, ou angolana, do narizão, do olho puxado. Mas não tinha o cabelo duro, era mais ondulado, fino. Eles se conheceram e foram morar no bairro do Candeal. Tiveram duas filhas, Madalena e Alice, que é minha tia, deficiente visual.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Madalena é Magalenha?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Ah, mas pode ter certeza que tá próximo. Magalenha é a maga que sabe botar fogo na lenha. É ela, minha mãe. Madalena, aos 14 anos, conheceu Renato Teixeira de Freitas, meu pai. E isso me botou numa história de bastardia que até hoje busco compreensão. Renato Teixeira de Freitas já vinha desse histórico bastardo dos Teixeira de Freitas na Bahia. Uma das primeiras coisas que me lembro é que nego dizia a minha mãe: “Mas você, de família tão rica, batendo nessa barrela”. Minha mãe era lavadeira, eu sempre ouvia esse papo e não entendia. Fiquei afoito quando descobri que meu bisavô paterno era um dos maiores juristas do país. Ia aos Barris levar roupa e dizia, insistentemente: “Quero falar com seu João, ele é meu bisavô”. “Vá, menino, sai daqui”. Aí eu começava a conversar com a estátua dele, que ficava do lado de fora, depois jogaram lá pra dentro. E tinha o lado português de minha avó Gertrudes, que foi casada com Renato Teixeira de Freitas.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Seu pai é branco?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> De origem portuguesa, mas não é tão branco assim. Vamos dizer cigano, libanês. Salvador é a cidade mais muçulmana do Brasil. O terreiro mistura muito com a linguagem muçulmana.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> O que não entrou na sua descrição foi o lado indígena, não tem também?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Tem os índios, tem. Tem minha avó Damiana. Essa coisa da preta com cabelo liso eu achava que era um pouco a coisa do índio. Hoje o alto magistrado quer condecorar alguém da família e me convidou. Quando falo desse assunto, meu pai foge, não quer saber, “não, essa história não, isso é passado”. Teve uma ruptura. Eu, se fizesse um livro, gostaria de chamar Bastardia, porque é totalmente, uma história de escravidão, do bastardo. Sempre me tive como serviçal, mas serviçal de uma dinastia, não de pessoas à-toa. Nunca me vi como uma pessoa à-toa, de história dolorosa. Não me vejo chorando no Faustão ou no Gugu, “passou fome?”, “passei”, “e agora?”, “tenho um jatinho” (ri). <br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Na sua família então há passado de riqueza dos dois lados.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Exatamente. Não existe mal-nascer, nem bem-nascer. Existem situações sociais que, se forem reparadas na essência, a gente vai sempre construir uma sociedade melhor. Eu não sou diferente do Marcola ou do Beira-Mar. A diferença é que eu estou do lado de fora. Eles podem ser o que for, mas são reconhecidos como líderes, ilegais, mas são. O que eu não me conformo é que eu não sei quem de nós três está certo. Se tenho tentado por um lado que é visto como a legalidade entre aspas, onde estão as chances? Essas chances foram estacionadas ou sequestradas pra que situação? A sociedade brasileira quer, mas ao mesmo tempo tem medo de perder o cabide. Tem um pensamento assim: se nós tivermos uma sociedade de baixo poder aquisitivo escolarizada, educada, quem vai cozinhar pra mim?, quem vai ser a babá? Lá fora você não acha babá, babá lá é baby-sitter e custa 5 mil dólares. Aqui muitas vezes nego dá a comida pra pessoa viver. Sabe o que a gente quer? Uma franchising importante de acarajé pra concorrer com McDonald’s. Como os italianos conseguiram espalhar a pizza no mundo inteiro e a gente tem a camada comida baiana que o mundo inteiro gosta e a gente não consegue estender? É uma riqueza que a gente tem. Dia 2 de fevereiro, todos os filhos de Iemanjá vão agradecer no mar. O cara pega a câmera, a televisão, “é dia de Iemanjá”, “os pobres”, “os negros”… Filósofo e historiador vai, suga, vira um livro de fotografia. E a gente não vê nada, continua ali. O que nós estamos pedindo é que nos deem a possibilidade de reescrever a nossa história por nós mesmos. Isso não vai instalar nenhum separatismo, ao contrário, vai enriquecer o caldo cultural do Brasil, do mesmo jeito que nós, negros, afrodescendentes, somos exímios consumidores de pizza. Não me queixo em sair daqui, mas não saí porque quis. Saio porque não estava achando trabalho, e continuo não achando. Tenho consciência de que tenho carisma, mas é também um tipo de personagem que, às vezes penso, por que é tão incomodativo, o que incomoda tanto? É o fato de ser rápido na percussão? <br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Não é racismo? <br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Então talvez esse seja o desafio. E a gente vai vencer isso dentro da revolução pela doçura. Quando boto aquele cocar o pessoal diz: “Cocar de índio”. É uma das piores críticas possíveis. Aquele cocar não é de índio, aquele cocar é meu. Fui chamado para usar por um candomblé de caboclo, pelos índios. Fizeram um primeiro, e disseram: “Esse é seu, mas você vai descobrir o seu cocar”. E eu descobri, e fiz um cocar que não tem no histórico do índio brasileiro. Afasta-se o negro, o índio, o japonês, e eles terminam buscando uma identidade que encontram na internet, no discurso de um país que ainda não se curou de uma guerra ou de um problema étnico interno. O cara começa ouvir tal banda, vai pregando aquilo no ouvido da pessoa. Há que compreender o poder da música, você pode não entender a língua, mas os sentimentos todos estarão lá. Por que todo mundo tem medo de ver um careca tatuado e vestido de preto? Skinhead, em inglês, cabelo cortado, não é isso? Mas eles começaram a ganhar fama de violentos porque foram pessoas também muito machucadas na vida. Talvez o que nós precisamos ver é que as mágoas são águas más, ou más águas.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Isso é um verso de música?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Não, tô falando assim agora. Não sei, eu falei aí…<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Isso é letra de música.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> E água só precisa ser limpa, e tem um processo natural de purificação.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Menos a do rio Tietê…<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Menos a do rio Tietê (ri). Mas é possível, está muito mais no cuidado. São Paulo deu um exemplo de sociedade civil organizada, parecia Antônio Conselheiro, Zapata ou Padre Cícero. Foi aquele prédio que era da Camargo Corrêa, uma estrutura e organização que você não encontra nos prédios de qualquer pessoa formada por administração. É a mulher que conquistou emprego, mas foi posta pra rua, tinha que cuidar do filho que estava na rua e não podia trabalhar. O que aquela criança vai crescer? Um dia ele vai assaltar a Camargo Corrêa inteira, com todo o respeito aos Camargo.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> O skinhead só é violento por vingança?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">CB -</span> Exatamente, os roqueiros são figuras doces. Que motor educacional nós estamos querendo promover? É o pobre que não sabe ler ou uma classe dominante que se mal-educou? A paz não virá do sangue. Não virá, não virá.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-65256270272117948752011-01-06T12:39:00.000-02:002011-01-06T12:39:41.179-02:00quem parte leva a saudade de alguém que fica chorando de dor...Dos nossos amores, famílias, amigos, empregos etc., sabemos que despedida é igual a fim, que fim é igual a tristeza, tristeza é igual a lágrima, lágrima é igual a sofrimento, sofrimento é igual a perda e perda é igual a fim.<br /><br />Pela primeira vez na história pública deste país (ou no mínimo desde que me conheço por gente), temos agora de aprender a elaborar uma despedida alegre.<br /><br />Lula (nosso amor, nossa família, nosso pai, nosso chapa, nosso patrão) foi embora. E este, pasmemos!, é um acontecimento mais feliz do que triste, sofrido, melodramático etc. É lacrimoso, mas não exatamente por conta de perda, dano, briga ou ruptura.<br /><br />É uma perda que não é uma perda que não é um fim que (não) é sofrimento que é lágrima que (não) é tristeza que (não) é alegria que (não) é um final (in)feliz.<br /><br />A gente, queridas brasileiros e queridos brasileiras, está amadurecendo mil anos nesta virada de 2010 para 2011. Dói reconhecer, mas nunca fomos tão felizes (na história deste país).Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-35127548763419744882011-01-04T17:21:00.001-02:002011-01-04T17:27:36.420-02:00sair nu em capa de revistaPra quem ainda não quis entender: a posse de uma mulher na presidência do Brasil melhora, valoriza e emancipa não apenas as mulheres brasileiras, mas toda a sociedade brasileira, queridas brasileiras e queridos brasileiros.<br /><br />A emancipação das mulheres brasileiras melhora os homens brasileiros.<br /><br />A emancipação feminina É a emancipação masculina.<br /><br />Se vocês, mulheres, estiverem beeeeeem emancipadas, quem sabe nós, homens, possamos confessar que, sim, também achamos o sexo chato, burocrático e obrigatório de vez em quando. Que, sim, por vezes também temos de disfarçar orgasmos (e que, não, ejaculações não são necessariamente sinônimos de orgasmos). Tipo assim.<br /><br />Quem sabe um dia, com o apoio de vocês, mulheres, nós, homens, tomamos coragem e dizemos umas coisas dessas... Ops, escapou, eu já disse?...<br /><br />Acho que disse, ai que medo, e este é apenas um (re)começo. Nós, homens, ainda podemos dizer (e fazer) uma porção de coisas. Mas (mas-ismo?) vocês, mulheres, vão ter que querer nos ouvir (diz que vocês gostam de escutar, é vero mesmo?). <br /><br />Ou, quer saber?, mesmo que vocês não queiram escutar, nós queremos falar (queremos?). Há muito tempo eu vivi calado, mas agora resolvi falar. Não vou ficar (calado), não, não, não, não, não!Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-85250425794253736872011-01-03T23:34:00.000-02:002011-01-03T23:34:09.650-02:00pegar alguém pulando o muroSabe qual foi o trecho do discurso de Dilma Vana em que não acreditei, por mais que ela o repetisse (e ela repetiu, oxe, como repetiu)? Foi aquele trecho sobre não guardar ressentimentos ou rancores.<br /><br />Com sua licença, sra. presidenta, eu não acredito que exista uma pessoa na face do planeta Terra (planeta Água, planeta Mágoa, planeta Mágua - alô, sr. Carlinhos Brown!) que não acumule ao longo da vida rancores, ressentimentos, securas, mágoas, águas e máguas.<br /><br />Prefiro ficar com minha amiga Madeleine (mãe da gata Evita), para quem esse trecho do discurso da Vana é um dardinho envenenadinho endereçado com mira fina aos alvos (humanos) de seus ressentimentos e rancores.<br /><br />Mas a gente sabe: a Vana saberá, como Silva soube, fermentar, destilar, depurar, TRANSformar e recompor seus re-sentimentos. Pois os ressentimentos de Luiz Inácio recolheram mesmo quantos milhões de almas da miséria absoluta (hein, Soninha?, #medo #coincidência #rancor #valetudo)? Como já compuseram Alice Ruiz e Itamar Assumpção, a cada milágrimas sai um milagre (e mil nem são tantas assim, em se tratando de lágrimas).<br /><br />E tu, querida brasileira, querido brasileiro, já fez limonada com seus rancores hoje?Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-88847958337562818442011-01-03T12:39:00.001-02:002011-01-03T12:39:54.709-02:00bionicar o corpo inteiroPara quem teve a cara-de-pau de retrucar o imenso simbolismo guardado na continência batida pelos militares para Dilma Rousseff: se as Forças Armadas de hoje fossem 100% diferentes das Forças Armadas de 1964, 1968 ou 1974, elas (el"a"s, as armas, as frágeis-forças) já teriam pedido desculpas desassombradas pelo que fizeram em 1980, em 1975, em 1974, em 1968, em 1964...<br /><br />Do mesmo modo, já teriam pedido desculpas os banqueiros, donos de jornais e redes de TV, industriais e outros presidentes de instituições "respeitáveis" que guiaram a (gigantesca) parte civil da ditaDURA civil-militar brasileira de 1964-1984.<br /><br />Há muitos esqueletos ainda escondidos em nossos armários, nem vem que não tem ventriloquar papagaísmos-de-pirata do globismo ditabrando (im)popular brasileiro.<br /><br />Mantra para para 2011: pensa com a tua própria cabeça, faz com teus próprios braços, querido sem ouro, querida sem hora.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-21884095591207110982011-01-03T08:29:00.000-02:002011-01-03T08:32:39.871-02:00pixar a vida de artistaE a propensão em apontar o dedo para o quintal-espelho do vizinho, que sai da toca bem obsessivo-compulsiva nestas primeiras horas de 2011? <br /><br />Roberto Carlos DEVE assumir sua deficiência física, proclama Elio Gaspari. Dilma "pecou" (alguém sempre "peca", nessas circunstâncias) por não defender os gays em seus discursos, incomodam-se os próprios gays. <br /><br />Incomodados pela performance da recém-presidenta, adolescentes Brasil afora desejam um franco-atirador para interromper em pleno voo o curso recém-iniciado de Dilma Vana (misoginia explícita, não mais concentrada em Marcela, mas em Dilma nela-em-si-propriamente-dita - adolescentes são piores, ou simplesmente mais sinceros, que adultos?).<br /><br />Ou seja, todos cobram do OUTRO o que o OUTRO não fez. <br /><br />E o que Elio Gaspari, como Roberto Carlos, poderia ter feito (e assumido), mas nunca fez (nem assumiu)? <br /><br />Quantos gays (e bis, e heteros etc.) resmungam de abandono por parte de Dilma, de dentro de seus próprios vários armários? Nossos patrões, chefes, pais e padres sabem, por nossas próprias bocas, que somos gays? <br /><br />E os pais que "educaram" seus filhos a desejar o assassinato da presidenta? Empunhariam o fuzil para consumá-lo? Ou, melhor, teriam CORAGEM de apontar uma arma para suas próprias têmporas?<br /><br />OK, dirá você, estou aqui resmungando, MAS eu mesmo vivo apontando os dedões para, por exemplo, os jornalistas e a nossa "grande" mídia. Sim, tem razão, EU sou igual a VOCÊ. Mas... <br /><br />MAS eu SOU jornalista, e há alguns anos não faço outra coisa senão espinafrar meus pares (ou seja, a mim mesmo, mesmo quando não uso a primeira pessoal singular explícita) e (portanto) tentar espanar poeira no meu próprio terreiro. Foi-se o tempo em que minha principal diversão ("diversão"?) era pixar a vida de artista. <br /><br />Eu não precisava ir ao quintal-espelho do vizinho (quintal-espelho abandonado é lâmina baldia, sra. japonesa Yoko). Meu próprio quintal estava cheio de quiçaça, entulho e carrapato, e eu fingia (para mim mesmo) que não percebia.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-86630248843266893802011-01-02T19:39:00.001-02:002011-01-02T19:39:38.853-02:00ser o dono da verdadeEu fico impressionado (pessimamente impressionado) com a epidemia de jornalismo zora yonara nesta época do ano. É um tal de fazer vidência travestida de noticiário que eu vou te contar, os olhos já não podem ver.<br /><br />Exemplos de jornalismo yonara, horóscopo transvestido de um pinguinho de curiosidade sobre a "vida real"? "Dilma terá um ano difícil em 2011", dãããã (como diria aquela outra pirata-cigana, vidente, taróloga, cartomante, quiroprática de meia-tigela).<br /><br />Jornalismo oscar quiroga com viés autoritário? "Dilma deve fazer isto", "Dilma deve dizer aquilo", "o Brasil deve seguir tal rumo", matraqueiam os professores-raimundos crossdresseados de jornalistas-zumbis.<br /><br />Reportagem ancorada no mas-ismo, tem? Tem. "Lula tirou 2,3 pessoas da pobreza, MAS esgotos continuam a céu aberto." "Brasil melhora na era Lula, MAS nem tanto." "Cientistas descobrem a cura da aids, MAS ainda há infectados." "Posse de Dilma afasta desencanto pós-mensalão, MAS fica longe da comoção de 2002" (a-cuma???) "Cristiana Lobo, Ricardo Noblat, Monica Waldvogel & Reinaldo Azevedo, Miriam Leitão, Marcelo Tas nunca foram estadistas nem fizeram discurso, MAS têm receita para tudo e sabem detectar imediatamente quando 'veem' um discurso de não-estadista (freqüentemente, antes mesmo de o discurso ser proferido)". <br /><br />"Jornalista da Globo dá aulas de moralidade, ética e costumes políticos, MAS recebe auxílio-salário do Banco do Brasil", tem? Não tem, não, senhor, sem ouro, sem hora.<br /><br />Ou vai querer dizer que agora é moda achar que tudo é uma pobreza, ô, ibrahim sued do século vintage? Pseudojornalismo de oráculo mequetrefe, já não basta? Basta.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-74121415628298475752011-01-02T13:30:00.000-02:002011-01-02T13:31:02.530-02:00chauvinista pra ser homem?Em seu discurso no parlatório, Dilma Vana foi gentil, mas firme e certeira, com seu vice, Michel, o marido de Marcela Temer.<br /><br />Citou, farta e generosamente, o vice-presidente ausente que entregava a faixa a Michel. Explicitou a grandeza de José Alencar, solicitando discretamente comportamento equivalente por parte de Michel.<br /><br />Talvez não seja fácil presidir depois de Luiz Inácio, mas certamente tampouco será pequena a missão de vice-presidir depois de José. Com a palavra (ou os gestos), o marido de Marcela.<br /><br />E, com a palavra, a nova presidenta, quando citou seu trans-conterrâneo Guimarães Rosa: "É isso, a vida pede, sobretudo, coragem para ser vivida e transformada". Para Luiz, Marisa, José, Marisa, Dilma, Dilma, Marcela, Michel, você e eu. Cê tá escutando?, cê tâ entendendo? Ouvido é para ouvir, ficha telefônica não é cotonete, orelha não é abajur de brinco.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-68662452480787004782011-01-02T11:54:00.001-02:002011-01-02T11:55:26.083-02:00coroa e cara de menina (ou) a inquisição da idade médiaHum, cheio de caraminholas aqui, acho que isto vai virar tipo uma série "agora é Dilma", "agora é moda". Prosseguindo:<br /><br />Uma presidenta solteira é ladeada por um vice grisalho, esticado, de braços dados com uma esposa jovem, expressiva, loura, linda, de linda trança loura.<br /><br />São traços de uma sociedade ainda extremamente machista, misógina, patriarcal? São.<br /><br />Agora (é moda?), resposta à altura, ou pior, à baixeza, é uma sociedade inteira reagir à cena concentrando fuzilaria patriarcal, misógina, machista - e covarde- na moça, na Marcela Temer. Nessa hora, somos o espelho quebrado (moralista, puritano, autofóbico) do casal Michel-Marcela. Eles somos nós.<br /><br />Espelho quebrado vira lâmIna, como já dizia Yoko Ono.<br /><br />"Para além da minha pessoa, a presença de uma mulher na presidência melhora e valoriza a sociedade brasileira", disse Dilma Vana, cê tá escutando?, cê tá entendendo? Ouvido é para ouvir, orelha não é cabide de molambo.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-45719429193823967042011-01-02T09:58:00.000-02:002011-01-02T09:59:07.283-02:00do lado esquerdo do peitoDois meses atrás, logo depois de eleita, Dilma Rousseff foi até Luiz Inácio Lula da Silva receber os cumprimentos. Abraçaram-se diante das câmeras, e Lula aninhou Dilma em seu peito.<br /><br />Ontem, no parlatório, quando Dilma estava empossada e enfaixada e Lula já era ex, trocaram magistralmente os papeis: abraçaram-se mais uma vez, e Dilma Vana aninhou Luiz Inácio em seu peito.<br /><br />Aula magna de camaradagem, companheirismo, irmandade, igualdade, equidade, simbolismo, pois sim? Há imagens que falam mais do que 190 milhões de palavras, ou tanto quanto 190 milhões de votos (em quaisquer candidatos, pois, como ontem disse alguém, "não peço a ninguém que abdique de suas convicções", cê escutou?, cê entendeu?).Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-43350659990744992972010-11-06T01:35:00.001-02:002010-11-06T01:36:25.102-02:00a humanidade vive a perguntar se existe vida em outro lugarHoje estive no município de Barueri, na região oeste da Grande São Paulo, para participar de um debate num programa educativo ancado pela prefeitura (tucana) da cidade e coordenado pelo Joul, integrante do fenomenal grupo de hip-hop Matéria Rima, do qual <a href="http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2007/08/banda-universal.html" target="_blank">já falei (pouco) por aqui</a> alguns anos atrás.