quarta-feira, fevereiro 02, 2005

dois mil e quatro 3, a terceira margem: rosinha, essa menina

alô, alô, marcia bechara!!!

puxa vida, há algo ainda a dizer sobre as nostalgias de 2004...

nesta semana encontrei a cantora maria alcina no supermercado, nós dois moramos no mesmo bairro, quase vizinhos. ela já não é mais magricela e careca como era nos anos 70, mas sua voz continua o mesmo trovão, e sigo vendo no olhar dela a mesma faísca de vivacidade e inteligência que reconheci nas (poucas) vezes que pude ver o tape em que ela cantava “fio maravilha” (de jorge ben) no polêmico festival internacional da canção de 1972, da rede globo. maria alcina é tão viva e vivaz como quando se rendia ao sistemão global, mas o fazia desafiando padrões de comportamento em pleno reinado do terror - era o hálito ditatorial terrorista de emílio garrastazú médici, que antes já arrasara com wilson simonal, erlon chaves, toni tornado... poucos (mas bons) tomam conhecimento, hoje em dia, da imponente sobrevivência de maria alcina, seja sob as plumas eletrônicas do grupo bojo, seja do alto nostálgico de "fio maravilha", "paraíba", "xuxu beleza" e, por que não?, da relativa infâmia de "seu delegado, prenda o tadeu" e da atividade de jurada (alô, aracy de almeida) dos programas de raul gil.

maria alcina, ah, maria alcina.
são tantas marias alcinas neste brasil.

2004 foi espetacular para uma delas, rosinha de valença - mas com o grave agravante de que isso se deveu, em parte, ao fato de que rosinha de valença morreu no glorioso 2004.

rosinha, essa menina (esse é o nome de um choro instrumental que lorde paulinho da viola compôs para ela e ficou gravado em "memórias - chorando", odeon, 1976), foi violonista da estirpe de baden powell, correu mundo com seu virtuosismo instrumental e tocou com quantos bons artistas brasileiros você possa imaginar nos anos 70, de nara leão a martinho da vila. era diretora musical e parceira dileta de maria bethânia, a quem apresentou a matriarca anônima negra ivone lara, sonho meu, sonho meu, vá buscar quem mora longe, sonho meu...

sem nem saber direito, conheço rosinha de valença desde 1976, quando (eu) tinha oito anos. minha irmã (treze anos) mais velha comprava muitos discos de mpb no eixo maringá-curitiba, e entre eles havia "bandido", de ney matogrosso & terceiro mundo (continental, 1976). eu quis comprar também aquele disco, (acho que) porque começava com "bandido corazón", composta por minha "ídola" de infância rita lee (a propósito, um dos moços da banda terceiro mundo era roberto de carvalho, futuro marido e parceiro principal da ruiva). pois (estou indo torto ao assunto) outra das minhas faixas favoritas de "bandido" era "usina de prata", composta por essa tal rosinha de valença.

"usina de prata, ninho de solidão/ peguei tanto peixe n'água, dei um talho na minha mão/ usina de água e prata, luar de prata na minha mão/ é lá que se vão meus ais e as dores do coração", cantava agudo e sofrido o ney. e, ói, a violonista também era compositora - fazia lindos versos simbolistas. tudo ali soava aquático, aquoso, como um remanso em que pudéssemos depositar nossos ais. "na cauda de um grande raio, atravessei pau d'alho/ bom-dia, senhora condessa, água de prata, cordão de nascença", continuava o cara bacana que hoje em dia nem se arrepia com a hipótese de ver reeditado aquele disco que gravou e que se chamava "bandido". será que é porque ali ele cantava rita lee e chico buarque ("mulheres de atenas", mirem-se no exemplo daquele homem que se arvorara a entender no lugar das mulheres o significado da alma das mulheres - obrigado, eva, pela revelação), mas cantava também rosinha de valença e odair josé ("cante uma canção de amor só pra mim/ isso vai me ajudar a viver")?

sei lá, só sei que ney continuava: "no poço da mina encontrei um moço bem feito de rosto/ trazia um peixe de prata, prata, prata, prata, prata, ai, ai". eu gostava da sonoridade daquelas palavras esféricas que ribombavam feito pedrinhas que a gente atira de assim na água do rio, para darem vários pulinhos na superfície antes de irem morar no fundo do leito do rio. para mim, a usina de prata ficava numa ilha, numa ilha cercada de água doce por todos os lados. sem saber nada sobre significados, eu gostava do pau d'alho, do talho na mão, da cauda do grande raio de trovão, do cordão de nascença (tanto medo de nascer para o mundo), da senhora condessa, do moço bem feito de rosto. hoje, tantos anos depois, me enche de orgulho saber que (coincidência?) o artista plástico valdirlei dias nunes fez para meu livro "como dois e dois são cinco" uma capa prateada como o peixe de prata, a água de prata, o luar de prata e a usina de prata daquela menina. rosinha era o lado escuro da lua, o outro lado da rua (o sol se chamava roberto carlos).

