quarta-feira, outubro 04, 2006

fanatismo futebol clube

"carta capital" 412, de 27 de setembro de 2006.


OS DOCES VAMPIROS
Uma peça expõe o fã como "vilão" da história e provoca reflexão sobre as relações desiguais entre ídolos e admiradores

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Era uma vez um artista que encontrou uma legião de fãs e, juntos, foram felizes para sempre. Na vida real, a fábula não acontece exatamente assim, embora os tabus de amor eterno entre ídolos populares e seus admiradores acabem ocultando o lado obscuro dos contos de fadas.

No Brasil, ainda é rudimentar a compreensão sobre os stalkers (como lá fora são chamados fãs obsessivos que vivem à espreita de seus alvos), mas a discussão avança alguns passos graças a um musical despretensioso e de construção algo precária, ora em cartaz em São Paulo. Em Um Homem Chamado Lee, de Fábio Mendes e Rodrigo Pitta , a cantora e atriz Preta Gil interpreta Ivanildo, um fã de Rita Lee que vira o travesti Linda Lee, seqüestra sua inspiradora e tenta roubar o lugar dela.

Ali, o fã é também o vilão da história, além de um crítico voraz da "víbora" (como o personagem se refere à cantora). Sobe à tona o mito da "inveja", que ídolos costumam identificar tanto em fãs como no público, embora raramente o pronunciem em público.

Uma platéia diversificada tem lotado toda terça-feira o Teatro Folha, em busca de uma comédia leve, e até encontra motivos abundantes para rir. Mas, em meio às gargalhadas, um clima denso vai se instalando pela ambientação pesada da peça, pelas versões underground para os sucessos antes leves de Rita, pela interpretação tensa de Preta. O travo final é amargo, sobretudo devido ao tema espinhoso de se trata: o fanatismo que faz ferver adoração e ódio num mesmo caldeirão.

Presente à sessão testemunhada por CartaCapital, na terça-feira 12, o músico, ministro da Cultura e pai da protagonista Gilberto Gil batiza imediatamente o nervo exposto da questão: vampirização. No camarim, os olhos vermelhos de choro minutos após o final melancólico da peça, ele avalia a atuação da filha: "A idéia da vampirização da Rita Lee dá liberdade a Preta de se libertar dela própria. Ela cresceu muito, é uma alma livre".

Os laços afetivos explicam as lágrimas que Gil deixa rolar diante da reportagem, ao lembrar dos shows caseiros de Preta aos 5 anos. Explicam também o choro da amiga tropicalista Rita Lee, que assistiu à sessão de estréia e aderiu com entusiasmo a um trabalho que não é exatamente uma homenagem a ela, ou então é, no mínimo, uma homenagem com retoques de crueldade.

"Chorei muito e ri muito. Às vezes segurava na mão de Sandra (mãe de Preta), que estava sentada atrás de mim, e tudo parecia uma máquina do tempo que ia para frente e para trás. Acho que foi a homenagem mais bacana que recebi até hoje", diz Rita por e-mail.

Mas laços afetivos não contam a história toda. Na boca de cena há quase 40 anos, Gil e Rita sabem de perto que nem tudo são flores na ligação com os "doces vampiros" que o senso comum costuma chamar de fãs. Rita Lee revela uma "história boa" envolvendo uma fã extremada:

"Ela descolou meu endereço e passou a mandar cartinhas de amor de fã. Não existia e-mail na época. Eram tão carinhosas, e eu, carente que sou, respondia eventualmente. Dei trela para o monstro dar as caras, e as cartas começaram a ter uma conotação mais sensuais. Eu dizia que não era bem a minha praia etc e tal. A coisa foi ficando séria, e ela disse a que veio: era minha alma gêmea e o destino já estava escrito, eu deveria abandonar tudo e todos, iríamos fugir juntas para um lugar remoto. Parei de escrever no ato, a mulher era pinel".

Diante do silêncio de Rita, o lado sombrio se exacerbou: "Passou a mandar todo santo dia uma rosa vermelha com um bilhete, 'eu vou te matar!'. Dizia que era escrito com o sangue dela. Um dia o porteiro do prédio me chamou pelo interfone, 'dona Rita, aquela louca acabou de se cortar toda aqui na minha frente e disse que vai se matar se a senhora não falar com ela'. Veio a ambulância e carregou a mulher sei lá para onde".