<br /><br />A chamada cultura urbana era um dos fios condutores do debate. A plateia era de adolescentes animadíssimos, e a mesa, um bocado heterogêna. Participávamos eu (no papel de jornalista, crítico musical e, suponho, representante da "minoria branca" de que falava Claudio Lembo, aquela mesma que anda ultimamente cuspindo fogo e ódio contra NORDESTINOS por conta da eleição não de um operário NORDESTINO, mas de uma mulher economista mineira-gaúcha para a presidência da República), o escritor Ferréz, os grafiteiros Tota e Binho, o artista plástico (argentino, radicado paulistano) Balzi e representantes do poder público local. Entre esses últimos, havia três integrantes da Guarda Municipal. E foi aí que os meus olhos se encheram de lágrimas, como de hábito.<br /><br />Logo de cara percebi, meio sem perceber, um relativo isolamento dos três (dois homens e uma mulher - a única presente na mesa montada no palco do Teatro Municipal de Barueri) em relação a "nosotros". Sentaram-se juntos, num extremo do palco. À esquerda deles havia um assento vazio (no qual depois o inquieto Joul se acomodaria), a seguir o meu, depois Ferréz e os demais. Somente um dos policiais falou no início dos trabalhos (e não foi a mulher, se você me entende). Seu discurso procurou distinguir grafite de pixação, em detrimento dessa última, e foi contestado por Binho, Tota e, principalmente, Ferréz. Ninguém da plateia fez perguntas aos três. Aquelas coisas.<br /><br />A certa altura, em meio a alguma fala, mencionei que eu era do Paraná. E percebi, meio sem perceber, um sobressalto ali nalgum lugar do meu lado direito. Mais adiante, num dos momentos em que o assento do Joul estava vazio, o policial mais próximo de mim me chamou num sussurro perguntou: "De que cidade do Paraná você é?". Maringá. "Eu também!". E me contou que não só ele (putzgrila!, nem o nome do cara eu fixei) é paranaense e policial, como também é o maestro e o regente da banda da polícia de Barueri. <br /><br />Quando foi fazer suas considerações finais (sem ter antes feito as iniciais), o "Maestro" (como era tratado pelo porta-voz dos três - do qual, putzgrila 2!, também não fixei o nome) contou, ainda por cima, de sua pós-graduação e dos estudos que faz sobre samba de raiz, com auxílio de Raquel Trindade - que, Ferréz explicou, é filha do folclorista, poeta, ator, pintor, teatrólogo e cineasta (PERNAMBUCANO) Solano Trindade, figura histórica da movimento negro brasileiro.<br /><br />Nessa rápida fala, o "Maestro" mencionou também como todo mundo se afasta imediatamente de um cara como ele, quando um cara como ele está vestindo farda. Disse que, por baixo daquele uniforme, mora um pai de família, um cidadão etc. Tive a impressão que aí os olhos dele marejaram, e foi aí que minha voz embargou - ou melhor, teria embargado, se eu não estivesse calado.<br /><br />O debate terminou (muito bem, obrigado), e começaram apresentações artísticas da garotada de lá - e do histórico e formidável dançarino Nelson Triunfo, o "nosso" James Brown NORDESTINO-paulista-BRASILEIRO. (Nelsão, que não é besta nem nada, sabe quão legal é o Matéria Rima, do qual age como padrinho informal - ele esteve no palco dos rapazes quando se apresentaram no projeto "Prata da Casa" do Sesc Pompeia, quando eu era curador, <a href="http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2008/05/volta-ao-mundo-em-67-brasis.html" target="_blank">nem sei mais em que ano</a>.)<br /><br />E eis que de repente, em meio às apresentações, o porta-voz dos policiais desabotoou o coldre (é assim que fala?), abandonou as armas na poltrona da plateia, subiu de volta ao palco e... pôs-se a dançar break!!! Foi ovacionado pela meninada, apesar do corpo não de todo adaptado à agilidade desconcertante da galera da street dance.<br /><br />Somo mentalmente agora as intervenções de cada um dos policiais, e as minhas, e vejo que voltei a vivenciar hoje, num registro POSITIVO, muito diferente do que estava acostumado a raciocinar, aquilo que havia aprendido em "Cães de Guarda - Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988" (Boitempo, 2004), da historiadora Beatriz Kushnir. Um de meus livros-de-cabeceira, ele investiga as interligações e semelhanças sórdidas entre policiais, censores e jornalistas paulistas durante a fase de terror da ditadura militar brasileira. <br /><br />Mas, de volta a Barueri, o evento começou debate e terminou festa. A molecada toda subiu no palco para exibir seus próprios passos de dança em meio a dançarinos, policiais, estudantes, rappers etc. A policial feminina não teve coragem de subir, muito menos eu, apesar de termos sido convocados pelo Joul.<br /><br />Essas experiências de integração - ou de convergência, eu diria, usando a palavra que não me sai da cabeça desde domingo 31 de outubro - nem são uma grande novidade, como bem sabe o pessoal do AfroReggae lá no Rio de Janeiro, entre muitos outros. Mas foi a primeira vez que vi acontecer diante dos meus olhos, aqui mesmo em São Paulo, nesta terra mais tucana que petista onde, a acreditar no que se lê diariamente na "grande" mídia (e até mesmo em seu filhote rebelde Twitter), parece só existir uma elite branca escrota dominada pelo ódio aos nordestinos. <br /><br />Vou te contar, eu vi de tudo um pouco lá em Barueri, menos um Brasil dividido em dois ou um estado de São Paulo pronto para aderir ao nazifascismo separatista. Terminei mais essa tarde feliz tomando café com bolachas com esse pessoal tão heterogêneo - e travando, pela primeiríssima vez em 42 anos de vida, diálogos completos, amistosos e despidos de qualquer temor com três policiais.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-4238559024159265782010-11-03T21:41:00.003-02:002010-11-03T21:58:26.378-02:00há uma cordilheira sob o asfalto (ou: pro dia nascer feliz)Já nos queixamos muito dos rumos que a campanha presidencial de 2010 tomou ao longo do segundo turno, com a vinda à tona de vários instintos básicos e baixos de... todos nós. Foi misoginia, homofobia, racismo, xenofobia, um espetáculo dantesco proporcionado pelo monstro de mil cabeças que... somos nós.<br /><br />Mas, quer saber? Cada vez mais eu acho que foi necessário, e francamente positivo. Tenho de admitir que falo isso amparado pelo resultado final, e que certamente estaria me sentindo muito deprimido se as unas tivessem dito outra coisa. Foi um pulo no vazio (mais um!), sem a menor garantia de que as asas iam conseguir se mover ou que o paraquedas se abriria na hora H. Parece que deu certo (de novo!).<br /><br />Foi bom, foi muito bom, mesmo com as atitudes filme-de-terror adotados em pique "Tea Party dos Estados Unidos (e/ou do Vaticano)" pela campanha demotucana. Aprendemos a odiar apaixonadamente José Serra, que assumiu para si o papel de vilão e de bode expiatório da eleição - nos fez um mal danado, mas nos fazendo mal acabou por nos fazer um bem tremendo. Se Freud explicá-lo, quem sabe um dia ele saiba dar a volta por cima da própria pequenez.<br /><br />Serra atiçamos preconceitos e fundamentalismos, na maior parte do tempo terceirizando o serviço sujo (não raro delegando-o a <a href="http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2010/10/vamos-passear-nos-estados-unidos-do.html" target="_blank">figuras femininas</a>). Tudo isso foi peçonhento, arriscado, perigoso à beça para todos nós, e afinal de contas fez com que (nosso lado) Serra morrêssemos na praia.<br /><br />O lado bom é que, acirramentos à parte, o Brasil escolhemos com tranquilidade, votamos serenamente, legitimamos com altivez o voto que -juravam - significava a ruína e o apocalipse do país.<br /><br />O resultado? O Brasil dissemos não à TFP, à triade tradição-família-propriedade, filha do casal Casa-Grande & Senzala. O Brasil dissemos não à TFP, essa primogênita do colonialismo.<br /><br />O Brasil desafiamos a <span style="font-weight:bold;">tradição</span>. Elegemos nossa primeira mulher presidente da República. De 35 presidentes, 35 foram homens. Não mais.<br /><br />O Brasil desafiamos a <span style="font-weight:bold;">família</span>, ou melhor, aquela família falida, patriarcal, fundada num só vetor de regras e imposições. Dilma tem mãe, filha, genro, neto, ex-maridos, mas não é chefe ou cônjuge de uma família tradicional. Dilma-presidente desafiamos a família preconizada pela Igreja Católica mais fundamentalista e pelos nichos fundamentalistas encravados nas diversas religiões (ateísmos incluídos). Com muito custo, muita hesitação e muito receio, Dilma dissemos não à misoginia (e à criminalização do aborto), não à homofobia (e à satanização do casamento gay e da constituição não-<span style="font-weight:bold;">tradicional</span> de famílias), não ao racismo (e à xenofobia, que só foi emergir explicitada depois da eleição).<br /><br />O Brasil desafiamos a <span style="font-weight:bold;">propriedade</span>. Não aceitamos a demonização do MST (Movimento dos Sem-Terra). Afirmamos (muito tenuemente) que sabemos da existência da Cufa (a Central Única das Favelas) e dissemos não ao recurso medroso da da favela cenográfica (pois, ora, há favelas de verdade no Brasil). Rejeitamos o monolito da religião que pretende se sobrepor sobre o Estado laico (assim, nos posicionamos indiretamente contra a pedofilia, ainda que representada na figura para lá de ambígua de Magno Malta). Repudiamos a satanização de bolivianos e iranianos (ou seja, a xenofobia). Acima de tudo, vencemos a propriedade (paternalista, autoritária) transfigurada em coronelismo eletrônico-e-impresso encastelada na chamada "grande" mídia, ou velha mídia. Derrotamos os ímpetos egocêntricos e infantilizados do conglomerado Globo-Abril-Folha-Estado que queria-porque-queria nos impor seu ungido.<br /><br />Enfim, o Brasil declaramos, solene e alegremente: não queremos mais ser TFP!<br /><br />O Brasil, hoje, nos chamamos Dilma Rousseff. Com muito orgulho, muita FELICIDADE e muita gratidão pelo pau-de-arara/retirante/iletrado/operário/metalúrgico/sindicalista que nos abrimos este caminho (não devemos nos iludir, a xenofobia que o Brasil resolveram - ou resolvemos? - externar no pós-eleição é ressentimento dirigido sobretudo contra ele, ou seja, contra nós mesmos). O Brasil, além de tudo, temos direito à FELICIDADE, quiçá como cláusula pétrea de uma Carta Magna ainda por vir.<br /><br />[O texto já acabou, mas eu ainda tenho mais a dizer, êita, cotovelos falantes! Faz de conta que daqui em diante é um P.S.]<br /><br />Nos dias que se seguiram à sua eleição, Dilma deu sucessivas demonstrações de habilidade, inteligência e serenidade - as mesmas que o Brasil ofereceu nas urnas. Entre todas, quero destacar uma que me causou firme e forte boa impressão (como diriam os jornalistas que até a semana passada criam que essa mulher era a pior pessoa do mundo e, de repente, descobriram a pólvora - a pólvora, eu disse - e se puseram a elogiar os primeiros discursos da primeira-mulher do país).<br /><br />Eu, que fugi deste tema propositalmente durante os últimos muitos meses, me rendo: não aguento mais, agora quero falar do cabelo e da roupa da presidente!<br /><br />Após uma longa campanha durante a qual José Serra usou sistematicamente gravatas vermelhas, qual um travesti de petista, no "day after" do apocalipse, digo, da eleição Dilma Rousseff apareceu na TV Record (primeiro) e na TV Globo (depois) vestida de... azul. <br /><br />Dilma vestiu azul (papapapapapá!), a cor dos (demo)tucanos, como a dizer: "Agora eu sou de vocês também", "agora vocês também somos Dilma". Depois de os adversários tentarem anulá-la e excluí-la sem tréguas nem apego à verdade, ela agiu como quem já foi torturado barbaramente e como quem sabe peitar os preconceitos que sofre: estendeu a mão para incluir aqueles que queriam excluí-la e (principalmente) os sortudos 44 milhões de eleitores deles.<br /><br />(P.S. do P.S.: Sobre o cabelo já andei falando no Twitter, e até <a href="http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2010/10/e-se-voce-fecha-o-olho-menina-ainda.html" target="_blank">aqui mesmo</a>, quem sabe qualquer hora dessas a gente volta ao tema...)Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-3891705812155537602010-11-01T20:15:00.000-02:002010-11-01T20:16:04.876-02:00...da mais louca alegria que se possa imaginar...Minha principal constatação individual, concluído o processo eleitoral, é que nunca antes na história deste país eu havia acompanhado tão intensamente uma campanha presidencial - até porque, inédita conjunção de fatores, hoje em dia há blogosfera, twittosfera, facebookosfera, orkutosfera, internetosfera...<br /><br />Foi incrível, pelo aprofundamento compulsório a que isso obrigou, e também pelo desgaste e pelo cansaço que trouxe (tomara que a gente descanse e acalme um pouco nos próximos tempos, né?).<br /><br />"Day after", fiquei com vontade de fazer este blog comemorar a linda vitória de Dilma Rousseff da forma mais descontraída possível: brincando, que tal?, de fazer um balanço livre, leve, solto e descompromissado desta longa e extenuante campanha. <br /><br />Eu, que odeio lista de "os 10 mais" & idiotices afins, proponho daqui em diante umas brincadeiras bobas, um quem-é-quem, uns palpites pessoais - quem dá mais?:<br /><br /><br />Os mais baixo-astral (Troféu Urubu): jornais (dia 1 de novembro), televisão (dia 30 de outubro), jornais, revistas e TV (a campanha inteira).<br /><br />Os maiores caras-de-tacho (Troféu Sr. Burns): William Waack e Plinio de Arruda Sampaio (noite de 30 de outubro).<br /><br />Pior momento individual de Serra na campanha (Troféu Idade Média): a farsa aloprada da bolinha de papel. O tropeço foi montado em pique século XX (esqueceram que hoje em dia tudo se filma, nada se ignora!) e se deu em idioma que todo mundo entende (os sambistas deitaram e rolaram com a bolinha de papel).<br /><br />Melhor momento individual de Dilma (Troféu William Homer): o diálogo carne-e-osso com William Bonner no último debate, quando o cronômetro falhou. Saiu totalmente de qualquer script, e acabou aplaudida até pelo sr. Jornal Nacional.<br /><br />Pior momento da campanha de Serra (Troféu Padre Francisco de Canindé): seu encontro com o fundamentalismo religioso, via Bento XVI, Silas Malafaia, Dom Luizinho etc. Eu apostaria um dedo mindinho que Serra é ateu, e que ter de tomar as posições que tomou em relação a aborto, casamento gay etc. foi um dos fundos-de-poço da carreira e da vida dele.<br /><br />Pior momento da campanha de Dilma (Troféu Erenice Guerra): seu encontro com o fundamentalismo religioso, via cordas bambas em que tentava se compatibilizar com as religiões sem se incompatibilizar com os movimentos de direitos civis, e vice-versa.<br /><br />Melhor momento da campanha de Dilma (Troféu Dilma Rousseff): a atitude olímpica, de jamais descer ao nível rasteiro que o adversário tentava impor.<br /><br />O melhor momento de Lula na campanha (Troféu Caetano Veloso): o segundo turno inteiro, quando se recolheu ao segundo plano praticamente de cabo a rabo.<br /><br />Prêmio Espelho Distorcido (Troféu Roberto Jefferson): um triplo empate, José Serra, Mônica Serra, Soninha Francine.<br /><br />O melhor jingle (Troféu Lulalá): @dilmaboy.<br /><br />O ativista virtual mais bem-humorado: José de Abreu.<br /><br />A ativista virtual mais mal-humorada: Soninha.<br /><br />O ativista virtual mais mal-humorado: Argh!naldo Jabor.<br /><br />A ativista virtual mais bem-humorada: Pinky Wainer ("hay que enriquecer sin perder la ternura").<br /><br />Ativista virtual-revelação (Troféu Seda Pura & Alfinetadas): Marta Suplicy.<br /><br />Ativista-revelação (Troféu Hay Que Enriquecer Sin Perder La Ternura): Hildegard Angel.<br /><br />O pior momento da "Veja" (Troféu InVeja): A enésima tentativa de ridicularizar Lula na última capa pré-Dilma-presidente. Pintou o presidente mais popular da história como vagabundo-pelado-com-boia-na-cintura. E ofendeu 80% do (e)leitorado brasileiro, só para variar.<br /><br />O pior momento do "Estado" (Troféu Tiro no Pé): o "cortem-lhe a cabeça" a Maria Rita Kehl, porque ela fez uma avaliação óbvia (e inédita) do Bolsa-Família e, de quebra, deitou no divã a elite (i)letrada brasileira (donos de veículos de comunicação à frente).<br /><br />O pior momento da Globo (Troféu Luciano Huck): empate entre 1) a truculência-pitbull de Bonner com Dilma e Marina Silva, nas entrevistas do primeiro turno e 2) o empenho "altamente relevante" em provar que no meio do caminho havia uma fita crepe (ou seria uma bigorna?).<br /><br />O pior momento da Folha (Troféu Quero Me Matar): tristemente disperso, difundido e distribuído ao longo de todo o processo eleitoral (se alguém tiver paciência de enumerar a loooooonga lista...).<br /><br />Musa intelectual próSerra (Troféu Regina Duarte): Maitê Proença.<br /><br />Musa intelectual próDilma (Troféu Tecnobrega): Chimbinha da Banda Calypso.<br /><br />Musa intelectual hors-concours (Troféu Tartaruga): Oscar Niemeyer.<br /><br />Trilha sonora Serra: KLB, Sandy & Junior, Chitãozinho & Xororó, Leo Jaime, Paula Toller, Roger Moreira, Rita Lee (esta, só após o fechamento das urnas).<br /><br />Trilha sonora Dilma: Alcione, Leci Brandão, Chico Buarque, Margareth Menezes, Gilberto Gil, Elba Ramalho, O Teatro Mágico, Mano Brown, Sandra de Sá, Netinho de Paula, Chico César, Alceu Valença, Marina Lima, Arnaldo Baptista etc. etc. etc. etc.<br /><br />Os mais ambíguos 1 (Troféu O Estardalhaço Antes do Chá de Sumiço): Maria Bethânia, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes.<br /><br />Os mais ambíguos 2 (Troféu Anfíbio): Aécio Neves. Marina Silva. Ricardo Noblat.<br /><br />Pior dramaturgia eleitoral (Troféu José Serra): Aguinaldo Silva, Gilberto Braga, Glória Perez.<br /><br />Melhor dramaturgia eleitoral (Troféu Tiririca): Tiririca.<br /><br />O eleitor mais elegante: José Alencar.<br /><br />Melhor eleitora (Troféu Marisa Letícia): Maria Rita Kehl.<br /><br />Pior eleitora (troféu Weslian Roriz): Mônica Serra.<br /><br />Pior eleitor (Troféu FHC): José Serra.<br /><br />Melhor eleitor (Troféu Lula): Luiz Inácio Lula da Silva. E nós. :-)<br /><br /><br />Que mais? Quem mais? Quem dá mais?Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-31371617383704654932010-10-30T16:11:00.002-02:002010-10-30T16:18:38.356-02:00para pedro pedro para (pra pensar)Há um texto que estava guardado e represado aqui dentro fazia tempo - talvez uma vida inteira. Ontem, 29 de outubro de 2010, ele saiu daqui de dentro, e hoje, 30 de outubro de 2010, foi publicado, eba.<br /><br />Saiu daqui de dentro instigado pela Carol Patrocínio (@carolpatrocinio) e pelo pessoal do incrível blog-site <a href="http://www.perraps.com.br/" target="_blank">Per Raps</a> (@per_raps). O Per Raps trata (principalmente) de rap, mas esta semana eles dedicaram inteira a escrever sobre política e eleições presidenciais, e me pediram um texto sobre esse assunto, eba.<br /><br />Carol surgiu com a proposta de que eu escrevesse, livremente, algo sobre as relações entre a política e o dia-a-dia de todos nós, sobre como as escolhas políticas refletem quem a gente é no cotidiano, e vice-versa. Antes mesmo de começar, fiquei pensando: tenho 16 anos de profissão como jornalista e até hoje nunca, nunca, nunca um editor de jornal ou revista ou quem quer que seja jamais havia me pedido um texto sequer parecido com isso. E quem me pediu foi, olha só, um pessoal ligado ao rap, ao hip-hop, eba.<br /><br />Por essas e por outras, eu não consigo vislumbrar uma véspera de eleição mais feliz para mim que isso. E então, pronto, o que saiu foi este texto (extremamente pessoal) que estava escondido e guardado desde sempre. Ah, e ainda ganhei o novo apelido de "Pedro Alex Sanches", eba!<br /><br />Enfim, vai ele aí. O lugar mais exato e justo para lê-lo é o <a href="http://www.perraps.com.br/2010/10/30/politica-e-educacao-conceitos-complementares/" target="_blank">Per Raps</a>, mas também não dava para eu não querer deixar registrado e guardado para sempre aqui no meu próprio blog - que, por essas e por outras, tem voltado a ficar movimentado ultimamente, eba.<br /><br /><br />(Meu muito obrigado ao pessoal do <a href="http://www.perraps.com.br/" target="_blank">Per Raps</a>!)<br /><br /><b>Política e educação: conceitos complementares</b><br /><br /><i>por Pedro Alex Sanches</i><br /><br />Meu pai nasceu numa família pobre, à beira do rio Uruguai, na zona rural de Santa Catarina. Mais tarde, conseguiu estudar se formar em ciências contábeis. Minha mãe, nascida no interior do Rio Grande do Sul, teve menos sorte (se é que se pode chamar de “sorte” a abissal diferença de condições que a sociedade dá a homens e mulheres): foi criada num orfanato de freiras que deixavam suas alunas passarem fome e as torturavam psicologicamente, e só conseguiu estudar até a quarta série.