segunda-feira, janeiro 17, 2005

que eu desorganizando posso me organizar

já que falávamos de cássia eller, agora é hora de chico science.

neste final de semana o sesc pompéia abrigou um encontro entre a nação zumbi e o mundo livre s/a ("luta de classes", anotava a camiseta preta sensacional de fred zeroquatro), para refazer ao vivo o álbum "da lama ao caos", de chico science & nação zumbi. e o teatro maluco da lina bo bardi testemunhou incríveis imagens-símbolo dos anos 2000 no brasil, trazidas da nostalgia de 11 anos passados desde a primeira edição de "da lama ao caos".

mesmo desgastado, o mangue bit continua sendo um movimento ainda por ser decifrado e entendido. não conta com alta adesão geral, mas suas manifestações até hoje causam noites iluminadas, como a de ontem, a sala lotada e jovens de todas as idades berrando em altos brados as palavras de ordem de chico e fred, que não são e nunca serão fáceis. o discurso mangue era (e é) desarticulado, mas ao mesmo tempo sofisticadíssimo, e o pop no sentido mais raso, que foi muito praticado no brasil dos anos 90, nunca coube nem caberá ao ideário dos caranguejos de antenas parabólicas da manguetown, da brasiltown. o incrível é ver que os anos se passam e cada vez mais gente adere, se entusiasma, canta em coro os raps, cocos e emboladas da nação zumbi. fred e chico acertaram na mosca que pousou na sua sopa. a luta de classes vigora e vigorará, mesmo que já estejamos anos-luz à frente do atraso e da modorra que desnutriu o fim do século no brasil - à parte chicos e cássias e outros tantos de quem quero continuar falando aqui (alô, pato fu!).

o que ficou visitando minha cabeça durante o show, além da grandeza resistente das letras e da força musical em pop, rock, rap & outras levadas daqueles caras, foi mesmo a "pernambucanidade" que extravasa de cada gesto deles e que vem bater com impacto e empatia aqui em são paulo (o que eram aqueles meninos percussionistas se embebedando de ritmo numa street dance meio frevo, meio maracatu, meio hip hop, meio samba, 100% brasil? o que era aquela linda moça negra que se juntou a eles da platéia e quase roubou quase todo o show?). fred, jorge du peixe e os outros vocalistas convergiram, na minha cabeça, com a primeira audição do disco "na embolada do tempo" (indie records), de alceu valença. como são parecidas as pronúncias e dicções, mesmo com todas as diferenças entre o rock áspero de pai alceu e o samba-rap eletrônico dos filhos do mangue. como a embolada do tempo de alceu é o frevo eletrônico do tempo das nações mangue bit, por mais que os filhotes teimem em renegar seu pai (alô, ariano suassuna, será que um dia você vai reconhecer que fred zeroquatro é um pentelho, mas um pentelho cheio de tutano?).

fiz a partir dali outra conexão, porque tinha ido um dia antes ao show do cidadão instigado (alô, isabelle), banda cearense comandada por fernando catatau, no centrão de são paulo, na revigorada galeria olido, todos os tipos de público unidos em torno de ingressos de R$ 6 e R$ 3, rock psicodélico contemporâneo, iê-iê-iê dos 2000 para qualquer pagão, resquícios da administração municipal que já se foi. por descaminhos tortuosos, os concretismos de catatau e sua trupe ecoam ribombando os concretismos passados de seus conterrâneos belchior, fagner, ednardo. a voz esganiçada de catatau soma as vozes esganiçadas de belchior, fagner e ednardo na embolada do tempo, mesmo que catatau pretenda renegar seus pais. pais e filhos se misturam sem querer, em recife, olinda e fortaleza, no centrão de são paulo e nos bancos malucos de lina bo bardi, que deixam a gente de bunda quadrada (mangue bit é feito pra dançar? é, responde a platéia, esnobando lina).

p.s.: em sincronia com tanta vida, morreu bezerra (da silva), que orgulhava o samba, era o máximo e tal. mas sua morte em meio à era lula (da silva) não deixa de ser simbólica, um retrato em rolleyflex do brasil de 2005. choraremos bezerra, mas não é do mal fazermos as honras para o enterro de crenças persistentes no mito da malandragem, no confinamento do negro à malandragem, na lei de gérson, no medo que as classes que têm grana sentem das classes que não têm grana, nos rótulos preconceituosos com os quais as primeiras sempre pensam aprisionar as segundas (sendo que aprisionadas são elas, as primeiras). agradecemos, bezerra, pela contribuição milionária de todos os seus erros (& acertos) - pois quem usa antena é televisão (& caranguejo com cérebro). mas, como chico science também já deve saber, às vezes o de cima também desce, e o de baixo também sobe.