Havia mais. "Eis que o monstro voltou a fazer as mesmas ameaças. Contratei um detetive para descobrir quem era a peça, e qual não foi meu espanto ao saber que se tratava de uma juíza de direito, dessas poderosas, que mandava e desmandava numa vara criminal barra pesada. E eu pensando que era uma adolescente. Meu advogado teve um trabalhão danado para acabar com a tragédia anunciada, a mulher foi despedida e sumiu. Se um dia eu aparecer morta, pode apostar que foi ela", graceja.

Rodrigo Pitta procura decifrar o personagem que criou, que guarda semelhanças involuntárias com a juíza real de Rita Lee. "A idéia foi abordar o travesti, mas também esse fã louco, consumido. É um pouco uma crítica a isso, a como a imposição de um ídolo pode levar uma pessoa à loucura. Ivanildo não quer matar Rita Lee, ele quer matar ele mesmo e ser ela. Quer apagar a identidade dele."

Preta também busca entender o fenômeno escondido atrás da figura tragicômica que representa. "Talvez essas sejam pessoas frustradas de uma maneira geral, que acabam encontrando no ídolo algo para suprir as frustrações. Não sei, na minha cabeça ainda estou estudando isso."

Abaixo dos patamares extremos, estão os próprios criadores. Esses poderiam, também, guardar pequenos Ivanildos dentro deles? "Eu sou mais travesti que a Linda Lee, ela é mais contida que eu. Tive que me despir do meu próprio travesti para fazê-la. Ela não é debochada como os travestis, é tensa, intensa, sofrida", afirma Preta. "A gente não é Ivanildo na totalidade do tempo, mas em algum momento, sim", reconhece Pitta.

"Fãs não vampirizam, eles são esquisitões mesmo, quem vampiriza artista é crítico de música", Rita cutuca. "Os fãs-Frankenstein viram Mark Chapman (o assassino de John Lennon) e se revoltam contra seus criadores. Às vezes nem precisa, artista volta e meia morre de overdose."

Fãs "comuns" não chegam aos extremos de Robert Dewey Hoskins, condenado a dez anos de prisão por perseguir e ameaçar enforcar a superstar Madonna. Mas excedem limites, sim, e muitos.

A cantora e compositora Zélia Duncan dá exemplos, desses que as celebridades acabam tomando como corriqueiros: "Uma época, minha ex-empresária recebeu telefonemas ameaçadores de uma fã que dizia que eu estava sendo maltratada, pois estava muito magra. Ela chorava muito, sempre. Tinha uma voz bem sinistra, ameaçava um pouco. Entre as muitas correspondências bacanas, uma vez pintou uma em que um cara dizia que gostava tanto de mim que pensava em me machucar. E começava a descrever situações em que fazia isso. Foi apenas uma carta, que nos assustou um pouco".

Fernanda Takai, do grupo Pato Fu, tem em comum com Zélia o hábito de atender a todos os fãs após o show, um por um. E isso pode trazer efeitos colaterais, também: "Em raríssimas vezes, precisamos ir embora direto por causa de viagem ou doença, se cantei gripada, com diarréia. Alguns fãs encaram como se a gente estivesse esnobando. E não adianta explicar, vira uma decepção. Às vezes as coisas são decepcionantes por causa de uma expectativa grande demais".

Com Um Homem Chamado Lee, Preta Gil hoje vive a situação peculiar de criticar o fã que anula sua identidade diante do ídolo, ao mesmo tempo em que convive com a mesma situação perante os próprios fãs. Um grupo de cerca de 15 adolescentes auto-intitulados "os seguidores" tem acompanhado cada passo dela em São Paulo – na terça 12, não assistiram à peça, mas montaram guarda à saída para abraçá-la, tirar fotos e trocar agrados.

No Orkut e em seu blog, o assédio de fãs leva a mensagens do tipo "entre em contato comigo, por favor, é meu sonho conhecer você, tenho 20 anos e não queria morrer sem antes poder lhe dar um forte abraço", "espero que possamos ser verdadeiras amigas" e "um forte abraço de sua futura amiga, é só você querer".