<br /><br />O casal se radicou em Maringá, interior do Paraná, onde nascemos os três filhos. Meu pai virou dono de casa lotérica, seguindo o exemplo do pai dele, e pôde sustentar a família com tranquilidade. Sempre incutiu conceitos rígidos de honestidade nos filhos, mas depois de adulto eu, o caçula, não pude deixar de pensar inúmeras vezes que recebi alimento e conforto às custas da exploração do sistema lotérico mantido pelo regime militar (meu pai, embora nunca tenha sido um homem violento, era adepto entusiasmado da ditadura civil-militar brasileira). O público preferencial das casas lotéricas, nem preciso dizer, era a parte mais pobre da população, aquela que só conseguia vislumbrar chance de melhorar na vida ganhando fortunas na loto ou na mega-sena.<br /><br />A vida inteira estudei em escolas públicas. Do primeiro ano primário até a idade de entrar na faculdade, estudei no Instituto Estadual de Educação de Maringá. Depois, me formei em farmácia-bioquímica pela Universidade Estadual de Maringá e, depois, em jornalismo pela Universidade de São Paulo.<br /><br />A rigor, minha formação foi paga pelos governos dos estados do Paraná e de São Paulo, mais complementos bancados pelo meu pai (uniformes, material escolar, livros, xerox, aluguel de quitinete paulistana). Mas acho que posso afirmar, simbolicamente, que fui subsidiado pelos generais da ditadura, depois pelos presidentes José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e, no último ano do curso de jornalismo, Fernando Henrique Cardoso. <br /><br />Estou dizendo, em outras palavras, que ganhei desses governantes a minha cota de “bolsa esmola” – que é como a playboyzada mais ignorante e socialmente insensível costuma se referir ao Bolsa-Família de Lula, que pede a permanência das crianças na escola em troca de uma ajuda de custo mensal. Vejo que hoje as escolas estão povoadas por crianças muito mais pobres do que eu fui, e isso me dá um arrepio de alegria.<br /><br />Dizem que o ensino público brasileiro é fraco, e concordo em parte. Tive que complementar minha formação por aí, muitas vezes por conta própria, e muitas deficiências carrego até hoje. Nem mesmo na conceituada, cobiçada e elitizada USP, por exemplo, jamais tive aulas de cidadania, racismo, misoginia, homofobia, direitos humanos, direitos civis…<br /><br />Mesmo assim, minha formação foi suficiente para eu conseguir emprego na Folha de São Paulo, antes mesmo de me formar jornalista (nossa “grande” mídia sempre criticou a falta de diploma do presidente Lula, mas em geral nunca exigiu diploma de seus funcionários, como não exige os diplomas dos vários cursos e cargos não-concluídos de seu atual candidato a presidente, José Serra). <br /><br />No meu caso, ir para a <span style="font-style:italic;">Folha</span> significou que indiretamente continuei a ser financiado pelos governos (tucanos) do estado e do país. É o que acontece até hoje com quem trabalha em veículos como <span style="font-style:italic;">Folha</span>, <span style="font-style:italic;">Veja</span>, <span style="font-style:italic;">O Estado de São Paulo</span> e amplos setores da Rede Globo, todos atualmente divididos entre a “bolsa-esmola” das polpudas publicidades do governo petista de Lula (que combateram raivosamente durante oito anos) e dos governos tucanos de São Paulo (aos quais são amplamente subservientes, a ponto de parecerem seus sócios, ou no mínimo empregados regiamente remunerados).<br /><br />No balanço disso tudo aí fui sempre, não sei bem por quê (ou será que sei?), um fã ferrenho dos partidos políticos de esquerda, especialmente o PT. Em 1989, quando eu tinha 21 anos, o Brasil promoveu sua primeira eleição direta para presidente após 29 anos sob a tirania de ditadores e semiditadores. Nesse intervalo, os militares de extrema-direita prenderam, expulsaram do país, torturaram e assassinaram milhares de cidadãos e cidadãs (inclusive a atual candidata petista a presidente, Dilma Rousseff, que dessas coisas todas “só” não foi exilada nem assassinada). <br /><br />Vivi do nascimento à maioridade sob esse clima irrespirável, altamente repressivo, mas a maioria avassaladora dessas notícias não chegava a Maringá, nem eu tinha o hábito de ler jornais. Mesmo assim, alguma coisa inexplicável (ou será que explicável?) sempre me puxou para votar à esquerda, e desde então tenho votado em Luiz Inácio Lula da Silva – em 1989, 1994, 1998, 2002 e 2006. Em 3 de outubro votei pela primeira vez num candidato que não é Lula, e repetirei o mesmo voto amanhã: vou votar em Dilma Rousseff, é óbvio. A propósito, festejo esse privilégio de que usufruo desde os 21 anos: que bom poder votar!!!<br /><br />Pois bem, assim fui seguindo e sigo a vida, sempre com dificuldade de ligar todos os pontos que a constituem, muitas vezes sem conseguir muito explicar os porquês das minhas opções, dos meus erros, das causas que me movem à luta. Depois de dez anos na <span style="font-style:italic;">Folha</span> e quatro na revista <span style="font-style:italic;">CartaCapital</span> (que foi minha pós-graduação informal em jornalismo, como costumo dizer), resolvi tentar viver como jornalista autônomo, sem vínculo empregatício direto com nenhuma empresa jornalística – tenho me virado legal, mas a real é que há quase dois anos vivo em regime de subemprego (sem férias remuneradas, décimo-terceiro, aquelas coisas), por ironia num tempo em que o governo Lula cria 200 mil novos empregos por mês. <br /><br />Como disse, é difícil juntar os pontos dos significados de tantos dados espalhados, mas eu cheguei perto de algum entendimento maior quando fui ler <span style="font-style:italic;">Lula – O Filho do Brasil</span> (Editora Fundação Perseu Abramo, 2002), da jornalista e doutora em ciências humanas Denise Paraná (esse livro, bem acadêmico, originou o filme de mesmo nome, embora um pouco tenha a ver com o outro). Alguns trechos ali me impressionaram profundamente, em especial os que interpretavam como a condição de operário de Lula ajudou a moldá-lo do modo como o conhecemos hoje. Peço licença para copiar alguns deles aqui:<br /><br /><i>“Lula e Frei Chico (...) contam também por que aspiravam a trabalhar em empresas multinacionais: eram elas que ofereciam os mais altos salários e – aqui aparece novamente a questão da auto-estima – participar de seu quadro de funcionários era um orgulho não só pessoal como também familiar”;<br /><br />“(…) pertencer ao quadro de funcionários de uma grande empresa, uma indústria que encarnasse progresso e pujança econômica, era para o trabalhador um símbolo de que ele também passava a encarnar tais qualidades, representando a figura do vencedor dentro da mais genuína lógica capitalista”;<br /><br />“Ao mesmo tempo em que reconhece a existência de salários privilegiados em relação à média do mercado, Sader aponta para o alto grau de controle disciplinar, para os sistemas repressivos e o tratamento despótico dispensado aos trabalhadores pelos empresários das grandes indústrias automobilísticas que tendiam a criar um clima de tensão e competição entre os trabalhadores, minando os movimentos de solidariedade e possíveis formas de organização”;<br /><br />“(…) o grande sonho dos operários era assumir uma função bem remunerada e valorizada socialmente no interior das grandes empresas; assim, o caminho para a melhoria de vida e a ascensão social fazia-se através de um percurso individualista. A famosa e tão repetida expressão popular ‘vencer na vida’ traduzia-se aqui em tornar-se finalista numa corrida individual por melhor emprego, isto é, melhor condição de vida, deixando os colegas para trás”</i>.<br /><br />Imagino que o jornalismo possa parecer a você uma profissão legal, privilegiada, bem-remunerada (nem tanto, viu?, nem tanto…), glamurosa (no meu caso, fui ser jornalista musical, o legal dentro do legal). É meio assim mesmo, não nego, mas, nossa!, como eu me identifiquei com as palavras acima quando as li. Parecia que Denise Paraná estava descrevendo a minha vida profissional<br /> <br />Foi só a partir dessa leitura (ou seja, há pouco mais de um ano) que comecei a entender um pouco melhor a minha posição de operário dentro da grande fábrica de notícias (e ficções nada científicas) que é a nossa “grande” mídia. Certo, não lido com tijolo e cimento, e sim com tinta e papel, ou melhor, neurônios, dedos e computador. Mas, meu amigo, minha amiga, se eu fosse falar o quanto conheço, de dentro de ambientes supostamente “educados”, sobre maus tratos, assédio moral, homofobia, bullying (aliás, essas são outras “matérias” que jamais aprendi em escola nenhuma, e você?)... <br /><br />Até de racismo conheço um pouco, apesar de ser branco como papel – meu, se você soubesse quanto é difícil emplacar reportagens sobre rap nacional na “grande” imprensa brasileira…<br /><br />Estou querendo dizer que, à parte a atmosfera “civilizada” e o tal glamour, a vida de um jornalista assalariado guarda elementos hereditários, eu diria, de servidão, humilhação e escravidão, tanto quanto inúmertas outras profissões – ator de TV, cantora, operário, empregada doméstica, trabalhador de construção, babá de filhotes riquinhos, porteiro, diarista, catador de papel, taxista, secretária-executiva, bancário, professora de escola pública (ou particular), segurança, policial…<br /><br />Foi aí que deu o clique, que me veio a explicação lógica para eu ter votado tantas vezes em Lula e já ansiar, um ano atrás, pela hora de votar em Dilma. Mesmo sem carteirinha de sindicato ou ficha de filiação partidária, eu saí da barra da saia do meu pai em 1991 para virar um operário, um integrante do partido dos trabalhadores (uso em minúsculas, porque até no PSDB e no DEM existem trabalhadores), pô!<br /><br />Ainda não tenho certeza se a minha vida em particular melhorou ou piorou nos últimos oito anos (ah, quer saber?, acho que melhorou, sim, à beça!). Mas, concluído mais este ciclo, tenho uma certeza: sou muito, muito, muito orgulhoso dos votos que emprestei a Lula, esse meu irmão.<br /><br />Nesses anos todos, enquanto pelejava para cá e para lá com meus tijolos de palavras, vi muita coisa acontecer. O pré-sal e o respeito à estatal Petrobras começaram a enriquecer o Brasil como um todo, e há leis garantindo que seus lucros não sejam entregues aos Estados Unidos a preço de espelhinhos e miçangas. O Brasil, antes desprezado e humilhado na chamada comunidade internacional, goza de um respeito externo que jamais havia possuído – não era à toa, pois até pouco mais de um século atrás éramos um país oficialmente escravocrata, e só há 26 anos encerramos uma ditadura sangrenta bancada pelos supostamente “cultos” Estados Unidos. Mas qualquer hora dessas vão dizer que não somos mais um país “subdesenvolvido”, quer apostar?<br /><br />Este Brasil hoje goza de respeito e admiração internacional porque tem Lula, que lidera a decisão de não baixar mais a cabeça para os países “ricos”, mas também respeita os países da África, o Haiti, Cuba, o Irã (e não só regimes tirânicos “amigos” dos EUA, como Israel, Itália – e os próprios EUA). Respeita para ser respeitado, em resumo.<br /><br />Nesses oito anos, o Bolsa-Família (e não “bolsa-esmola”, como diz quem teve estudo e parece não tê-lo aproveitado para maiores aprendizados) começou a democratizar o ensino. O ProUni tem levado às universidades uma população crescente de estudantes mais pobres, para tomar posse das vagas que deviam ser deles desde sempre, mas eram quase sempre ocupadas por garotos como eu e por garotos muito mais ricos que eu. Universidades novas têm sido construídas, inclusive em regiões como o Nordeste, e não só no universo-umbigo chamado São Paulo e vizinhanças. As cotas raciais vêm sendo implantadas (a USP, gerida por governos tucanos, até agora não o fez, olha que curioso). <br /><br />Assim como o Brasil cresce aos olhos do mundo, aqui empregadas domésticas, porteiros e pedreiros têm comprado carros, viajado de avião e frequentado universidades, e existe muita madame e muito marmanjo incomodados com a “inesperada” dificuldade de contratar serviçais. O fato de seus cidadãos menos favorecidos se desenvolverem aqui dentro é o que faz o Brasil crescer lá fora (e passar incólume de crises financeiras ditas “mundiais”), muito mais que o contrário. A autoestima precisa sempre vir antes da estima dos outros, senão nunca vem. Os mais ignorantes e estúpidos entre nossos patrões e patroas ficam enlouquecidos quando intuem essa profunda transformação – eles gostam mesmo é de escravidão, sem nem perceberem que também são escravos, ainda que forrados de ouro e papel-moeda.<br /><br />Enquanto o Brasil atravessava essas mudanças, aqui em São Paulo o então governador Serra e seus asseclas deixavam gente sem nenhuma perspectiva de futuro estufar a cracolândia no centro da cidade – segundo línguas más e sordidamente mudas, para desvalorizar o mercado imobiliário daquela região e preparar o “futuro” (futuro de quem, caras-pálidas?) para a edificação de um pomposo centro empresarial, ou coisa que o valha. Como que perdido no tempo, o então governador Serra tratava policiais e professores do ensino público à base de cassetete e gás lacrimogênio, como se ainda estivéssemos em plena ditadura militar. Como muita gente já sabe, o modo mais eficaz de manter escrava uma população é negar-lhe condições de educação e emprego pleno. Bingo (ou eu devia dizer loto, sena, jogo do bicho?).<br /><br />Há muita coisa acontecendo no Brasil, mas a grande revolução que Lula tem promovido acontece nesse binômio, emprego-e-educação. E, curiosamente, a “grande” mídia que sustenta minha sobrevivência simplesmente ODEIA tocar nesse assunto. Em pleno processo eleitoral, prefere falar (sempre preconceituosamente) sobre religião, aborto, casamento homossexual, bolinha de papel, “terrorismo” da candidata que foi torturada pela ditadura sustentada por ela, mídia, com mão de ferro. <br /><br />E cá estou eu, ligando pontinhos, tentando somar essas coisas todas. Por falar em somar, escrevi e publiquei um livro chamado <span style="font-style:italic;">Como Dois e Dois São Cinco</span> (Boitempo, 2004), sobre Roberto Carlos, o cantor mais popular da história do Brasil – olha só, até livros o meu “bolsa-esmola” me permitiu escrever.<br /><br />A conclusão à que chego é que às vezes parece até que nem sei em quem voto ou por que voto nessa e naquele. Mas, olha, acho que eu sei, sim. Sei com quem me identifico. Sei que carrego sentimentos de culpa, mas também de injustiça, que me causam raiva, por mim mesmo e por outros muitos irmãos (neste ponto, posso chamá-lo de irmão, ou irmã?).<br /><br />Sei que busco minha felicidade individual nesta vida, mas sei também que só sou feliz quando estou interagindo com um monte de gente, e que quanto mais gente feliz existe ao meu redor (ou mesmo longe de mim), maior é a minha probabilidade de ser mais feliz. Dito tudo isso, você já sabe qual é o apelido que vou dar à minha felicidade na urna amanhã. Temos uma noite inteira pela frente, pensa bastante aí que nome você quer dar à sua felicidade.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-8652009582632064292010-10-29T10:31:00.001-02:002010-10-29T10:34:21.114-02:00um homem deste tamanho com tanto medo da Dilma???Tensão pré-eleitoral é fogo, e pelo que sei ainda não se inventaram remédios eficazes para combatê-la.<br /><br />Ou será que inventaram?<br /><br />Tenho usado um remedinho aqui para a minha TPE (pensa que homem também não tem, é?!). E sabe que está ajudando imensamente, pelo menos para aliviar os sintomas externos?<br /><br />Estou me referindo à coisa mais genial que apareceu nos meios culturais, em relação aos últimos dias da campanha. É o samba de partido alto "Bolinha de Papel, você sabe do que estou falando, não sabe?<br /><br /><object width="480" height="385"><param name="movie" value="http://www.youtube.com/v/sF39pz56-Sk?fs=1&hl=pt_BR"></param><param name="allowFullScreen" value="true"></param><param name="allowscriptaccess" value="always"></param><embed src="http://www.youtube.com/v/sF39pz56-Sk?fs=1&hl=pt_BR" type="application/x-shockwave-flash" allowscriptaccess="always" allowfullscreen="true" width="480" height="385"></embed></object><br /><br />Faço questão de, além de ouvir, transcrever a deliciosa letra (destaque total para as duas últimas estrofes, sutis em não mencionar explicitamente aquilo que não deve ser nomeado):<br /><br />Deixa de ser enganador<br />Pois bolinha de papel<br />Não fere nem causa dor<br /><br />Um homem forte<br />De tamanho natural<br />Como pode uma bolinha lhe mandar pro hospital?<br /><br />O factoide<br />Ao perceber que perdeu<br />Entra logo em desespero<br />Foi o que aconteceu<br /><br />Cara-de-pau<br />Sempre existiu por aí<br />Uma bola de papel<br />Lhe mandar pro CTI<br /><br />Me engana<br />Já diz a rapaziada<br />Foi sentir 20 minutos<br />Após levar a bolada<br /><br />É bom que saibam<br />Que não estamos em guerra<br />Que em 31 de outubro esta história se encerra<br /><br />Pra aparecer<br />Pede que a turma te filma<br />Um homem deste tamanho<br />Com tanto medo da Dilma<br /><br />Ah, e no final do clipe ainda vem o texto-manifesto curto e direto, assinado por Martinho da Vila, Wilson Moreira, Monarco, Nelson Sargento, Delcio Carvalho, Gisa Nogueira, Noca da Portela, Tantinho da Mangueira, Moacyr Luz, Paulão Sete Cordas, Ze da Velha, Silvério Pontes, Cláudio Jorge e Wanderley Monteiro. É mole ou quer mais? O tempo passa, os anos voam, o Bamerindus muda de nome, mas o samba continua sendo um dos maiores orgulhos deste Brasilzão.<br /><br />(P.S.: este texto foi publicado ao som de "Tudo Bem (Big Ben)", nova do Bebeto, gênio do samba-rock, brasileiríssimo: "Mas tudo bem/ ah, tudo bem/ eles não têm Jorge Ben/ o deles é big/ o nosso é Jorge/ mas tá tudo bem/ estamos bem." Manhã feliz!)Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-80280440015653588032010-10-28T04:19:00.002-02:002010-10-28T10:10:35.412-02:00...e se você fecha o olho a MENINA ainda dançaTudo começou porque dei vazão, no Twitter, a uma fofoca que ouvi semanas atrás (e que não tenho a menor ideia se tem algum fundo de verdade). Ouvi dizer que Dilma Rousseff, eleita, pararia de tingir os cabelos e os deixaria naturalmente grisalhos. Além de ser a primeira presidente brasileira, passaria também uma presidenta grisalha. <br /><br />Eu acho o máximo, e externei isso via @pdralex.<br /><br />Para quê. Criou-se uma pequena celeuma lá, com uma maioria de manifestações de que mulher "não pode" deixar de cabelos sem tintura (ao contrário dos homens, que não só podem como são elogiados por serem grisalhos). Logo entrou também o tema da depilação feminina, em registro parecido: basta alguém tocar nesse assunto que, invariavelmente, um monte de gente grita de imediato, indignada pelo temor (fobia, eu diria) de sequer imaginar uma dama de sovacos cabeludos.<br /><br />Defendi lá no Twitter, e sigo defendendo aqui, que tratam-se de manifestações arraigadamente misóginas. Se o ódio à mulher é moeda corrente, que dirá o ódio à mulher grisalha, o ódio à mulher cabeluda. A geral, composta indistintamente por homens e por mulheres, repete os mesmos clichês de sempre ("não pode!", "que nojo!"), sem nem pensar sobre o assunto, sem refletir minimamente no quanto de regra, norma, prisão, discriminação, tortura psicológica e misoginia há nessas simples e amplamente obedecidas proposições.<br /><br />Diz o senso comum: mulher TEM QUE tingir os cabelos. Homem NÃO PODE usar esmalte nas unhas nem batom nos lábios. Mulher que não depila pernas e axilas é NOJENTA. Homem de saia é ASQUEROSO (além de frouxo e bicha, obviamente). Mulher É OBRIGADA a furar as orelhas (não sei por quê, isso me faz pensar em cachorros com os rabos amputados, por razões "estéticas") para "poder" vesti-las de brincos, argolas e miçangas que tais.<br /><br />(Em geral não aprecio escrever em MAIÚSCULAS, mas fiz isso agora para ACENTUAR o caráter AUTORITÁRIO e DITATORIAL de tais proposições - ou de ORDENS, prefiro afirmar.)<br /><br />(Outra coisa que não aprecio fazer, e da qual fugi durante toda a campanha eleitoral, é ficar me detendo às roupas e aos cabelos da candidata Dilma - me parece um modo misógino de tergiversar, de deixar sem discussão as ideias e os pensamentos daquela mulher, de qualquer mulher, algo que nunca se faz com o candidato homem. Hoje baixei a guarda, pelos motivos especiais que você há de entender.)