hmm, quanto vaivém. então. em 1992, já meio relegada ao ostracismo, rosinha desistiu de esperar para ver expulsarmos fernando collor da presidência que ele estava fraudando. teve um ataque cardíaco e entrou em coma, que se prolongaria por 12 anos, até sua morte, no ano passado. só com sua segunda morte maria bethânia, hoje em dia diretora de selo independente, acabou por concretizar o plano que diz que cultivava fazia tempo, de declarar um tributo inteiro a rosinha de valença. a "cabocla jurema", maria já cantara em seu "brasileirinho" (biscoito fino, 2003), em dueto com miúcha (que diz ter soltado a voz pela primeira vez num disco de rosinha, antes de virar a galinha poedeira dos "saltimbancos" de chico, seu irmão). maria e miúcha aprenderam a "cabocla jurema" com rosinha, que a aprendeu com o folclore. maria passara anos e anos e anos dando suporte financeiro aos cuidados de rosinha, alicerçada por miúcha, martinho, alcione, esses meninos. mas tributar, mesmo, só agora, num dos grandes álbuns do glorioso 2004, "namorando a rosa", que reúne todos os benfazejos de rosinha, mas também chico e caetano, as cantoras-compositoras ivone lara e bebel gilberto, os instrumentistas hermeto pascoal e yamandú costa, e tal.

por intermédio do tributo produzido, dirigido e lançado por bethânia (seu selo se chama quitanda, e é vinculado à independente-rica biscoito fino, de kati de almeida braga), eu soube que rosinha também cantara "usina de prata", naquele mesmo 1976, em seu próprio disco "bicho do mato", da odeon. eu nem sabia da existência desse disco (agora comprei, em vinil) até conhecer, via bethânia, aquelas lindas cações caipiras, brasileirinhas, que rosinha andava compondo em 1976. a multinacional emi, dona do espólio da odeon, nunca relançou "bicho do mato" em cd. a emi hoje em dia é dirigida por um homem inteligente, mas machista à beça, o dono do "tchan" - o que será que marcos maynard deve pensar de rosinha de valença? maria bethânia em pessoa canta "usina de prata" no tributo. mas deixa a mais linda de todas, "interior" ("uma reza forte contra o mau olhado"), para o vozeirão blue de alcione. "maninha, me mande um pouco do verde que te cerca", escreve rosinha em "interior" (gravada primeiro por bethânia, em "álibi", philips, 1978), parecendo retrucar a gravidade da "maninha" de chico buarque (cantada pelo autor com a irmã e mr. tom em "miúcha & antonio carlos jobim", rca, 1977), "um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar".

maria bethânia, que já gravou disco inteiro para roberto e erasmo carlos (copiando sua "ídola" nara leão, que já o fizera muitos anos antes), vem reflorindo, vem sofrendo transformação profunda desde que ancorou na biscoito fino. ela, que como nara já foi "carcará", virou versão feminina de lula, mulher que quer existir para louvar as virtudes verdes em flor do brasil interior, do brasil profundo, do brasil caipira, pira, pora, nossa senhora de aparecida. maria é irmã, araçá azul, de caetano veloso. o outro lado da lua, a outra banda da terra.

[edna passa por aqui e comenta que o violão de rosinha de valença, rodando na vitrola, a faz lembrar seu pai, que adorava o violão. daqui a pouco edna volta e conta que outro dia ficou morta de vergonha porque um senhor lhe falou que sua voz é linda, que ela deveria cantar. o sonho de edna era/é ser professora.]

o brasil carece de desvendar por que rosinha de valença passou 12 anos em coma antes de morrer jovem demais. é vero, um homem também morre cedo, menina morena (ave, torquato neto, cazuza, itamar assumpção: ao menos nisso eles são minoria), mas o brasil ex-ditatorial nos deve a explicação de por que tantas de suas melhores mulheres escorregam no limo das nossas rolling stones e nos privam de exercer a continuidade de suas identidades, idéias e inteligências, nos privam de suas velhices. o brasil há de saber e entender e explicar e redimir e neutralizar a desistência precoce de carmen miranda... dolores duran... maysa... elis regina... clara nunes... nara leão... jovelina pérola negra... cássia eller... celly campello... rosinha de valença... esqueci alguma?... o brasil, ói, precisa assinar carta de alforria que decrete que suas mulheres (e homens) vivam, vivam, vivam, vivam de montão. alô, favela, alô, ministros e ministras. alô, prefeitas e prefeitos, companheiros e companheiras, brasileiras e brasileiros, eu e você.