"Eles são terríveis. Se você não os compensa com muito carinho, o amor vira ódio. É tênue, delicado”, diz Preta. Às vezes, ela também destempera. "Uma diz 'vi você na tevê, achei um pouco triste'. Falo 'que ótimo, você devia ser mãe de santo'. Se eu não for a mais fofa e disponível do mundo, chego em casa e já tem bomba no Orkut, 'você já foi mais humilde'. Dou bronca. Uma disse 'ai, você está muito nervosinha, precisa tomar Maracujina'. Para quê? Fiquei furiosa, 'Maracujina você enfia...'. 'Ah, não sou mais seu fã, agora sou fã da Wanessa Camargo' (ri). É um drama."

Leandro Lehart, ex-líder do popularíssimo grupo Art Popular, reflete sobre a relação passional superficial: "O maior excesso que o fã pode cometer é o esquecimento do ídolo, como se aquilo fizesse parte de um passado que ele não gostasse de trazer à tona. Já tive casos de fãs que casaram, mudaram de grupo de amigos e mudaram de ídolo também. Num país em que quem dita a moda é a novela...".

Gilberto Gil dá a senha para mais um lado da questão: o do artista como fã, ele também. "Sou a hipérbole disso. Eu dizia 'eu quero ser Dorival Caymmi'. Já quis ser João Gilberto, Jorge Ben, Jimi Hendrix. Antes de Caymmi, eu quis ser Luiz Gonzaga. Aliás, eu sou", ri.

Preta confessa que já foi parecida com os fãs mais exagerados de hoje: "Como não valia eu ser fã dos tropicalistas, fui ser fã do Menudo, do Michael Jackson, da Madonna. Aí surgiu meu príncipe encantado, Paulo Ricardo. Surtei com o RPM, meu travesseiro tinha escrito 'Preta ama Paulo'. Uma vez consegui viajar no ônibus deles, ele não me dava muita bola, não. Depois de maiorzinha, a gente ri disso. Tem uma hora que passa, que a banda acaba (ri). Você gosta do cara enquanto ele está fazendo sucesso. É superficial. Não é na alegria e na tristeza, é só na alegria".

Leandro Lehart lembra da vida pré-fama: "Gastei todo o salário que ganhava como office-boy nos dois shows do Michael Jackson no estádio do Morumbi. Coisa de maluco". Autora do disco Eu Me Transformo em Outras (em que interpretava clássicos de ídolos do passado da MPB), Zélia Duncan testemunha que a atividade de fã não desaparece quando se vira ídolo: "Adoro ter meus discos assinados pelos colegas. Outro dia fui num lugar onde sabia que Nana Caymmi estaria. Não tive dúvida, levei um encarte, fui em cima da diva e valorizei meu álbum. Faço isso sempre".

Se muitas vezes o caos segue governando o contato desigual entre "mitos" e "meros mortais", as lágrimas de Gilberto Gil e Rita Lee diante do travesti de Preta Gil resistem como sinais indicativos de que há campo farto para que artistas e fãs brasileiros aprendam a impor normas e limites a suas relações cruzadas.

Rita Lee tem dado pistas disso, ao dar aval para "homenagens" que a questionam e a negam ao mesmo tempo em que a mitificam. É o caso de Um Homem Chamado Lee, mas também da recente semi-biografia Rita Lee Mora ao Lado (Panda Books, 256 págs, R$ 39), escrita, aliás, por um seu fã e correspondente íntimo (além de músico), Henrique Bartsch.

Atrás da narração em primeira pessoa por uma tal Bárbara Farniente, outra espécie de travesti "malvado" de Rita Lee, o livro conta (e/ou fantasia), em linguagem leve, as passagens mais espinhosas e sofridas da biografia da artista. "Homenagens extremamente positivas denotam fim de linha. As tempestades que Rita plantou na vida retornam como uma brisa de alento, em forma dessas cruéis homenagens, para que ela siga em frente empurrada pelo dever cumprido. É a síntese, com uma pitada de masoquismo, que não deixa de dar prazer, em certas tribos", avalia Bartsch.

Rita parece concordar: "Quando vi nossas conversas transformadas em livro, contando coisas que ninguém nunca soube, me deu um alívio. Era o outro lado da minha moeda que estava lá, doa a quem doer. Inclusive a mim mesma". Ela pode não sair ilesa da experiência, mas tampouco saem os fãs e/ou a mídia que faz a intermediação entre as pontas.