<br /><br />Pois bem, Dilma Rousseff vem aí, e toco aqui nesses tabus por considerá-los questões quentes e candentes do momento, assim como aborto, casamento gay e toda essa série de temas comportamentais que a campanha presidencial de 2010 tem trazido à tona - de modo bestial, mas paradoxalmente também benéfico, palpito. E se a presidenta Dilma ficar grisalha, quem aí vai fazer mimimi e trololó? O <a href="http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2010/10/vamos-passear-nos-estados-unidos-do.html" target="_blank">monstro de mil caras da misoginia</a> vai arreganhar também esses dentes, se ela o fizer?<br /><br />Mas então, volto a tocar no tabu por isso, mas também por uma outra razão, mais que nada, mas que tudo. A discussão no Twitter rapidamente me fez lembrar que em julho passado, quando a revista "Trip" propôs e eu ajudei a <a href="http://revistatrip.uol.com.br//revista/192/reportagens/por-que-nao-viver-nao-viver-esse-mundo.html" target="_blank">executar</a> um reencontro <a href="http://revistatrip.uol.com.br/revista/192/reportagens/novos-baianos-a-versao-de-moraes-moreira.html" target="_blank">parcial</a> dos velhos Novos Baianos, houve um trecho de entrevista muito emocionante para mim, e que ficou inédito até agora porque eu não soube como encaixar naquele material. <br /><br />Ali eu estava começando a encaficar um pouco mais com temas como esses, e quem incendiou minha imaginação foi, mais uma vez, uma cantora (e pastora evangélica) absolutamente fenomenal, antes chamada Baby Consuelo, hoje rebatizada Baby do BRASIL (este usado em maiúsculas pela grandeza, não por nostalgias de ditaduras semi-inacabadas). Finalmente achei o pretexto e a motivação para voltar a eles e ao partir agora para a transcrição me deparei, para meu espanto, com uma fileira de alguns dos mesmos assuntos que, meses mais tarde, viriam a frequentar dramaticamente a campanha presidencial.<br /><br /> Sendo assim, convido você agora a passear comigo na van que nos levava de volta à vida real, após a breve visita de Baby, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor e Dadi Carvalho ao Sítio do Vovô dos Novos Baianos, velhos cariocas. Falávamos, naqueles trechos, sobre o fato de Baby ser uma única mulher ao redor de quase uma dezena de homens no grupo. Sobre religiosidade. Mais adiante, sobre o rock-samba-frevo-etc. <a href="http://www.youtube.com/watch?v=-sYkWmdmRsc" target="_blank">"O Mal É o Que Sai da Boca do Homem"</a>, que Baby Consuelo e Pepeu Gomes defenderam no festival MPB 80 da Rede Globo - e que bateu de frente com a Censura da já agonizante ditadura civil-militar, por conta de versos como "você pode fumar baseado/ baseado em que você pode fazer quase tudo/ contanto que você possua/ mas não seja possuído/ porque o mal nunca entra pela boca do homem/ porque o mal é o que sai da boca do homem". E sobre Branca de Neve, e sobre cabelos coloridos, e sobre... sovacos cabeludos.<br /><br />Entrarão aí abaixo uns tantos temas, a meu ver todos apetitosíssimos, e todos aperitivos da sabedoria altamente caótica dessa artista excepcional. Fala, dona Baby do BRASIL.<br /><br />(Antes, uma última observação, à parte: dedico esse texto, com a maior admiração, ao também excepcional cartunista <a href="http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/livros/laerte+em+carne+osso+e+minissaia/n1237811802611.html" target="_blank">Laerte</a>, tão <a href="http://moda.ig.com.br/modanomundo/ser+mulher+e+muito+caro/n1237812404702.html" target="_blank">maravilhosamente doidão</a> hoje quanto sempre foram Baby & os Novos Baianos.)<br /><br />*<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Como era ser mulher ali naquela comunidade? Era mais difícil por isso?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É porque eu sou muito macho também, entendeu? Eu sou muito macho. Sou muito menino, e menina, "se Deus é menina ou menino", né?, somos "masculino e feminino" [<i>faz referência à canção homônima dela, de Pepeu Gomes e de Didi Gomes, gravada em 1983 por Pepeu</i>]. Nunca fui de laço de fita invisível na cabeça. Sempre fui um ser, um ser casualmente feminino. Não gosto de determinadas frescuras femininas e não gosto de certos comportamentos femininos, e também dos masculinos. Acho que nós somos iguais em muitas coisas, e nas nossas diferenças [<i>faz voz charmosa</i>, alongando a letra "a"] nós nos completaaaaamos. (...)<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Baby, como você se relaciona hoje com a sua fase solo, pop, de "Cósmica" [<i>1982</i>], "Telúrica", <a href="http://www.youtube.com/watch?v=v5e2WLxerCQ" target="_blank">"Todo Dia Era Dia de Índio"</a> [<i>ambas 1981</i>]?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Ai... Olha, que delícia isso, sabe por quê? Há muito tempo eu já não estava visitando essa área, porque comecei a compor pro gospel, e muito ligada com esse meu lado "popstora". Mas alguns convites foram feitos, eu analisei e topei fazer. E aí começa todo mundo a gritar: "'Cósmica'!", "'Telúrica'!"..., e músicas campeãs nisso, que são <a href="http://www.youtube.com/watch?v=XaZtEUZobJk" target="_blank">"Brasileirinho"</a> [<i>1976</i>], <a href="http://www.youtube.com/watch?v=mqcq4wwjL8o" target="_blank">"A Menina Dança"</a> [<i>1972</i>], <a href="http://www.youtube.com/watch?v=PCHBpkaqM1Y" target="_blank">"Menino do Rio"</a> [<i>1979</i>]... O pessoal fica louco. E achei muito gostoso, porque, quando compus muitas dessas músicas, com Pepeu na parceria, eram coisas muito pessoais minhas. A letra de <a href="http://www.youtube.com/watch?v=GHF2zBmqnsY" target="_blank">"Masculino e Feminino"</a>, por exemplo, na verdade era "ser uma mulher masculina não fere o meu lado feminino", que era essa coisa de a Baby ser igual a qualquer um dos Novos Baianos. Mas aí dei pro Pepeu, porque o disco dele ia sair primeiro. Pensei: vai ser um escândalo esse negócio do Pepeu, tá dizendo que ele é gay?, não, não é isso, ele tá falando de um homem feminino. Essas letras todas eram parecidas comigo, falei: "Pô, não sei se esse povo vai entender". Aí foram entendendo, sempre teve um lado Baby meio brejeira... <br /><br />Mas quando chegou agora... Tenho encontrado fã que tinha nove anos de idade, apareceu um no show com Elza Soares e Ademilde Fonseca, sei lá com quantos anos, 39, dizendo: "Eu até me converti por causa de você, sou louco por você", querido, lindo, trouxe todos os discos. Tá vindo coisa de todo lado, tá tudo aparecendo, pra mim tá sendo muito gostoso. Neguinho fala: "Quero 'Cósmica'!". "Você conhece?" "Conheço, amo aquela música", olha que coisa engraçada! Porque é completamente diferente do que todo mundo tá ouvindo...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> É uma fase sua que está sendo revalorizada de um tempo pra cá, como já tinha acontecido com a fase dos Novos Baianos.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Você já sacou isso?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Sim.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB - </span>Então não sou só eu que tô sacando, né?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> "Todo Dia Era Dia de Índio" faz o maior sucesso em qualquer festa. (...) Aquelas letras todas soavam esquisitas, talvez não fosse algo que as pessoas estivessem esperando na época, mas a sonoridade era fenomenal.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Marav... [<i>interrompe-se</i>] O disco "Canceriana Telúrica" [<i>1981</i>] tem oito músicas, e das oito quatro foram sucesso total, não sei se você lembra [<i>ô, se lembro, Baby!...</i>]. (...) "Telúrica" e "Cósmica" foram duas palavras que encontrei, achei <a href="http://www.youtube.com/watch?v=WvuRdZgcics" target="_blank">"Telúrica"</a> uma palavra maravilhosa e tomei a liberdade, como poeta, de usar "telúrica" para ser o "terrestre", com luz. Ou seja, terrestre é terrestre, vende a mãe por um saco de dinheiro, mas telúrico não vende. Era isso que eu queria dizer. Lembro que uma vez Chico Buarque se encontrou comigo e falou: "Foi maravilhoso você ter encontrado essa palavra e a maneira que você tá usando". E em <a href="http://www.youtube.com/watch?v=zdG4M0Hvp3w" target="_blank">"Cósmica"</a> eu falei: "É sintonia espiritual pra ser transcendental". Era a minha definição, completamente fora do misticismo comum da época. Eu passei por muitas fases, mergulhei em muitas religiões, busquei muito, mas sempre detestei altares fora, isso sempre me deu mal estar, me incomoda. Acho que o altar é dentro, você tem que estar santa por dentro, não é ficar falando da boca pra fora.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> A fase do guru Thomas Green Morton foi um equívoco?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Na fase do Thomas Green me parecia que eu tinha encontrado definitivamente uma porta, uma porta estreita até, e que Deus ia se materializar pra mim a qualquer hora. Porque tudo se materializava, água transformava em óleo e perfume, papel em ouro, os metais entortavam, tudo acontecia. Demorou dez anos pra eu descobrir que aquela energia não era o que eu buscava. Imagina, você tá no meio de materialização e desmaterialização... Quando descobri que não era...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Essas transformações eram simulações dele?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Não, aquilo acontecia. É uma outra energia, Rá é um principado do Egito, é Lúcifer, que tá amarrado e reconhecido em nome de Jesus - já que perguntou tem que dizer, vai fazer o quê, né? Mas isso é bíblico, conheço porque estudei e sei, está lá na escritura, cada um é um.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> "O Mal É o Que Sai da Boca do Homem" você nunca mais vai cantar?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Não, isso é maravilhoso, é de Jesus...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> A música fala de baseado [<i>na fase evangélica, Baby faz restrições veementes ao tema drogas</i>]...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Essa frase é de Jesus.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Nessa música você dizia "você pode fumar baseado, baseado em que você pode fazer quase tudo", isso você não cantaria hoje?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É, eu não quero falar desse negócio. Não falo dessa música, a gente não pode falar dela agora.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Preciso dizer, eu descobri você em 1980, por causa dela...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É, mas não é pela música, é aonde chega... [<i>Galvão conta que hoje não autoriza mais gravações dessa música, e Baby acaba falando sobre ela</i>] A música falava de fumar, comer e beber, que eram coisas que estavam acontecendo normalmente na nação. Tudo que você fizer, você pode fazer, baseado, baseado em quê? Você pode fazer quase tudo, contanto que você possua, mas não seja possuído. O trocadilho entrou, e entrou muito bem. Fui ao Supremo Tribunal Federal com Pepeu, e quase pegamos uma cadeia de 15 anos, então não quero falar dessa música. Essa frase "contanto que você possua, mas não seja possuído, porque o mal é o que sai da boca do homem", eu peguei da Bíblia. A ideia era que a juventude entendesse o seguinte: ninguém vai ser babá de você, não. mas se você for possuído por cada droga, que é o que aconteceu, você vai dançar [<i>ela e Galvão divergem, discutem a letra</i>].<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Galvão -</span> Essa música ganhou o festival. Um cara do júri chegou pra mim: "Vocês ganharam o festival, mas aí uma pessoa lá disse que essa música tá falando de maconha, na Globo" [<i>o vencedor anunciado foi Oswaldo Montenegro, cantando "Agonia"</i>]. (...)<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Você tá falando uma coisa que eu, como autora também [<i>a canção é assinada por Pepeu, Baby e Galvão</i>], não vejo. Não vejo essa música mandando ninguém fumar maconha.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Posso te contar uma coisa? Eu tinha 12 anos quando "O Mal É o Que Sai da Boca do Homem" apareceu na Globo, morava no interior do Paraná, nunca tinha ouvido falar ou prestado atenção nos Novos Baianos. Descobri Baby e Pepeu naquela ocasião...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Que delícia.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> ...e uma coisa que me marcou muito é que você tinha o...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> O cabelo debaixo do braço!<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> ...o sovaco peludo. Isso era muito libertário, não era?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Maravilhoso, maravilhoso.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Até hoje mulher não pode deixar de raspar...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Pode, poder pode... Eu não raspo debaixo do braço até hoje.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> É? Não era uma coisa pra provocar?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Não, isso é o seguinte: se você pode, por que eu não posso? Eu tinha que ficar raspando todo dia, todo dia, que saco!<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Uma mulher masculina...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Toda hora tem que raspar debaixo do braço, a perna, eu quero música! Eu tenho muito pouco pelo debaixo do braço, e esqueço o tempo todo disso, esqueço de unha, esqueço de tudo. Eu tô doida por guitarra, meu Deus do céu, chega! Agora, acho uma delícia quem tá sem pelo, "ai, que gracinha", "uma gracinha ela". Mas isso não muda nada pra mim.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Não é um machismo da sociedade, que a mulher é obrigada a raspar aqueles pelos e o homem não?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Mas é o seguinte, agora vamos falar o lado bom disso: o pelo debaixo do braço geralmente dá cecê aquele cabeeeelo. Porque tem mulher que não é um cabelo, é um chumaço [<i>risos</i>]. Aí descobriram tirar o cabelo, olha que maravilha, ficou sem cabelo nenhum. Acho maravilhoso também, mas acho que tem que ser livre. Acho maravilhoso a perna lisinha, mais bonito que ela cheia de cabelo, embaralhando, fazendo trança. Agora, o homem fica bem, né?...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Isso causou falatório em 1980, e se aparecesse hoje uma mulher de braço cabeludo na TV ia causar o mesmo falatório que 30 anos atrás, não?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É, teve uma época que eu pintei o cabelo debaixo de um braço de rosa e o do outro de azul. Não consegui ficar porque começaram a manchar as camisas todas [<i>risos</i>]. As camisas ficaram azuis e rosa debaixo do braço.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Fez shows assim?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Fiz, falei: "Vou pintar o cabelo colorido, esse povo vai enlouquecer quando eu tirar a primeira foto assim". Eu já tava curtindo adoidado, né?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Os cabelos coloridos começaram por quê?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Porque eu era fã da Branca de Neve quando era criança, e ela tinha um cabelo azulão. Tudo que na minha infância eu quis fazer quando fosse grande, eu fiz. A primeira coisa era comer uma panela de brigadeiro. A outra era lamber e comer todo o bolo sem cozinhar ainda - a gente nunca podia comer o bolo antes, então preparei um bolo como tinha que ser e comi ele inteiro, devagarzinho. Deu uma dor de barriga! Essas duas coisas eu consegui, e a outra foi o cabelo da Branca de Neve. [<i>Nos Estados Unidos</i>] Passou uma mulher com um cabelo meio violetado, quando ela passou debaixo do sol eu agarrei ela e falei: "Where?". Eu não sabia falar inglês, ela tomou o maior susto, eu falei: <a href="http://www.youtube.com/watch?v=CUClgNs_uJU" target="_blank">"Your hair! I'm brazilian, singer, singer!"</a>. Aí ela, meio assim, escreveu, Manic Panic era o nome da tinta. E eu comecei a trazer pro Brasil. Agora consigo comprar aqui mesmo uma que é italiana, mas vende aqui, violeta.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Nunca mais deixou de pintar desde então?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Não. Já pintei de várias cores, já fiz aquela coisa de arara...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Tinha uma que era rosa...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É, e essa violeta tem uns cinco anos. [<i>o roadie Zeca lembra da tinta vermelha</i>] Vermelha, não, era "rose red", ficou um tempão. Era um rosa avermelhado.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Mas peraí, foi primeiro por causa da Branca de Neve, aí você gostou e manteve?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É, aí eu queria ficar com o cabelo colorido...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> E aí o Pepeu ficou também...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> O Pepeu sempre gostou das coisas que eu gosto, tem uma coisa meio de irmão ali, né? E, como ele também fica superbem de cabelo colorido, não vacilou e botou também. Depois ele ficou de louro e preto. A gente geralmente tem que descolorir o cabelo pra pintar, tinha muito isso. Teve uma época que eu pintei de preto, foi quando preto pra mim era coloridíssimo. Pra pintar de preto, é quando o preto entra como uma coisa supermaravilhosa, não como "volte ao normal" - normal onde? Eu não tenho normal. Tudo meu é anormal, graças a Deus.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Qual é a cor original?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É preto. Mas eu não tenho nada normal, graças a Deus. É tudo fora do normal. Normal?, eu não sei o que é normal. Normal é você ser criativo, livre, com responsabilidade, sabendo amar ao próximo como a ti mesmo. Isso seria o normal.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Vocês, de cabelo colorido, cantando essas músicas, eram vistos como os doidões da época, assim como os Novos Baianos tinham sido na década anterior?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É, é... É fruto, né? <br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Essa imagem continuou, não?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Continua... <br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Hoje não sei... Talvez sim, por você ser religiosa e manifestar isso...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É, no meu caso, apesar de falar muito das coisas de Deus, o povo acha hoje isso a maior loucura. E eu fico feliz, porque isso antigamente era a maior caretice. Virou uma loucura bacana...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> É uma coerência sua ao longo do tempo?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> Se a gente buscar ser espiritual, sempre tem que estar envolvido com alguma coisa, com algum altar. Não tem altar, vai direto pro Pai. Agora, pra fazer isso você tem que andar com ele. Esse lado eu acho o mais louco de todos, porque envolve você não perder sua identidade, não perder sua criatividade, não ficar religioso, não ficar chato careta. Pô, é um exercício.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Corda bamba...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">BB -</span> É. Mas dá. [<i>Nesse instante, a van chega ao endereço onde vai deixar Baby. Ela distribui beijos a todos, desce e volta para sua vida.</i>]<br /><br />*<br /><br />E aí, me conta? Conseguiu ler SEM preconceitos o que Baby Consuelo do BRASIL tem a dizer? Vamos passear nos Estados Unidos do BRASIL?Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-38459451086129283302010-10-17T14:14:00.000-02:002010-10-17T14:19:04.545-02:00vamos passear nos Estados Unidos do BrasilHá alguns dias, falei no Twitter que estava indo entrevistar uma artista muito especial - para uma reportagem que acaba de ser publicada pelo iG. Era <a href="http://migreme.net/rwi" target="_blank">Gal Costa</a>, uma das artistas mais <a href="http://migreme.net/rwj" target="_blank">importantes</a> da <a href="http://migreme.net/rwk" target="_blank">história</a> deste <a href="http://migreme.net/rwl" target="_blank">Brasil</a>.<br /><br />A certa altura da entrevista, Gal contou um episódio que não vou detalhar aqui (estará nos links acima), sobre uma briga em que se envolveu no trânsito, no auge do frêmito tropicalista, 1968, 1969, não sei exatamente. Ornada com o cabelo black power e o figurino exuberante da época, Gal (que afirma ser exímia motorista) entrou em conflito com um homem que, a partir de um gesto (obsceno) dela, desceu do carro, perseguiu a cantora, deu um tapa na cara dela e arrematou: "Ponha-se no seu lugar de mulher!".<br /><br />Era 1968, 1969.<br /><br />Como já cantou à mesma época outro tropicalista (negro, por vezes black power), muita coisa sucedeu daquele tempo pra cá. O Brasil aconteceu, é o maior, que é que há?<br /><br />Hoje é 2010. Vivemos num outro século, no qual descendentes de árabes proclamam que <span style="font-style:italic;">não</span> somos racistas, neodefensores (defensores?) dos direitos humanos denunciam o advento da "heterofobia", neopregadores antiaborto brotam dos esgotos, neofeministas (feministas?) vencem eleições defendendo a integridade física das mulheres contra candidatos (negros) que já praticaram violência contra mulheres. <span style="font-style:italic;">Não</span> somos mais misóginos. Em uma mulher como Gal Costa não bateríamos nem com uma for. Agredir Dilma Rousseff?, Marina Silva?, nem pensar!<br /><br />Mas aí acontece uma campanha eleitoral e de repente minhas vistas ficam turvas. <br /><br />Na televisão, vejo a cervejaria Brahma fazer gracinha com o fato consumado (fato?, consumado?) de que homens (machos, daqueles que coçam o saco) gostam muito mais de futebol (e de outros homens) - e de cerveja, é óbvio - do que de mulheres.<br /><br />Na "grande" mídia, leio uma famosa e formosa atriz convocando esses mesmos machos (que gostam de coçar o saco) a arrasar Dilma Rousseff nas urnas, quiçá violentamente.<br /><br />No Twitter, por fim e não menos chocante, ouço um chapa dizer que viu "uma patricinha imbecil" fazer "uma conversão tão estúpida com sua Pajero que merecia uma surra". Uma surra, entendeu? Um chapa esclarecido, percebeu? É 2010, e há gente disposta, ao menos retoricamente, a fazer com uma "patricinha estúpida" o mesmo que velhos pitbulls faziam com Gal Costa em 1969, 1968.<br /><br />O monstro da misoginia mudou de cara, mudou mil caras, mas ele segue habitando o mesmo pântano em que sempre morou, e está disposto a arreganhar os dentes diante do primeiro indício de se sentir ameaçado. O monstro da misoginia odeia o sexo feminino mais que tudo na vida dele (talvez odeie ainda mais o sexo masculino, mas essa é outra parte do assunto) - e o monstro da misoginia, por ter mil caras, ocorre em forma de homem heterossexual, de mulher heterossexual, de homossexuais em geral, de minorias sexuais as mais variadas. Ocorre em todos os formatos, cores e tamanhos.<br /><br />No início de 2010, homens e mulheres elegeram Marcelo Dourado o herói (ignorante, tosco, misógino, homofóbico) do <span style="font-style:italic;">Big Brother Brasil</span>. Em outubro de 2010, mulheres (e homens) tomam, nas ruas brasileiras em campanha ensandecida, o mesmo tapa na cara que Gal tomou em 1968, 1969, multiplicado por milhões.<br /><br />O monstro da misoginia tem mil faces - às vezes se disfarça de bicho-papão da homofobia, outras de dragão da xenofobia, depois de jaguadarte do racismo. O mostro de mil caras é um torturador nato, manja tudo de choque elétrico, pau-de-arara, telefone, bastão introduzido na vagina e/ou no ânus de quem ele diz mais detestar (há sempre algo de sexual no ódio do monstro de mil caras).<br /><br />O jaguadarte que venceu a Alice de Lewis Carroll (mas foi vencido pela Alice de Tim Burton) é pedófilo, mas nunca ninguém vai ficar sabendo disso. Misturando-se com a paisagem de cada ocasião, ele se traveste de fanático religioso, beata castiça, padre ou pastor que usa e abusa de Deus para cuspir no mundo seus ódios internos e segredos guardados. Ele é a favor da vida, desde que não seja a vida da mãe que acabou de abortar um pedaço de si própria - o jaguadarte é sempre, sempre, sempre misógino.<br /><br />Há poucos dias, disse a brava psicanalista <a href="http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2010/10/eu-nao-preciso-ler-jornais-mentir.html" target="_blank">Maria Rita Kehl</a>, em entrevista à revista "CartaCapital": "A ONG Católicas pelo Direito de Decidir me convidou para debater, e elas pensam assim: a criminalização do aborto é uma questão contra a liberdade sexual da mulher, ponto. Não pode usar camisinha, porque a Igreja também é contra. Então é uma questão de dizer: sexo só dentro do casamento e só para ter filho. É isso, que não está escrito assim, mas é o que está dito. Se não pode usar preservativo, não pode evitar filho, não pode nem evitar infecções, epidemias como o HIV que mata milhões na África, que 'a favor da vida' é esse?".<br /><br />Mas, ora, se é preciso ceder à pauta do monstro de mil caras e começar pelo beabá, façamos: todo bebê é concebido por uma mulher em associação com um homem. Todo aborto é feito por uma mulher com a participação (e/ou omissão) de pelo menos um homem. Bebês abortados são utilizados para demonizar e inculcar toneladas de culpa nas mentes femininas - exclusivamente das mentes femininas, como se os homens não participassem da concepção e do nascimento, ou do aborto. O abominável homem das florestas demoniza o aborto, mas não é porque queira defender a vida - ele quer é atentar contra ela, por intermédio do controle dos corpos (e das mentes) das mulheres. <br /><br />Os homens da cervejaria Brahma que gostam mais de cerveja e de futebol que de mulher são os homens que não assumem o pedaço de gente que injetam no corpo de "suas" mulheres - e preferem ir ao futebol com uma cervejinha na mão a acompanhá-las até a clínica clandestina de abortos.<br /><br />O dragão da misoginia (ele é macho, mas por vezes se disfarça sob o apelido de Mônica, Sônia ou, mais exótico, Weslian) não quer que ninguém saiba disto, mas todo ser humano carrega sua cota de responsabilidade pelos abortos que a humanidade comete, os físicos, ou políticos e os ecológicos. A mulher arranca um pedaço do seu corpo. O homem se omite, nos mais variados estágios: não assume o bebê, rotula de "vaca", "vagabunda", "puta" e "exploradora" a mulher que abortou, vez ou outra assassina e retalha o corpo da mulher que pariu. No mínimo, simula que o assunto não é com ele.<br /><br />O religioso celibatário, que para todos os efeitos nunca entrou no corpo de uma mulher (embora tenha saído de um, de uma) nem nunca concebeu nenhum bebê (e quantas mulheres do padre e quantos rebentos-bastardos-errantes de religiosos há por aí, Nossa Senhora Desaparecida!), tenta enlouquecidamente controlar o corpo feminino e a mente feminina, demonizando a mulher que abortou, supostamente sozinha. O monstro de mil caras da misoginia adora o disfarece da batina do padre, do hábito da freira, da bíblia do pastor. <br /><br />O(a) homossexual, frequentemente misógino(a), sente-se, ele(a) próprio(a), um aborto.<br /><br />O dragão da homofobia é irmão gêmeo da garatuja da misoginia, e os homossexuais são, por sinal, tanto quanto as mulheres, espezinhados e refugados por diversas religiões, mesmo por sobre a evidência simplória de que TODO homosseuxal (exceto os de proveta) foi concebido por uma relação sexual, heterossexual - por um homem (geralmente homofóbico) e por uma mulher (muitas vezes misógina). Diariamente, heterossexuais concebem homossexuais, apenas para no futuro abandoná-los à deriva.<br /><br />Se esses homossexuais ficarem mais propensos ao suicídio e levarem a cabo o desespero, religiosos pisarão em seus caixões, vociferando feito cães raivosos contra o "pecado" do suicídio, a infâmia da sodomia, o horror ateu do amor homossexual. Para todos os efeitos, nenhum religioso jamais tocou sexualmente o corpo de outro homem - nem o corpo de um menino (ou menina) que, menos forte do que ele, não conseguiria jamais contar lá fora o que se passou nas alcovas de território "sagrado". A cruzada antiaborto e anticasamento gay jamais aceita o desafio de debater a pedofilia e o abuso sexual.<br /><br />Uma brasileira candidata a presidente tem sido apedrejada em praça pública, acusada de todos os vilipêndios - "abortista!", "lésbica!", "corrupta!", "bígama!", "assexuada!", "homofóbica!", "terrorista!", "assassina!", "inimiga da ditadura civil-militar!"... 99,99% de seus não-eleitores nem sequer suspeitam (ou será que fingem que não, qual cabeças de um monstro de milhões de bocas arreganhadas?) que são misógino(a)s praticantes, do dia da concepção até a noite que morrerão. <br /><br />Nalgum momento da década de 1970, essa mulher foi "barbaramente torturada" por aquela ditadura, como ela mesma já atirou no rosto liso de um político do partido que se autobatizou DEM, tantando se travestir de "democratas", mas aproximando-se em ato falho freudiano do "demo". José Serra é do bem (ou do dem, do DEM, do demo?). À fogueira, quem deve ser remetida é a BRUXA que espelha nela todas as nossas mazelas e algumas mais.<br /><br />Talvez ela seja uma ou algumas ou muitas daquelas coisas que os apedrejadores a acusam de ser. Talvez nem seja.<br /><br />(A propósito, aqui no Brasil artistas empenham prestígio ligando para Lula quando querem evitar o apedrejamento de uma mulher iraniana, mas não exibem nem longinquamente a mesma indignação quando o apedrejamento é na esquina ao lado, ou dentro da própria casa. Aqui e agora, onde há fumaça, não há fogo - no máximo há fogo-de-palha. Como cantava Gal Costa em 1968, 1969, atenção, menina, precisa ter olhos firmes para esta escuridão. Porque tudo é perigoso. Tudo é divino. Maravilhoso. É preciso estar atenta e forte. Não temos tempo de temer a morte.)<br /><br />Talvez Dilma seja uma ou algumas ou várias das coisas de que os apedrejadores a acusam de ser. Mas não é só ela. Eu também sou. Você também é (mesmo que seu nome seja Reinaldo Azevedo ou Otavio Frias Filho). Um mundo onde os indivíduos não encaram e menos ainda enfrentam suas próprias idiossincrasias e suas próprias responsabilidades é o mundo de indivíduos que vão buscar "abrigo" nos diversos fanatismos religiosos (ou no fanatismo ateu, futebolístico, musical, televisivo, jornalístico, cinéfilo, corruptor, ladrão, matador-de-aluguel, acumulador de dinheiro - tanto faz).<br /><br />O desafio que aguarda Dilma Rousseff é gigantesco. Assim como Weslian Roriz, Mônica Serra e Soninha Francine despontam como paradigmas lastimáveis da submissão feminina aos humores machistas e misóginos de "seus" homens, maridos, patrões e chefes, cá entre nós, o mesmo perigo ronda a própria Dilma Rousseff, em relação a Luiz Inácio Lula da Silva. A postura e a atitude que ela tiver ao cabo deste magnífico (embora escabroso) segundo turno norteará seu futuro de independência (ou não) em relação ao(s) seu(s) mentor(es). E em relação a nós. E a ela mesma, Alice brasileira de 2010, acima de qualquer outro indivíduo.<br /><br />Eu votarei em Dilma Rousseff, com o mais profundo dos meus entusiasmos e das minhas convicções. E aposto todas as minhas fichas em que, ao cabo de tanta luta, tanto esforço, tanto sangue, tantas lágrimas, teremos o, ou melhor, A presidente da república mais INDEPENDENTE da história deste país. E saberemos honrar a independência dela com a nossa própria, como já começamos a fazer em relação ao seu antecessor.<br /><br />Abolição de escravatura é um negócio formidável, que não tem retorno. Ao futuro (e obrigado, dona Gal, pela bela, triste e violenta história que a senhora desenterrou de seu armário de ossos, e que a ajudou a ser quem é como artista; não se canse nunca, por favor, dona Gal, nós precisamos de você).Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-4994041183746635062010-10-16T17:20:00.003-03:002010-10-16T18:02:38.974-03:00eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz"80% dos brasileiros, pelas pesquisas, consideram o governo Lula bom ou ótimo. Não é curiosíssimo que a mídia não faça outra coisa senão dizer que este é o pior governo do mundo? Então que valor tem a opinião pública? Que valor têm esses 80% de opinião pública? Nenhum. A mídia não tem nenhum respeito pela verdadeira opinião pública, que é a opinião dos cidadãos." Assim falou a filósofa Marilena Chauí, num dos <a href="http://www.youtube.com/watch?v=6wTIRvRLn84&feature=player_embedded" target="_blank">manifestos</a> que tornou públicos - coerentemente, não pela mídia tradicional, mas por intermédio do anárquico e caótico YouTube.<br /><br />Entre várias das falas dela, esta foi a que calou mais fundo dentro de mim - apesar de esse tema, a manipulação por parte dos controladores daquela que é a minha profissão (o jornalismo), frequentar obsessivamente meus pensamentos e sentimentos e reflexões nos últimos muitos anos (oito, no mínimo).<br /><br />Calou fundo em mim porque o raciocínio que ela faz é muito, muito, muito simples. Essa fala de Marilena demonstra que a sanha sanguinária da "grande" mídia a que ela se refere contra Lula não é dirigida especificamente a Lula, a ao cidadão-presidente Lula. A espuma antilulista que baba da boca da "grande" mídia vem cuspida contra 80% dos brasileiros (me incluo entre eles). Dirige-se, em última instância, ao Brasil como um todo. É, pois, uma fúria suicida.<br /><br />Exemplo quente e eloquente é o desenlace recente da relação entre Maria Rita Kehl e o "Estado de São Paulo", logo depois de ela ter publicado naquele jornal o texto <a href="http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101002/not_imp618576,0.php" target="_blank">"Dois pesos..."</a>. Lúcido, sóbrio e oposicionista (quero dizer oposicionista ao Partido da Imprensa, atualmente travestido de demotucanato), o <br />artigo deflagrou todo um processo freudiano no seio da "grande" imprensa paulista.<br /><br />Não à toa, Maria Rita Kehl é psicanalista, e não jornalista - fez por nós, jornalistas, o que não tínhamos coragem e força, sozinhos, para fazer, intimidados que somos cotidianamente diante de nossos patrões. O processo psicanalítico (sim, o Brasil está deitado no divã, se é que ainda cabe essa imagem-clichê) é tão interessante que trouxe notoriedade merecida à formidável profissional que é Maria Rita. "O que tem de legal é que, por exemplo, este meu artigo foi mais lido que qualquer outra coisa que eu jamais tenha escrito. Se ele tivesse ficado apenas no 'Estadão', ele teria sido lido, mas jamais deste jeito. Isso é uma coisa muito legal", afirmou ela em entrevista à minha querida (e dissidente) "CartaCapital", num texto denominado <a href="http://www.cartacapital.com.br/politica/a-campanha-eleitoral-assumiu-um-tom-fascitoide-diz-maria-rita-kehl" target="_blank">"A campanha eleitoral assumiu um tom fascistóide, diz Maria Rita Kehl"</a>.<br /><br />O bonito nesse imbroglio todo é que o "Estadão" acabou por ser honesto, mesmo em querer, quando trouxe à tona, via desligamento da colunista, a ditadura que segue em vigência no interior da "grande" mídia brasileira em pleno 2010, nada menos que 25 anos após o término oficial do regime autoritário/repressivo civil/militar instalado no Brasil em 1964. <br /><br />Não sou nenhum especialista em Freud, mas não seria esse vacilo do "Estadão" o famosíssimo expediente do "ato falho", o mesmo que levou José Serra a cometer outro dia um "eu nunca disse que sou contra o aborto, porque eu sou favor ", quando queria dizer exatamente o oposto? O ato falho se aprofundou nos dias seguintes, porque a exposição maciça do artigo via internet levou o texto de Maria Rita (e do "Estadão") ao conhecimento de gente que se considera "informada", mas por outros expedientes jamais teria tido acesso às ideias (simplíssimas, assim como as de Marilena Chauí) nele contidas.<br /><br />O caso expôs nu e cru, em síntese, o estrangulamento ditatorial e a falta dramática de liberdade em que se encontra todo e qualquer jornalista, de qualquer coloração ideológica, que se encontre hoje trabalhando no conglomerado para-oficial GloboVejaFolhaEstado. <br /><br />Mas quem milita no "Estadão" sabe que o corte sumário de Maria Rita após a publicação (e repercussão) do artigo deu origem a uma avalanche de cancelamentos de assinaturas. E quem trabalha no "Estadão" sabe o clima de caça às bruxas que vigora lá dentro por esse caso, mas também além e independentemente dele.<br /><br />Em 2006, por causa da chamada "crise do 'mensalão'", eu havia feito o mesmo com minha querida "Folha", meu ninho de nascimento, desenvolvimento e ascensão como jornalista. Eu já havia saído da "Folha" para a "CartaCapital" em dezembro de 2004. Em 2006, cancelei minha assinatura após 16 anos de leitura e devoção consecutivas e ininterruptas - por muitos motivos, mas inclusive pela teimosia de não querer desembarcar, diante das primeiras adversidades, do presidente no qual eu havia votado, também ininterruptamente, desde 1989. Todo mundo sabe que o processo de cancelamento de assinaturas tem sido uma sangria constante, e maciça, desde pelo menos o malfadado "mensalão". Quem trabalha na "Folha" hoje sabe o que é viver o constrangimento de se identificar como jornalista de lá e, não poucas vezes, ser xingado de "reacionário" ou "fascista". Funcionários do antigo sonho dourado de todo jornalista hoje têm de conviver com a vergonha de trabalhar na "Folha", coisa impensável até, pelo menos, os anos tucanos de FHC.<br /><br />Quem trabalha na "Veja" vive os mesmos dissabores, de forma mais dramática e há muito mais tempo, a ponto de às vezes não ser possível dissociar a "Veja" (e sua editora, a Abril) de quem trabalha como jornalista lá dentro. <br /><br />Sobre a(o) Globo nem me atrevo a lançar palpite, tão distante é a (ex-)"vênus platinada" do meu dia-a-dia. Mas Hildegard Angel (colunista social, ex-global, mas também <a href="http://www.cartacapital.com.br/politica/radical-chique" target="_blank">irmã e filha de gente assassinada pela ditadura civil-militar</a>) falou, dia desses, algo sobre funcionários da rede terem de assinar contrato com cláusula impedindo-os de se pronunciarem politicamente - não posso afirmar que é verdade, mas, supondo que seja, alguém conhece forma mais explícita de ditadura que a mordaça político-ideológica?<br /><br />São, todos esses, casos exemplares de comportamento suicida. Tudo isso é suicídio. Ou, no mínimo (e aí não se espante nem se diga surpreso quem anda sangrando e perdendo assinantes por segundo), há aquela frase de Joseph Pulitzer (1847-1911), inúmeras vezes reproduzida no Twitter ultimamente: "Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma". <br /><br />Mas não entremos nesse mérito apavorante, prefiramos acreditar que essa grande tragédia se trata mais de suicídio que de mercenarismo. Se for assim, o que temos assistido no Brasil nestes anos 2000 é resultado do ódio dirigido pela "grande" mídia a si própria, espelhada em (no mínimo) 80% do Brasil, rebatida na figura-ícone de Lula.<br /><br />Quero dizer com isso que a "grande" mídia deveria pular para dentro do barco de Lula, tornar-se adesista, jogar a toalha, ser submissa a Lula como a imprensa paulista é subserviente a José Serra e a imprensa mineira é capacha de Aécio Neves? Não (até porque, admito meio maquiavelicamente, esse ódio todo tem sido responsável por parcela interessante do desabrochar, do desenvolvimento e do bom desempenho de Lula - e de no mínimo 80% de nós, e do Brasil perante o Brasil e perante o mundo). Bastava não espumar ódio. Bastava criticar e combater (se era mesmo o caso de a "grande" mídia ser, em peso, partido de oposição, como chegou a defender publicamente a atual presidente da Associação Nacional de Jornais, Judith Brito, egressa da "Folha") com comportamento racional, sóbrio, equilibrado, justo, coerente.<br /><br />O ódio contra 80% do Brasil é um ódio suicida. Os poderosos-chefões que acreditam, esúupida e ignorantemente, combater a figura de Lula estão combatendo o país que pariu a eles próprios (ou seriam esses poderosos-chefões estrangeiros camuflados, ou agentes-laranja de estrangeiros clandestinos enciumados do Brasil, ou temerosos de perder os royalties bilionários do pré-sal?). Se são brasileiros, estão combatendo a eles mesmos. Suicídio.<br /><br />Faço todo esse passeio para chegar a concluir o que calou fundo em mim na fala de Marilena Chauí, essa nobre filósofa não por acaso detestada apaixonadamente (ódio É amor?) por nove entre dez poderosos-chefões (misóginos, eu ouso acrescentar) da "grande" - e envelhecida - mídia.<br /><br />Nós, brasileiros (e especialmente nós, jornalistas), não queremos a sua morte, senhora dona persona. Não queremos o seu fim, senhora "grande", tradicional e cerimoniosa mídia. Há tempo hábil para que a senhora desperte desse sono narcotizado e entenda que não está lutando contra Lula e a candidata dele (nossa) - mas sim contra o país que pariu a senhora (ou devo excluir desse rol a poderosa-chefona Globo, fundada sob capital oculto da Time-Warner, sobre alicerces norte-americanos clandestinos?). Nós precisamos da senhora, senhora dona "grande" mídia, e não vemos a hora em que venha a merecer novamente o adjetivo, sem aspas, de Grande, quiçá nossas assinaturas de volta. Até daqui a pouco.<br /><br />P.S.: Não é por mera coincidência que Marilena Chauí e Maria Rita Kehl são mulheres, assim como a candidata Dilma Rousseff. A "grande" mídia, apesar dessa denominação feminina travestida, tem sido exclusivamente do sexo masculino, do descobrimento do Brasil até o dia de hoje. Amanhã, ninguém sabe.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-60742245034362728682010-10-15T16:04:00.005-03:002010-10-15T18:34:09.332-03:00escrevendo a nossa história com neonQuando entrevistei o rapper Emicida para o iG, menos de um mês atrás, optei por produzir um <a href="http://ultimosegundo.ig.com.br/aos+25+anos+emicida+inaugura+o+rap+brasileiro+com+autocritica/n1237784832706.html" target="_blank">texto corrido</a>, mais um complemento em que ele comentava, <a href="http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/musica/a+nova+mixtape+de+emicida+faixa+a+faixa/n1237784840969.html" target="_blank">faixa-a-faixa</a>, sua mixtape "Emicídio".<br /><br />Entre os muitos detalhes que ficaram de fora da edição extraída de uma conversa de 2h48min, há um trecho de diálogo que permaneceu inédito, porque expunha o entrevistador (eu), e eu (o entrevistador) não sabia como encaixá-lo no texto corrido. E eu quero agora tirá-lo do ineditismo, no formato pingue-pongue, tal qual aconteceu no aqui-e-agora da entrevista.<br /><br />É o seguinte:<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Quando escrevi essa música ("Você Não Faz Ideia") eu tava sentado na calçada do metrô, esperando alguém. Levantei pra atravessar a rua, e aconteceu um bagulho muito louco que sempre acontece, cara: você vai atravessar uma rua, quem tá no farol já olha pra você e já começa, de uma forma sutil - os caras acham que a gente não percebe -, a fechar o vidro, tipo rezando pro farol abrir, tá ligado? Você pega um táxi e o cara te faz milhares de perguntas, e dependendo do lugar que você tá indo o cara fala que não vai. O Fióti (<i>irmão de Emicida</i>) acabou de passar por um bagulho desses, o taxista falou que não levava o cara. Por quê? Porque o cara é preto. "Não leva por quê?" O cara não responde.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> O cara não responde nada?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Não responde. Tipo, "ah, não, não dá pra eu levar duas pessoas". É um bagulho bem comum, embora tenha uma parada que a gente brinca até, mas é bem séria: os pretos, na sociedade, eles são vistos como se fossem ratos. Você vê que tem vários ratos que são famosos, tipo Mickey Mouse (<i>risos</i>), o Tom & Jerry, o Pink & Cérebro - as pessoas andam com camisa dessas coisas. Só que, se as pessoas veem um rato na rua, a primeira coisa que elas pensam é em matar e sair de perto. Com os pretos rola uma coisa muito parecida. As pessoas escutam Jimi Hendrix, andam com camisa do Bob Marley, vão a shows de rap, e quando elas encontram com a empregada, com o porteiro, com um preto na rua, a primeira coisa que fazem é pensar "mano, esse maluco vai me roubar" e atravessar a rua pro outro lado.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Qual é o sentimento do preto quando ele tá nessa situação? Não só de ver o cara se afastando, mas... Digo, o desencontro é das duas partes, não é?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> É, já teve momentos de eu ficar muito mais puto. Obviamente eu fico puto, tá ligado?, acho uma situação ridícula. Mas eu fico, tipo, que idiota, se eu quisesse roubar ele eu não ia vir de frente, saca? Eu me pergunto mais por quê, pô, e quando essa porra vai mudar? O Brasil vai mudar em 50, 100 anos? Tem muitas ideias pra ser quebradas, a gente tá no começo dessa briga ainda.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> O que eu queria te perguntar, na verdade, é outra coisa. Vou me expor um pouco. A coisa que mais odeio na vida é racismo, mas um momento muito difícil e sofrido da minha vida, recente, foi um dia que eu descobri que, se eu descuidar, eu posso ser o cara que atravessa a rua...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Sim.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> ...Eu vejo alguém lá longe e a reação automática é atravessar a rua... Aí, como eu posso dizer que não sou racista se intuitivamente eu ajo assim? Mas, quando percebo isso, o que eu fico pensando é o seguinte: e aquele cara lá do outro lado da rua, o que será que ele pensou de mim nessa hora?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Total.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> É isso que eu quero perguntar na verdade: o que você pensa quando o branco vem vindo do outro lado e... começa a se afastar? O que você pensa do branco?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Cara, tem uma música do Tio Fresh, do SP Funk, que ele fala: "Desde a época da balança já havia uma matança/ olho para os brancos e às vezes eu penso em vingança". É um bagulho muito pesado, é muito ruim quando você percebeque aquela pessoa tá com medo de você, e você não é ameaça nenhuma pra aquela pessoa. Várias vezes você nem notou a presença daquela pessoa, e só nota quando tem um gesto desse tipo, sabe? <br /><br />Tudo isso ainda se soma ao fato de a gente viver numa cidade muito violenta, você não sabe quem é quem, quem é o quê. Somando tudo, fortalece vários estereótipos, e aí as pessoas ficam reféns desse tipo de atitude. A minha sensação é bem mais de tristeza, sabe? Fico puto, porque, por exemplo, eu quero pegar um táxi e os taxistas não param pra mim. Fico puto mais porque eu deveria chegar num lugar em tal horário e não vou conseguir por causa desses filhos da puta que tão pensando que eu vou roubar eles, tá ligado? É uma coisa assustadora, mas a situação em si eu já começo a encarar como uma extremamente comum, "essa porra não vai mudar hoje". <br /><br />*<br /><br />O trecho que eu queria mostrar era esse, mas a conversa prosseguiu depois disso, e transcorreu maravilhosamente, como todas as vezes em que já entrevistei esse jovem artista paulistano. A mãe dele, Jacira, chegou ao estúdio vinda da hemodiálise e passou a assistir e a participar do papo. Já tínhamos falado sobre os negros e sobre o racismo, em seguida conversamos também sobre as mulheres e a misoginia, a propósito do rap "Rua Augusta". Foi assim:<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Cara, essa aí cê vai ver, a gente vai fazer um vídeo dessa música que vai ser foda. A gente vai falar lá com aquelas minas da Daspu pra elas participarem, sabe? Vamos fazer um documentário. Boa parte dos shows que eu fiz em São Paulo nesses últimos tempos foi na rua Augusta, e eu fico olhando os detalhes assim calado, fico vendo as minas lá, e fico imaginando como é a vida das putas durante o dia. Imagino as minas se preparando pra ir pra lá, ficando ali, o tanto de coisa que elas tão sujeitas ali. Todo mundo tem isso aí como se fosse uma vida fácil, mas, pô, não é fácil, não. Já vi várias vezes os caras passarem zoando mesmo, jogando bagulho nas minas, ovo, pedra.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> É muito preconceito também, né?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Porra, mano, pra caralho. E eu fiz uma música que fala disso, tem um verso que fala essa parada, que todo mundo fala que é errado, mas foda-se se é erro, "quem fez o certo foi Jesus, e cês agradeceram pregando ele numa cruz".<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Muitas vezes quem fala que é errado usa também, né?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> É, então, a música fala disso também, "o homem bom que não aguentou ser solitário". Fala bem disso, mas com uma visão bem minha, não de "elas são putas", mas, tipo, de prestar atenção em todos os detalhes.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS - </span>Também ali você é um cara que tem identidade na periferia passeando pelo centro...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Passando pra lá, é, porque, vindo de lá, eu conheço várias minas que são putas.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Você diz daqui (<i>a entrevista acontece na zona norte de São Paulo</i>), ou de lá mesmo?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Conheço de vários lugares, mas eu conheço da quebrada mesmo. Aí você vê os bastidores da coisa, sabe? Cê não vê a prostituição..., eu não consigo ver uma puta como vê, sei lá, um cara que realmente come as putas. Mano, quando eu vejo uma puta eu penso em tanta coisa, tá ligado? Penso nos filhos que ela tem pra criar, na casa de onde ela veio, se ela tá com frio. Eu penso em todos esses bagulho. A imagem de uma prostituta pra mim é um bagulho muito mais vasto. É muito simplista você ligar aquilo só ao sexo, que é um detalhe.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Quem vê uma puta só como uma puta não tá enxergando nada...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Não tá enxergando nada, é isso aí. Então, por ter visto essas minas fora dali, eu consigo ter essa visão, da mina que o marido abandonou e ela teve que se virar de alguma forma e o que encontrou foi isso... Porque a rua abraça, né? Elas têm que ganhar dinheiro e tão ali no meio de qualquer jeito. Muitas vezes é uma vida zoada... Porque ninguém sonha em ser prostituta com oito anos de idade, tá ligado? É uma profissão que realmente você vai parar lá dentro.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Nessa idade, certamente chega levada por outras pessoas.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Sim.<br /><br />*<br /><br />Nesse embalo, quase imediatamente o espelho refletiu para o lado que faltava naquele triângulo: os homossexuais, a homofobia. E eu tenho certeza que todo mundo entendeu o que estava falando, mesmo que eu não tenha tido coragem de declarar ali, cândida e textualmente, que, sim, eu sou homossexual. Foi o seguinte:<br /> <br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Se você abrir o leque, mano, tem tanto tipo de preconceito. Eu fico lutando, igual essa parada que você falou, "eu fico me policiando porque, se eu moscar, viro racista", e eu fico na mesma coisa comigo, porque se eu vacilar eu trato alguém diferente. Cê tem que ficar se policiando, isso aí é bem comum. Num momento tem o bagulho da proteção, puta, a gente nunca teve nada, a gente morou numa favela a vida inteira, não tinha comida, não tinha tênis, não tinha nada, e de repente você vê as coisas acontecendo. Um tênis, na favela, é a maior conquista que um cara pode ter, mano. Por isso cê vê todo mundo de tênis branco, limpinho - se é branco, limpinho, "mano, esse tênis é novo!". E com um tênis novo você é tipo Antônio Ermírio de Moraes, tá ligado? <br /><br />Então as pessoas se apegam muito a isso, mas expõe de uma forma simples uma conquista, e, se você olhar com atenção, é uma pobreza de espírito muito grande sua maior conquista ser um tênis, uma garrafa de champanhe. Isso realmente muda a sua vida? Os caras se escondem atrás disso, e é mais uma forma de preconceito: cê tá começando a ir pro lado das coisas que combatia. Embora você chame as minas de "vagabunda" ou "vadia", você não gostaria que falassem assim com a sua mãe e com sua irmã.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS - </span>E nisso a gente acaba descobrindo que todo mundo tem preconceito, né? A diferença é que uns policiam os seus e outros não.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Sim, não sei quem falou pra nós uma vez, que é prova do preconceito... Acho que foi talvez minha mãe que perguntou: sabe a diferença do homossexual e do viado? Os caras falam que viado é o filho dos outros.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Jacira -</span> Acho que fui eu...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> É, minha mãe que falou.<br /><br />J<span style="font-weight:bold;">acira -</span> Eu disse, lembro que tava preocupada com a sua irmã, e um dia eu disse assim: será que ela tá vivendo lá no meio dos veado, meu Deus do céu? Aí você falou: "Mas a senhora não disse que é preconceito?". Acabou de descobrir que eu tenho preconceito... Só porque até então eles não tinham adentrado a minha casa, puta que pariu, olha, eu também penso do mesmo jeito: tem que respeitar e tudo, desde que eles se mantenham da minha porta pra fora.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Esse é o funcionamento do preconceito, seja qual for...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Total, cê vê como que o bagulho entra?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> E a gente só tem preconceito contra o que não conhece (<i>Jacira ri</i>)... Você não sabe como vive uma puta, ou um gay, ou um negro, e aí não tem jeito.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Tem a ideia assim: puta dá, viado é promíscuo e preto rouba. Já era. A ideia simples é essa. E aí é bem isso, cê vê como o preconceito tá ali. Quando é próximo a você, você tenta cuidar. Por exemplo, eu tenho um primo que é gay, e a mãe dele fala que ele é deficiente mental, mano.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Jacira - </span>Ela trata ele.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Ela trata ele com remédio!, tá ligado?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> Como se fosse doença...<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Puta, mano, e ninguém assume que o cara é gay. É só falar. É só deixar o cara. O cara é gay, mano. E pior, que quanto mais cê tenta esconder mais fica aparente. Pô, todo mundo sabe, se você ficar 15 minutos na casa dele você vai se ligar que, pô, o cara é gay. <br /><br /><span style="font-weight:bold;">PAS -</span> De deficiente mental não tem nada?<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Emicida -</span> Não tem nada, ele é normal, tá ligado? Mas a mãe dele vai ficar te explicando, te dá milhares de explicações inúteis. Cê vê o receio dela de assumir pro mundo que tem um filho gay, que é um receio que o filho dela não tem, tipo "foda-se, sou gay".<br /><br />*<br /><br />Então, é mais ou menos isso que eu queria dizer, nada mais é preciso acrescentar. Aliás, sim, só uma coisa, ou duas: não é maravilhoso descobrir como mulheres, negro(a)s, homossexuais (e outras tantas ditas "minorias") podem se sentar numa mesma mesa e conversar de modo aberto, pacífico e harmonioso, se assim quiserem? A quem mesmo interessava desesperadamente nos separar e nos desunir?Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-43151002751233658642010-10-14T17:13:00.001-03:002010-10-15T11:48:55.975-03:00osso duro de roerAlgumas coisas que eu (acho que) entendi sobre "Tropa de Elite 2":<br /><br />a) No primeiro filme, gostei da dubiedade com que era desenhado o Capitão Nascimento. Era sempre possível dizer que o público que se identificava com ele o fazia por conta própria, de suas próprias perversidades. Agora, não, me parece óbvio que Capitão Nascimento é o herói particular de José Padilha. O cineasta defende com unhas e dentes seu sanguinário personagem. É uma postura corajosa (é preciso muito peito para defender de peito aberto e cara limpa alguém que represente a direita mais sanguinolenta). E uma postura perigosa (porque a direita é sanguinolenta, ainda que sob o pretexto repetido mil vezes por Padilha, de que a direita sanguinolenta é a direita sanguinolenta por "culpa" do "sistema"). Para variar, é uma postura catártica.<br /><br />b) Acho curioso notar, pelos comentários que tenho ouvido por aí, que "Tropa 2" se insinua bem mais unânime que "Tropa 1" - "um puta filme", já ouvi murmurar até quem dizia odiar o primeiro anos atrás. Isso me faz me indagar sobre a relação que nós, espectadores, mantemos com esse perturbador Capitão Nascimento. No primeiro filme, era possível classificar de "fascista" o vizinho do andar de baixo, caso ele vibrasse com a "ultraviolence" do personagem sufocando "bandidos" em sacos plásticos. Mas e agora, que o Capitão Nascimento volta aparentemente mais sutil, embora tão feroz e tão assassino quanto sempre? Conseguiremos gostar de alguns gestos do Capitão Nascimento, e mesmo assim reconhecer nos atos fascistas dele pedaços dos nossos próprios atos fascistas cotidianos, subterrâneos, clandestinos - e quase nunca nomeados? O Capitão Nascimento, esse espécime nada raro da direita sanguinolenta, somos nós mesmos?<br /><br />c) Acho graça das inúmeras vezes que ouvi falar que o "2" é um filme "sobre a corrupção dos policiais e dos políticos" - alôôôô, tem alguém aí?! "Tropa 2" é um filme sobre a corrupção de TODOS NÓS. Quem paga as milícias somos nós, quem elege os políticos somos nós. Milícia, polícia e político apertam o gatilho que NÓS determinamos que seja apertado, mas não temos coragem de apertar com nossos próprios dedos - assim como o fato de alguém fatiar por nós o boi que a gente come não nos faz menos assassinos de bois (e frangos, porcos, coelhos, codornas, alfaces, carvalhos, eucaliptos, cabreúvas). Quem tá na selva é para se alimentar, quem tiver de sapato não sobra.<br /><br />d) Nosso "espaço público" raramente mistura esfera pública e esfera privada com propriedade e lucidez, e José Padilha é um dos que sabem fazê-lo brilhantemente. Em "Tropa 2", ele demonstra que o imbroglio político-policial que provoca uma insuportável carnificina no Rio de Janeiro tem, como uma de suas origens centrais, um drama da vida privada - um triângulo amoroso, simples assim. Prédios, máquinas, cédulas de dinheiro, metralhadoras e instrumentos de tortura foram e são TODOS fabricados por nós. Mesmo na esfera pública, somos William Shakespeare e Nelson Rodrigues. Se Lula for o "nosso" rei Lear, Cordélia, Goneril e Regan poderiam ser Marina Silva, Dilma Rousseff e Erenice Guerra, não sei se necessariamente nessa ordem.<br /><br />e) Não entro em detalhes para não estragar o filme de quem ainda não viu, mas o mais bonito e audacioso de "Tropa 2", na minha opinião, é a aliança firmada entre a esquerda e a direita para detonar o "centro" - o verdadeiro inimigo comum, o monstro de mil caras que não ousa vir à luz nem muito menos declinar seu nome e sobrenome. Não sei em quem o Padilha vota, mas seja em quem for me parece uma aposta tudo-ou-nada, arriscada, um salto talvez suicida. Do meu ponto de vista, se for eleito o "centro" - o monstro de mil caras, José Serra, & seus demistas-fundamentalistas de esgoto -, a quadrilha disfarçada de cordeira estará de volta ao poder central de que sempre desfrutou no Brasil, e Padilha terá perdido sua alta aposta, fragorosamente. Por outro lado, se vencer Dilma Rousseff, o "centro" que não ousa dizer seu nome estará exposto nu e cru à luz do dia, na vice-presidência e em seu partido, PMDB, que até agora eu não consegui decifrar em que banda toca. Nesse caso, quem sabe, o Padilha até ajuda o PT a enquadrar seus próprios monstros-de-mil-caras, e sai empatado do truco.<br /><br />f) O Padilha é bacana porque arrisca, arrisca alto, arrisca tudo. O final romântico do filme me faz não conseguir decidir se o Padilha é simplesmente um pirado romântico ou se é alguém que já enxergou uma luz no fim do túnel. A gente, Brasil, precisa se arriscar mais, não temos tempo de temer a morte, é preciso estarmos atentos e fortes.<br /><br />g) O Padilha não é bacana, porque estiliza a favela como qualquer tem feito para ganhar seus tostões qualquer cineasta tipo "estética da fome" (ó, que oásis continua sendo "Cinco Vezes Favela", esse lindíssimo filme espontaneamente nacional). O Padilha não é bacana, porque estiliza a violência como o faz qualquer filme vagabundo de Hollywood. A chuva de balas e o rio de sangue em "Tropa 2" me desestruturam, são insuportáveis para mim. Nunca assisto a filmes violentos de Hollywood, porque detesto a indústria de guerra, chumbo e sangue que os Estados Unidos vendem como "cultura" e/ou "entretenimento" supostamente inofensivo. Já está evidente que José Padilha almeja o trono de imperador da "nossa" Hollywood, de rei Lear da Renascença do cinema brasileiro - e vai ser um saco para mim ter que ficar vendo às dezenas seus filmes de carnificina - só porque sei que há conteúdo do mais massudo por baixo do vendaval de vísceras que ele exibe com prazer sadomasoquista.<br /><br />h) Não aguento mais esse papo de "sistema". Para com essa lengalenga de "sistema", seu Padilha - ou será que estou confundindo você com seu personagem-(anti-)herói, o Capitão Nascimento? Pois então, Coronel José Nascimento Padilha, o "sistema" é o teu (e o meu) sistema neuronal. O "sistema" é nervoso, é psíquico (e por vezes psicopata). Vem de dentro e sai vomitado para fora, e não vice-versa. Cidadãos corruptos elegem políticos corruptos e delegam a policiais corruptos o extermínio daqueles que eles acreditam ser o "mal" - curiosamente, o "mal" está sempre lá fora, lá longe, lá no prostíbulo, lá na boate gay, lá na favela, lá no Nordeste - nunca está aqui dentro de casa, dentro do cérebro. 99% de nós acreditam que <span style="font-style:italic;"><span style="font-style:italic;">não</span></span> somos racistas, e 99% de nós conhecemos gente que já sofreu racismo (só para ficar no exemplo mais óbvio). Na contramão, cidadãos honestos elegem políticos (que delegam policiais) honestos, que se empenham por melhorar as condições de vida de todos nós (e não só da nossa #patotinha, de nossa #panelinha - ei, você aí, leitor!, conhece alguém que empobreceu durante o governo Lula? Se conhece, me apresente, por favor). Às vezes, o cidadão corrupto que faz tudo isso convive no mesmo corpo com o cidadão honesto que faz tudo isso ("Clube da Luta", Hollywood, misoginia, manja?) O inferno não somos os outros, o inferno é nóis, tá ligado? Starts with u, tudo começa por nós mesmos.<br /><br />P.S. (em 15 de outubro de 2010): Segundo me conta no Twitter @jumontflores, José Padilha afirmou ontem num debate que votará nulo. Só consigo pensar que é o incrível caso do cineasta que não entendeu os próprios filmes. O diretor faturou R$ 28 milhões com "Tropa de Elite 2", em apenas uma semana. Para ele, que ganhou notoriedade internacional com o documentário "Garapa", sobre a miséria extrema no Nordeste brasileiro, não parece ser significativo o fato de 28 milhões de conterrâneos terem saído da miséria extrema nestes últimos oito anos. Tiremos nossas próprias conclusões, começa pela gente.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-2731541343850190552010-10-12T14:34:00.001-03:002010-10-12T14:35:18.446-03:00sem lenço, sem documento (ou: a vida não se resume a festivais)O Brasil caminha para frente a passos largos, e essa é uma constatação que os não-tolos já encampam com facilidade, sem resistências e com júbilo. No Brasil de 2010, um festival de rock que procura beliscar a mitologia de Woodstock o faz sob os discursos da ecologia e da sustentabilidade - eis um ganho indelével, indubitável. O SWU trouxe em sua embalagem um mundo de materiais recicláveis, telhados verdes, banhos de sete minutos e cápsulas para coletar cinzas de cigarro - é um imaginário sedutor, fascinante mesmo, e não há de causar mal nenhum a uma juventude na qual não há descamisados nem caras-pintadas. <br /><br />Eu estive lá, e aqui nos meus labirintos passei o tempo todo confrontando o SWU com o Woodstock que não conheci, e, também, com o maravilhoso filme "Aconteceu em Woodstock", do maravilhoso cineasta Ang Lee, que me fez quase morrer de nostalgia pelo que não vivi. E, tenho de confessar, na maior parte do tempo me senti mais longe de Woodstock que jamais estive. Mas tampouco posso negar: foi uma experiência perturbadora, a começar mesmo pelo termo "sustentabilidade", que esteve em todas as bocas na Itu de 9, 10 e 11 de outubro, mesmo quando em tom de zombaria salpicada de desconforto (e orégano, outro condimento onipresente no SWU).<br /><br />De volta ao começo: o Brasil avança em passos firmes rumo ao futuro, mas por isso mesmo é preciso estar atento e forte (não temos tempo de temer a morte), é preciso processar joios e trigos (e recolher cada bago do trigo, e decepar a cana, e conhecer os desejos da terra...). É preciso (e prazeroso) reconhecer os progressos e reconhecer também os retrocessos que procuram puxar os pés dos progressos da superfície para os subterrâneos. É preciso tentar (ao menos tentar) separar o que é "novo" nesse dia que vem vindo do que é slogan, marketing, disfarce, fundamentalismo, obscurantismo, conservadorismo pintado em verniz verde-água.<br /><br />Na "Revista Sustentabilidade", Silvia Dias demarcou brilhantemente o que está em jogo, no texto <a href="http://www.revistasustentabilidade.com.br/blogs/pecados-verdes/swu-expoe-as-contradicoes-de-quem-ve-sustentabilidade-como-oportunidade-de-marketing/weblogentry_view" target="_blank">"SWU expõe as contradições de quem vê sustentabilidade como oportunidade de marketing"</a>. Vou tentar não repetir os argumentos de Silvia, mas acho que, sim, também tenho algumas observações a acrescentar.<br /><br />Inclinado a certo grau de messianismo religioso, como costuma acontecer em qualquer festival (e em quase todo show) de rock, o SWU foi um espetáculo de alma branca, mesmo quando vestida sob os uniformes-padrão da multidão de camisas-pretas que cultuam as bandas mais "pauleira". Para um jornalista trabalhando na cobertura do evento, foi duro ter de passar, a cada minuto, por cordões de isolamento e paredes de segurança compostos quase sempre e quase integralmente por homens (e umas tantas mulheres de porte masculino) negros. Fernando Anitelli, d'O Teatro Mágico, declarou, perante um descampado verde, imenso e aparentemente improdutivo, que é impossível falar sobre sustentabilidade sem falar sobre agricultura familiar e reforma agrária - e eu, embriagado pelos bastidores e pelas muralhas de serviços, acrescento: é impossível falar sobre sustentabilidade sem sequer arranhar o tema da desigualdade racial brasileira. O discurso pode até ser verde, mas nós somos brancos-amarelos-negros-etc. - nós somos cor de carne.<br /><br />Verde é a moda, e no SWU nem parecia que estamos no meio de uma campanha eleitoral neste país habitado por Rainhas (barbudas) da Idade da Pedra e pela Fúria Contra o Sistema (filmada pela Globo, desde que sem rebelião e, principalmente, sem o boné do Movimento dos Sem-Terra - "quem é MST?", perguntou pelo Twitter um neoverde mais afoito). Recordei minha irmã mais velha, que me repreendia quando eu tinha 16 anos, por ficar vidrado na tela global do primeiro Rock in Rio, poucos dias antes da (des)aprovação da emenda pelas eleições diretas. Em 2010, à beira da alternância de poder no Brasil, esse foi um tema-tabu no SWU - pouco ou nada se falou sobre eleição, não houve camisetas de Dilma Rousseff (eu trouxe a minha, mas não tive coragem de usar), nem de José Serra (existem camisetas de José Serra?), nem de voto nulo, nem nada. Nem da verdejante Marina Silva.<br /><br />Mas, ah, sim, nós somos cor de carne - negra, amarela ou branca. O rock'n'roll é um fenômeno pálido, louro e atlético, se tomarmos como parâmetro a escalação ideológica do SWU - longe vai o tempo em que Jimi Hendrix, negro como as noites que não têm luar, se despedia do rock e da vida lambendo as guitarras lamacentas de Woodstock. O ecopopcapitalismo autossustentável ensaia um "novo" discurso, mas no backstage (e mesmo sob os holofotes) flerta, namora e trepa com o velho status quo de sempre - aquele que clama que bolsa-família é esmola assistencialista, que cotas universitárias para negros são racismo ao contrário, que a mulher presidenciável é reencarnação abortiva do satanás, que homossexuais assacam heterofobicamente o pobre Marcelo Dourado.<br /><br />O status quo pode vociferar contra as cotas, mas é praticamente contumaz das cotas. No panteão de estrelas do SWU, houve cotas mínimas para negros (BNegão - quem mais?), mulheres (a "doce" Regina Spektor, a "sensual" Joss Stone), minorias sexuais (Cansei de Ser Sexy - quem mais?), nordestinos (Mombojó), minorias etárias e/ou de porte físico (Pixies), gente "independente" (O Teatro Mágico, o palco Oi - oi? - praticamente inteiro). <br /><br />Existe algo mais selvagemente capitalista que um festival feito por e para machos-adultos-brancos-sempre-no-comando? O que significa à vera o verniz verde-Marina (mulher, negra, nortista, evangélica), diante de tanto hambúrguer, tanta latinha, tanto copinho de plástico, tanta "very important people", tanto óleo diesel na estradinha vicinal de poeira, tanta mais-valia? No camping "premium", as mulheres tinham oito chuveiros, dos quais quatro funcionavam; no camping "ralé", o self-service do refeitório começou custando R$ 40 e terminou custando R$ 20), e assim a roda-gigante girava...<br /><br />Mas o que significa à vera o "movimento" liderado por Eduardo Fischer se, como bem lembrou Flávia Durante, o megaempresário ultracapitalista autossustentável atende também pela conta transgênica da Monsanto? O que aqui é Marina Silva (o que em Marina Silva é Marina Silva?), o que aqui é "Avatar"? Quanto do discurso verde é verde mesmo, quanto é cobertor para mais e mais autoritarismo, capitalismo, clientelismo, patrimonialismo, TFPismo?<br /><br />São perguntas complexas à espera de ser respondidas, e certamente serão intrincadas e estratificadas as respostas. Sob graus maiores ou menores de cinismo e pragmatismo, é preciso voltar ao ponto de início: pode até parecer que não, mas temos avançado, crescido e amadurecido, sim, a passos fortes. Se você chegou até o último parágrafo deste texto, mesmo depois de se rebelar contra a chatice desse discursinho "politicamente correto" pró-negro/mulher/homossexual/nordestino/sem-teto/sem-terra, acrescento umas últimas afirmações. Uma nação fraca, enrustida, é feita por cidadãos mal-assumidos - por serem índios, negros, mulheres, homossexuais, gordos, magros, viralatas etc. etc. etc. Uma nação que se ama e se respeita é construção de um festival de indivíduos que se (auto)amam e se (auto)respeitam, se (auto)aceitam e se (auto)sustentam. Começa por nós mesmos. Ou, como disse BNegão, você é parecido com aquilo que critica. Ou, mais ou menos como disse Fernando Anitelli: Com você... Você mesmo!!! Ou ainda, como disse eu outro dia ali no Twitter, eu sou sempre parte daquilo que critico. <br /><br />(P.S.: Dedico este texto a mim mesmo e a muitas pessoas que saberão se reconhecer - entre elas, à educadora @GabiDioguardi.)Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-41954087466704568012010-09-01T19:04:00.001-03:002010-09-01T19:05:25.996-03:00triste cuíca, saudosa malocaCacilda, tem mais teia de aranha aqui no blog que na minha coleção de CDs... Mas tentemos reanimar o moribundo, já que tenho recebido pedidos nesse sentido - e porque, na real, nunca foi minha intenção abandoná-lo (é a luta diária pela sobrevivência autônoma, que se choca com o prazer - gratuito - de escrever blog).<br /><br />Mas é isso aí. Reportagem recém-saída dos miolos, da "CartaCapital" 611, de 1 de setembro de 2010 (hoje!):<br /><br /><span style="font-weight:bold;">A encruzilhada dos batutas</span><br /><br />Entre o túmulo e a celebração do morro, o samba dos centenários Noel Rosa e Adoniran Barbosa forjou uma identidade para o País<br /><br /><br />POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES<br /><br />Ambos eram sambistas. E completariam 100 anos neste 2010, se estivessem vivos. Terminam aí as semelhanças entre dois dos mais importantes edificadores da música brasileira, o carioca Noel Rosa e o paulista Adoniran Barbosa. <br /><br />Filho de migrantes italianos, Adoniran nasceu em Valinhos, no interior paulista, em 6 de agosto de 1910. Só aos 41 anos conquistou o primeiro êxito como compositor, quando <span style="font-style:italic;">Saudosa Maloca</span> ficou popular na gravação dos Demônios da Garoa. Morreu em 1982, aos 72 anos, após sucessivas ondas de ostracismo e sem adquirir plena notoriedade como intérprete dos próprios sambas.<br /><br />Noel nasceu poucos meses depois de Adoniran, em 11 de dezembro de 1910. E morreu muito antes, em 1937, aos 26 anos. Carioca do bairro de Vila Isabel e descendente de portugueses migrados para o interior fluminense, começou a se firmar como autor aos 19 anos, quando lançou em sua própria voz o samba <span style="font-style:italic;">Com Que Roupa?</span> (1930). Foi logo adotado como fornecedor crucial de composições para os cantores Francisco Alves e Mário Reis, mas também traçou trajetória de intérprete, num tempo em que a própria música nacional ainda lutava por forjar sua identidade.<br /><br />A história do samba carioca é tão perene quanto foi breve a vida de Noel, e ele é reconhecidamente um dos definidores da solidez do gênero. As dificuldades que Adoniran sofreu para se consolidar como músico de respeito são as mesmas que fustigam até hoje o “túmulo do samba”, para adotar os dizeres jocosos do bossanovista carioca Vinicius de Moraes.<br /><br />O Rio vivia, ao final da década de 1920, a efervescência da linhagem de samba amaxixado de Sinhô e do bairro proletário da Cidade Nova. Moço branco de classe média baixa, Noel preferiu subir os morros para conhecer e absorver outros saberes, da Mangueira de Cartola ou especialmente do samba percussivo do Estácio de Sá de Ismael Silva. <br /><br />A parceria Noel-Ismael floresceria. Francisco Alves passou a lhes comprar sambas e a se inserir nos rótulos dos discos como suposto coautor. Assim nasceram <span style="font-style:italic;">Adeus</span>, <span style="font-style:italic;">Gosto mas Não É Muito</span> (1931), <span style="font-style:italic;">A Razão Dá-Se a Quem Tem</span> e <span style="font-style:italic;">Assim, Sim!</span> (1932), esta uma das poucas canções de Noel gravadas pela maior estrela feminina de então, Carmen Miranda. Segundo relatam João Máximo e Carlos Didier em <span style="font-style:italic;">Noel Rosa – Uma Biografia</span> (Linha Gráfica/UNB, 1990), ele não apreciava a cantora, porque ela preferia as marchinhas aos sambas.<br /><br />O jovem Noel conviveu com Francisco Alves, Carmen Miranda, Mário Reis, Pixinguinha (orquestrador de boa parte de suas gravações), Cartola (que passaria quatro décadas desaparecido, após essa fase), Ismael Silva, Orestes Barbosa (autor da letra de <span style="font-style:italic;">Positivismo</span>, de 1933). No Rio, os fundadores escreviam em conjunto a história do samba, que ganhava corpo pelo interesse de amalgamar uma identidade brasileira, instigado pelo governo Getúlio Vargas, plantado no Palácio do Catete.<br /><br />Não aconteceria o mesmo com Adoniran, nem com os músicos de São Paulo de modo geral. João Rubinato (seu nome de batismo) precisou primeiro radicar-se na capital do estado, militar em empregos subalternos, participar de programas de calouros (um dos sambas que tentou cantar foi <span style="font-style:italic;">Filosofia</span>, de André Filho e... Noel Rosa) e ouvir de diretor de rádio que sua voz era “boa para acompanhar defunto”. Até hoje se disputa se Vinicius falou ou não que São Paulo era o túmulo do samba, mas de todo modo a expressão tinha antecedentes bem mais próximos.<br /><br /><span style="font-style:italic;">Dona Boa</span> foi a primeira composição gravada de Adoniran. Aos 25 anos, ele venceu com essa marchinha um concurso para o carnaval paulistano de 1935, participando do trio Mosqueteiros da Garoa, com Alvarenga e Ranchinho. A canção sairia em disco na voz de Raul Torres, paulista de Botucatu, mais identificado com cateretês e modas de viola que com o samba. Não se tem notícia de que Noel tenha tomado conhecimento da existência de Adoniran. Se tivesse, provavalmente implicaria com o colega, do mesmo modo como implicava com Carmen Miranda.<br /><br />As canções compostas por Adoniran na década de 1930 não foram conhecidas por Noel nem por mais ninguém. Viraram insucessos de um músico que não conseguia crescer e aparecer. Mambembe qual artista circense, ele não desistiu do cobiçado ambiente do rádio. Enquanto a elite paulista tentava apear Getúlio do poder e transformava a Rádio Record na “voz da revolução” (no Movimento Constitucionalista de 1932), o aprendiz de artista foi se virando entre locutores, radioatores e humoristas, vários deles de fato egressos do ambiente do circo, que fora a mídia dos tempos em que a mídia não existia.<br /><br />Celso de Campos Jr. conta no relançado <span style="font-style:italic;">Adoniran – Uma Biografia</span> (Globo, 2003) que Alvarenga e Ranchinho almejavam ser intérpretes sérios de tangos e valsas, “mas bastava eles abrirem a boca para o público cair na gargalhada”. O jeitão caipira da dupla soava como engraçado para seus patrícios, e o mesmo aconteceu com Adoniran. Sob a pena do roteirista (e futuro parceiro musical, e futuro suicida) Osvaldo Moles, ele foi encarnar tipos cômicos na Record. Com personagens como Zé Conversa, Giuseppe Pernafina e Barbosinha Mal-Educado da Silva, o humorista virou coqueluche nos anos 1940 por zombar daquilo que realmente era, um moço interiorano de falar acaipirado.<br /><br />Noel já era morto quando Adoniran encontrou sucesso na autodepreciação. Sambas forrados de sátira e crítica social, como <span style="font-style:italic;">São Coisas Nossas</span>, <span style="font-style:italic;">Fita Amarela</span> (1932), <span style="font-style:italic;">Três Apitos</span>, <span style="font-style:italic;">Feitio de Oração</span>, <span style="font-style:italic;">Não Tem Tradução</span>, <span style="font-style:italic;">O Orvalho Vem Caindo</span> e <span style="font-style:italic;">Onde Está a Honestidade?</span> (1933), haviam feito mais que lhe dar fama e abastecer a garganta e os bolsos de Francisco Alves. Ajudaram a moldar intérpretes de excelência, como as duas cantoras favoritas de Noel, a doce Marília Baptista e a indomável Aracy de Almeida, futura jurada rabugenta dos programas (paulistas) de calouros de Silvio Santos. E deram combustível até mesmo de desafetos, como o sambista Wilson Baptista.<br /><br />Jovem brilhante e à procura de reconhecimento, esse último entabulou em 1934 uma polêmica musical com seu influenciador, da qual nasceram <span style="font-style:italic;">Rapaz Folgado</span>, <span style="font-style:italic;">Feitiço da Vila</span>, <span style="font-style:italic;">Palpite Infeliz</span> e J<span style="font-style:italic;">oão Ninguém</span>, por parte de Noel, e <span style="font-style:italic;">Mocinho da Vila</span>, <span style="font-style:italic;">Conversa Fiada</span> e <span style="font-style:italic;">Frankenstein da Vila</span>, por Wilson. Essa referia-se a uma pronunciada deformação no queixo adquirida por Noel durante o parto, de implicações psicológicas provavelmente subestimadas por seus biógrafos. A briga musical se encerraria de modo surpreeendente, com <span style="font-style:italic;">Terra de Cego</span>, assinada por ambos em parceria.<br /><br />Noel foi um jovem boêmio e desregrado. O diagnóstico de tuberculose aconteceu em 1934, pouco antes do casamento forçado com a namorada Lindaura, do suicídio do pai e do fracasso do romance com Ceci, tida como seu grande amor. Atormentado pelo medo de loucura e suicídio serem hereditários, Noel viveria dali em diante como um romântico típico, à moda de Lord Byron. <br /><br />Sua caudalosa produção diminuiu bastante. A fase final até somou alguns temas mais vibrantes, como <span style="font-style:italic;">O X do Problema</span> (1936), mas rendeu sobretudo sambas rasgados, autopiedosos, de fibra autodestrutiva, como <span style="font-style:italic;">Triste Cuíca</span> (1934), <span style="font-style:italic;">Conversa de Botequim</span>, <span style="font-style:italic;">Pierrô Apaixonado</span>, <span style="font-style:italic;">Silêncio de Um Minuto</span> (1935), <span style="font-style:italic;">Eu Sei Sofrer</span>, <span style="font-style:italic;">Pra Que Mentir?</span> e <span style="font-style:italic;">Último Desejo</span> (1937). Todas atravessariam as décadas e romperiam o século XXI sem perder o charme.<br /><br />Em 1945, Adoniran virou ator em filmes-chanchada da Cinédia. O máximo de seriedade que conquistou foi interpretar na Vera Cruz um integrante do bando do personagem-título de <span style="font-style:italic;">O Cangaceiro</span> (1953), de Lima Barreto. A veia cômica prevaleceu, inclusive em paralelo algo tenso com o caipira por excelência inventado por um Mazzaroppi em plena ascensão de popularidade.<br /><br />Só voltou a tentar a lida de compositor no final dos anos 1940. Em 1951 aconteceu <span style="font-style:italic;">Saudosa Maloca</span>, que nada guardava de carnavalesco ou humorístico. Era a história de três paulistanos que viam seus barracos serem demolidos para a construção de um edifício e concluíam que <span style="font-style:italic;">os homes tá com a razão, nós arranja outro lugar</span>. Conseguiu gravá-la, e de novo nada aconteceu. Só seria notada quando relançada pelos Demônios da Garoa, no ano seguinte.<br /><br />A veia humorística contagiaria a música naquele mesmo 1952, com <span style="font-style:italic;">O Samba do Arnesto</span>, conhecido só em 1955, outra vez na interpretação clássica (e sublinhada na pronúncia acaipirada) dos Demônios. Devagar, o sucesso esquentava a chama do autor, que se sentiu mais seguro para moldar um samba à paulista, entristecido mesmo quando puxado na graça, e sempre movido por referências interioranas e/ou caipiras.<br /><br />Surgiram <span style="font-style:italic;">Joga a Chave</span> (1952), <span style="font-style:italic;">As Mariposas</span> (1955), <span style="font-style:italic;">Apaga o Fogo Mané</span>, <span style="font-style:italic;">Iracema</span> (1956), <span style="font-style:italic;">Abrigo de Vagabudo</span> (1958), <span style="font-style:italic;">No Morro da Casa Verde</span> (1959), <span style="font-style:italic;">Tiro ao Álvaro</span> e <span style="font-style:italic;">Prova de Carinho</span> (1960). O mais melancólico dos sambas, <span style="font-style:italic;">Bom-Dia, Tristeza</span>, foi lançado por Aracy de Almeida em 1957. Tinha letra de outro carioca, o poeta e diplomata Vinicius de Moraes, em momento pré-bossa nova e pré-túmulo do samba.<br /><br />O início de êxito musical não alterou a rota. Em 1956, surgiu o programa de rádio <span style="font-style:italic;">Histórias das Malocas</span>, dedicado a transformar em graça a tragédia narrada na <span style="font-style:italic;">Saudosa Maloca</span>. Ali nasceu seu personagem mais famoso, o matuto Charutinho, em dupla com a Pafunça da comediante Mariamélia. O músico Adoniran voltaria ao pódio no fatídico 1964, quando os Demônios da Garoa emplacaram seu <span style="font-style:italic;">Trem das Onze</span>.<br /><br />À melancolia e ao humor acrescentava-se outra característica que tornaria perenes Adoniran e o samba paulista. A letra citava o distante bairro do Jaçanã e fortificava a vocação do autor em circular por sua cidade e fazer a crônica musical de suas paisagens, de Jaçanã ao Bexiga, da Casa Verde ao viaduto Santa Ifigênia. A gaúcha Elis Regina encantou-se com Adoniran e levou-o ao seu <span style="font-style:italic;">O Fino da Bossa</span>, na TV Record (em 1980, registraria com ele um antológico dueto de <span style="font-style:italic;">Tiro ao Álvaro</span>).<br /><br />A locomotiva dos Demônios produzia mais sucessos de sua lavra, mas Adoniran, bom paulista, se dedicava a remoer mágoas e sofrer de inadaptação. Egresso do rádio, não se encontrava na televisão. Em 1966, compôs <span style="font-style:italic;">Já Fui uma Brasa</span>, de queixa algo conformada pela voga da jovem guarda: <span style="font-style:italic;">Lembro que o rádio que hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro/ tocava Saudosa Maloca/ eu gosto dos meninos desse tal de iê-iê-iê/ porque eles cantam a voz do povo/ e eu, que já fui uma brasa,/ se assoprar eu posso acender de novo</span>.<br /><br />No início dos anos 1970, Adoniran afinal aportou no novo destino preferencial de circenses, mambembes e errantes. Virou ator de novelas da TV Record. Em 1972, o produtor Fernando Faro levou a seu programa <span style="font-style:italic;">MPB Especial</span>, da TV Cultura, o Adoniran compositor, e cantor. Em 1974, 37 anos após a morte de Noel, <span style="font-style:italic;">Adoniran Barbosa</span> chegou ao mercado para ser o primeiro LP da história do humorista que queria cantar.<br /><br />Nesse e no disco seguinte, fez um apanhado da própria história, em versões sentidas de seus sambas, de <span style="font-style:italic;">Saudosa Maloca</span> a <span style="font-style:italic;">Já Fui uma Bras</span>a. Em 1980, Faro lhe propiciou nova homenagem, na forma do terceiro e derradeiro LP, feito de duetos com fãs então em evidência, como Elis, Clara Nunes (numa versão matadora da trágica <span style="font-style:italic;">Iracema</span>), Roberto Ribeiro, Clementina de Jesus, Djavan, Gonzaguinha. Dentro de três anos, às vésperas da redemocratização do país, estariam mortos Adoniran, Elis e Clara (os dois primeiros, no túmulo do samba).<br /><br />Havia mesmo mais diferenças que semelhanças entre “o poeta da Vila” e “o poeta do Bexiga”. O carioca expectorou com pressa o orgulho que tinha de sua “modernidade”, cidade e país, e ajudou a construí-los. O paulista ruminou por décadas antes de sussurrar, quase para si mesmo, a vergonha que tinha de ser quem era e a vontade represada de se orgulhar da dita “caipirice”, e mesmo assim ajudou a construir sua cidade, seu estado, seu país.<br /><br />Mas, não, tinham mais duas coisas em comum, que explicam sua importância equânime e colossal. Criavam mobilizados por um desejo nunca consumado de liberdade, um buscando e fugindo do xis do problema, outro seguindo o exemplo das mariposas e dando “vortas” em terno da “lâmpida”, enquanto o sol brilhava lá fora. E, sobretudo, exprimiam os sentimentos dos estratos subalternos aos quais nunca deixaram de pertencer. Afinal, eram sambistas, ambos.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-40791702647550704822010-07-27T16:23:00.001-03:002010-07-27T16:23:43.521-03:00o pão, a farinha, o feijão, carne seca, quem é que carrega?Andava hoje pela terra seca que virou a seção de CDs da Fnac da av. Paulista, e fiquei pensando: é irônico, mas o tempo presente tem sido generoso com aquilo que antigamente chamávamos (e ainda chamamos) jabaculê.<br /><br />Como me disse em entrevista outro dia o cearense Emanuel Gurgel, inventor da banda-e-marca forrozeira Mastruz com Leite, CD não é mais comércio. É cartão de apresentação. Serve para divulgar o produto (como Emanuel gosta de chamar as músicas dos artistas, e talvez os próprios artistas). Mas não é mais o produto em si.<br /><br />E de repente me pareceu que, se ele está certo (e está, não está?), aquelas poucas caixetas de plástico com música dentro nas prateleiras não são hoje menos nobres do que eram, e sim o contrário.<br /><br />Quando a indústria fonográfica era um império, eu recebia pilhas dessas caixetas toda semana, de graça - quem ia à Fnac comprar seus próprios CDs pagava por eles e por parte dos meus também. VEJA bem, era para que eu, talvez, as avaliasse (as músicas?, ou as caixetas?), mas, ora, esse escambo se chamava jabá.<br /><br />Continuo recebendo pilhas (um pouco menores) de CDs toda semana, e acredito que isso continua se chamando jabá. Mas é tudo bastante diferente agora. Não se trata mais de algo de valor simbólico acondicionado dentro de algo com determinado valor material, negociado entre gravadoras (& seus empregados) e veículos de comunicação (& seus empregados). Trata-se de um cartão de visitas. Uma apresentação emitida por alguém que gostaria que eu conhecesse o seu trabalho - e desse notícia dele aos meus (quais?) leitores.<br /><br />A caixeta hoje é muito valor simbólico, e pouquíssimo valor material. Ainda custa caro para quem a faz - ainda é um jabá, mas é um jabá mais Frankenstein, mais desengonçado, menos vagabundo e robótico do que já foi. Ainda somos cínicos, mas hoje nos alimentamos mais de símbolos que de consumismo compulsivo. Não me admira que Fausto Silva esteja tão mais magro ultimamente.<br /><br />Mas, ah, voltando à música, essa que parece tão escassa nas Fnacs de hoje: quando ela não vem em caixetas, mas sim em MP3, links de internet etc., ela é 100% valor simbólico (ok, estou ingenuamente desconsiderando a grana que todos pagamos à informática e às telecomunicações - quais são os jabás desses novos sertões?). <br /><br />De vez em quando, quando tudo fica tão simbólico, chego a achar que estamos no tempo em que ainda não éramos nascidos.Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-8578073.post-54993572735881445872010-06-25T18:22:00.001-03:002010-06-25T18:22:20.168-03:00rockin' robinDe modo geral, acho tristonha essa avalanche de textos e reportagens sobre Michael Jackson a propósito do primeiro aniversário da morte dele. Parece quase tão onipresente quanto a Copa (e sempre que vejo me pergunto: quem quer saber de MJ a esta altura dos acontecimentos?).<br /><br />Mas, por contraste e contradição, graças à boda de um ano de morte dele o iG (<a href="http://ultimosegundo.ig.com.br/michaeljackson/o+homem+no+espelho+e+nos/n1237669109454.html" target="_blank">16 de junho de 2010</a>) me proporcionou fazer um texto que estava preso aqui na garganta há cerca de 365 dias, ou mais. E eu me contradigo e republico e faço aqui a mesma coisa que insinuei me causar tédio e aversão no início deste tópico. Saudades de você, Michael Jackson.<br /><br /><br /><b>O homem no espelho e nós</b><br /><br />Já faz um ano. O mundo ficou em estado de choque quando soube da morte de um dos heróis pop que mais lhe ofereceram alegria, diversão e prazer nas três últimas décadas do século passado. Mas sejamos francos: fazia anos que a humanidade esperava que, qualquer hora dessas, acontecesse alguma tragédia com Michael Jackson. Sejamos ainda mais transparentes: fomos cúmplices impassíveis, quando não exultantes, de uma das mais prolongadas histórias de agonia pública de que se tem notícia. As transformações, deformações e mutilações físicas eram apenas a face mais visível do processo.<br /><br />Michael era um gênio musical, muitos correram a reconhecer a obviedade quando ele morreu. Mais embaraçoso foi, é e será reconhecer que grande parte da genialidade brotava justamente do sofrimento brutal que ele vivenciou (quase) publicamente desde que era o garotinho-prodígio do grupo Jackson 5, dirigido e tiranizado por um pai violento e abusivo (e pela indústria musical que sustentava o “fenômeno”). Entre as ofensas praticadas rotineiramente por Joe Jackson, sobressaíam aquelas relacionadas à cor da pele e à aparência física do filho, como Michael relatou pela primeira vez em 1993, no programa de Oprah Winfrey. Pode ser um exercício elucidativo rever suas músicas e letras após um ano, à luz não da festa e da farra, mas de tudo que o menino que nunca cresceu vivia enquanto cantava.<br /><br />Aos 8 anos ele começou a se tornar a atração principal entre os Jackson 5, e aos 13 iniciou uma carreira solo paralela à trajetória de sucesso do grupo. No primeiro disco individual, <span style="font-style:italic;">Got to Be There</span> (1972), havia uma canção infantil chamada "Rockin’ Robin", cujo protagonista era um melro roqueiro às voltas com outros pássaros, entre eles um “grande corvo preto”. O melro tomava aulas de “hop” e “bop” de um “corvo pequenino”, enquanto Michael disparava a trinar, “tweet, tweet, tweet”.<br /><br />O personagem-título do segundo LP, <span style="font-style:italic;">Ben</span> (1972), era um ratinho abandonado (e negro, também, como exibia a capa deletada em reedições posteriores), cujo único amigo era o intérprete-narrador. “Você sente que não é bem-vindo em lugar nenhum”, lamentava o pré-adolescente de cabelo black power que apenas iniciava a escalada épica para ser adorado, desejado e idolatrado pelas multidões.<br /><br />Em 1973, lançou <span style="font-style:italic;">Music & Me</span>, entre funks chamados "Johnny Raven" (“eu sou Joãozinho Corvo”) e "Euphoria". O narrador dessa última é um garoto que “vê o arco-íris brilhar” e “repousa numa cama de flores”, “sem conhecer doenças” e “sem tomar pílulas”. Podia parecer euforia (era?), e Michael não escrevia suas próprias canções naquela época, mas o recado era pesado para um garoto de 14 anos que mais tarde faria pós-graduação em “pílulas” e “doenças”.<br /><br />Michael estava a duas semanas de completar 21 anos em agosto de 1979, quando lançou o esboço emancipatório Off the Wall, recheado de proposições eufóricas como “não pare até conseguir o suficiente”, em "Don’t Stop ‘Til You Get Enough", o primeiro cartão de visita para que o “corvinho” se convertesse em um dos donos do mundo. Algumas letras do disco pareciam falar mais de um operário na meia idade que de um vigoroso pós-adolescente. Em "Workin’ Day and Night", escrita por Michael em pessoa, o narrador trabalhava “do nascer do sol à meia-noite”, sentia dor nas costas e ao final exclamava, como quem não quer nada: “Estou tão cansado”.<br /><br />Em "Off the Wall" (composta por Rod Temperton), gritos fantasmagóricos anunciavam a chegada do monstro pop que carregava “o mundo nas costas”, mas preconizava uma vida devotada à música e à diversão: “Somos os ‘party people’ noite e dia/ o único jeito é viver malucos”. Uma frase solta era ouro para bons entendedores: “A vida não é tão ruim assim”.<br /><br />A emancipação de fato (ou a escravidão definitiva?) viria três anos depois, com <span style="font-style:italic;">Thriller</span> (1982), que viraria de ponta-cabeça não só a vida do artista, mas toda a história do pop e da indústria musical. A importância crucial do disco reside no fato de Michael ter encontrado ali a pedra filosofal da fusão entre o funk-soul negro e o rock’n’roll branco – o “black and white”, a mestiçagem, o acasalamento que o mundo aclamaria de pronto, mas não perdoaria jamais a partir do momento em que percebesse que o menino negro supostamente desejava se metamorfosear em homem (ou mulher?) branco(a). Não desejava – só queria deixar de ser ele mesmo, mas isso a massa não quis ou não soube perceber.<br /><br /><span style="font-style:italic;">Thriller</span> condecorou a humanidade por sua própria “viralatice”, mas para Michael era a materialização dos pesadelos mais íntimos. O desabafo, esse sim emancipador, permeia cada linha da faixa-título, obra-prima máxima do funk de terror, do rock de arrepio, do pop de lobisomem: “você está paralisado”, “há demônios por todo lado”, “ninguém vai salvá-lo da besta à espreita”, “este é o final da sua vida”. Seria Joe Jackson um dos nomes da besta? “Se você não pode alimentar um bebê, não tenha um bebê”, diz um verso de "Wanna Be Startin’ Somethin’", parente próximo do drama de (não-)paternidade de "Billy Jean" (“o garoto não é meu filho”).<br /><br />Se em <span style="font-style:italic;">Thriller</span> Michael queria estar começando alguma coisa (o começo era o fim?), o resto de sua vida seria gasto na busca obsessiva (nunca alcançada) da autossuperação. Se em 1979 a vida era ruim, em 1987 ele tomaria para si o rótulo de <span style="font-style:italic;">Bad</span>. “Sua fala é ordinária/ você não é um homem/ você atira pedras para esconder suas mãos”, dizia o autor-narrador da faixa-título, como de hábito usando “você” em vez de “eu”. "Man in the Mirror" (composta não por ele, mas por Glen Ballard e Siedah Garrett) continha o maior conselho que nosso Peter Pan deu a si mesmo, mas não quis ouvir (ou ouviu de modo plástico, deturpado): “Se você quer fazer do mundo um lugar melhor/ dê uma olhada em si mesmo e comece aí a mudança”.<br /><br />Michael não conseguiu superar <span style="font-style:italic;">Thriller</span> ou a si próprio nos discos da década de 90, mas eles guardam vários dos mais belos, pungentes e dramáticos depoimentos de dor e desespero da história da música, sempre recebidos por nós com ouvidos moucos. Primeiro, veio <span style="font-style:italic;">Dangerous</span> (1991), quando o autor já se sentia “perigoso”. “Confusões contradizem a identidade/ sabemos distinguir o certo do errado?”, pergunta "Jam". “Eu sou o amaldiçoado/ eu sou o morto/ eu sou a agonia dentro da cabeça moribunda”, declara "Who Is It", mais transparente que H2O. “Todo mundo me controla/ (...) estou tão confuso”, diz "Will You Be There". “Agora faremos um juramento, vamos manter tudo dentro do armário”, deseja "In the Closet", em dueto com a princesinha branca Stéphanie de Mônaco.<br /><br />Lançada dois anos após as primeiras acusações de que o ex-abusado tivesse virado ele próprio um abusador de crianças, a coletânea <span style="font-style:italic;">HIStory</span> (1995) foi compreendida como um esforço de automitificação, o que abafou o fato prosaico de que ela continha um disco inteiro inédito, e profundamente revelador. “Parem de me pressionar”, “parem de me foder”, “estou cansado de golpes e tramoias”, começava "Scream", em duo com a irmã Janet Jackson. “Aqui abandonado em minha fama/ armageddon da mente”, declarava-se em "Stranger in Moscow". “Você viu minha infância?/ estou procurando pelo mundo do qual eu vim”, “é minha sina compensar a infância que nunca tive”, confessava em "Childhood", já num pique de autovitimização. “Mike é mau, eu sou mau, quem é você?”, provocava o jogador de basquete Shaquille O’Neal em "2 Bad".<br /><br />Dois momentos eram especialmente eloquentes em <span style="font-style:italic;">HIStory</span>. Um era "Tabloid Junkie", em que Michael direcionava sua ira e revolta contra a mídia sensacionalista refestelada em popularidade e dinheiro à custa de seus apuros. “Especulem para ferir quem vocês odeiam/ circulem a mentira que confiscam/ assassinem e mutilem”, cuspia na cara da “mídia canina histérica”. “Só porque você lê numa revista ou vê numa tela de TV não significa que seja real, factual”, tentava ensinar, anotando que “comprar é alimentar”, mas esquecendo-se de que ele próprio era uma das muitas faces do dragão chamado “mídia”. “Mas todo mundo quer acreditar em tudo”, acabava por desabafar, espalhando o próprio desabafo para os fãs que, afinal, também são abusadores em potencial.<br /><br />O outro instante em que o “rei do pop” estava nu em HIStory era a valsa "Little Susie", sobre uma garotinha abusada, espancada e assassinada por um monstro não nomeado (poderia ser Joe Jackson?). “Todo mundo veio ver a menina que agora está morta”, “ela sabia que ninguém se importava”, “abandono pode matar como uma faca”, gemiam versos que pareciam a consumação dos pesadelos inconsequentes de <span style="font-style:italic;">Thriller</span>.<br /><br />Em 1997, o álbum de remixes <span style="font-style:italic;">Blood on the Dance Floor</span> trazia algumas poucas faixas inéditas, quase todas referentes a fantasmas, gente assustada, sangue na pista de dança. Musicalmente pálido, dizia tudo sobre o estado de espírito do (ex-)herói, se quiséssemos ouvir. "Morphine", por exemplo, era um drama funkeado de dor e anestesia: “um ataque cardíaco, baby/ preciso do seu corpo”, “outra droga, baby/ você deseja tanto”, “confie em mim/ você está tomando morfina”, “você odeia sua raça, baby/ você é só um mentiroso”. “Demerol/ Demerol/ oh, Deus, ele está tomando Demerol”, cantava o funk hospitalar, em referência ao medicamento analgésico e sedativo que em 2009 seria apontado como o causador de sua morte.<br /><br />"Ghosts" falava sobre “um demônio embaixo da cama” e confrontava mais um sujeito oculto (ou a vários): “Quem lhe deu o direito de mexer com minha família/ de assustar minha família/ de machucar minha família?”.<br /><br />"It’s Scary" abria o jogo mais do que nunca. “Estou divertindo ou apenas confundindo você?/ sou a besta que você vê e quer ver?/ excentricidades/ serei grotesco para seus olhos”, começava. “Você veio a mim para ver suas fantasias encenadas diante de seus olhos?/ se veio para ver a verdade e a pureza/ aqui está um coração solitário/ deixe a performance começar”, anunciava a tormenta. “Fico assustado no seu lugar?/ estou cansado de ser abusado/ você sabe que me assusta também/ vejo que o demônio é você/ é assustador para você, baby?”, vomitava, desta vez falando a um “você” que poderia ser ele mesmo, o pai, eu ou você. No derradeiro <span style="font-style:italic;">Invincible</span> (2001), “invencível”, o mesmo tema seria reelaborado na ressentida faixa-testamento "Threatened", “ameaçado”: “Eu sou o seu pior pesadelo”, “vou desaparecer, e então voltarei para assombrar você”.<br /><br />Essa era a voz que poucos de nós ainda queríamos ouvir. O pacto ilusionista estava se quebrando, Michael estava indo além dos limites tradicionalmente permitidos. A pergunta deixada no ar, desde muito antes de sua morte, era se tínhamos gostado tanto dele só porque era um gênio, ou também porque nos confortava secretamente vê-lo se destroçando diante de nossos olhos e ouvidos e fígados. Ora, se o cara mais famoso do planeta era mais desgraçado do que nós...Pedro Alexandre Sancheshttp://www.blogger.com/profile/07131381196986635010noreply@blogger.com