sábado, fevereiro 12, 2005

pílulas falantes (e ambulantes)

na última sexta-feira das minhas férias, pego o busão no ipiranga, lá pertinho de onde dom pedro i gritou "independência ou morte", e venho vindo até a praça do correio, até o vale lindo do anhangabaú. nostálgico, venho garrando a maginá. quando cheguei de maringá, 13 anos atrás, costumava me restringir a uma rota geográfica bem delimitada, bem limitada. ia daqui pra lá, dali pra acolá, e voltava rapidinho, apressado. nessa época, quando fixava o olhar na linha do horizonte eu costumava imaginar (fantasiar) que a cidade acabava logo ali além dos meus parcos horizontes. circulava pela rua vergueiro e supunha que não havia mais cidade para lá de vergueiro, além da liberdade, pros lados da aclimação. me aventurava pela praça da sé e deduzia que da abóbada azul para diante nada mais haveria (sonhar que a sé, pela liberdade, ia dar na vergueiro? nunquinha). sacolejava pela longínqua e longilínea avenida sapopemba e quase enxergava que à esquerda da serpente sapopemba tudo era deserto, vazio, despovoado. para mim a cidade acabava logo ali, que o vazio se espalhava para todos os lados ao redor das poucas ruas em que eu me confinava.
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pois até hoje, após 13 anos de estrada, ainda tomo uns sustos quando volto a pensar nos vazios que meus receios preenchiam com nadas imaginários. me flagro em plena avenida senador queirós, enlevado por (re)descobrir que, não, nunca a cidade cessou logo após a praça da república. pasmo, percebo que a senador queirós não só existe comprida como passa raspando pela galeria pajé, pelo mercado municipal, pela 25 de março. a tais lugares eu chegava por rotas diversas, ou então nem mesmo chegava (nunca entrei no mercado municipal, até hoje), e eis que eles existem todos ali, quase enfileirados. (re)descubro que a cidade continua vigorosa para todos os lados, quase interminável, logo ali, aqui mesmo.
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desço nos correios, tão decadentes os correios, neste tempo de e-mail... de pronto bato de frente com uma loja popular de cds, é entrar ou entrar. vasculho, compro semi-raridades a preço de banana: claudette soares, raimundo fagner e - tão lindo! - trio esperança. ao meu lado, um moço compra dois cds e um embrulho de r$ 1, uma caixinha de papelão rosa e fita vermelha. para presente, leva um disco da banda arrocha. para ele mesmo (suponho), escolhe outro de nara costa. penso que posso passar mil anos vivendo e estudando discos de música popular brasileira e nem assim terei oportunidade de saber quem é a cantora nara costa, essa nara que não é leão, essa não-gal para quem viro as costas. pululam pelas lojinhas do anhangabaú discos que nunca vou ouvir nem saber que foram concebidos e gravados. me dou a veleidades de que conheço alguma coisa da música do mundo, mas conheço, não, seu moço. só conheço fragmentos minúsculos da música do mundo, faíscas ruidosas da música do brasil. ao meu lado, moram mil outros brasis, de música por todas as vielas, aqui mesmo, bem distantes.
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é a bocarra do anhangabaú, ali por cima passa garboso o viaduto santa efigênia. venha ver, eugênia, como continua bonito o viaduto santa efigênia. venha até são paulo, seu itamar, ver o que é bom pra tosse.
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sigo flutuando pelo calçadão, os garotos skatistas, os rappers, a vegetação. de sopetão, o ventre livre do anhangabaú me apresenta a solada da porta de ferro cerrada de um prédio abandonado, e nela a fileira sestrosa de putas jovens, rostos expressivos metade tristeza, metade alegria. uma me vê passar e me cochicha "psiu", outra não me vê passar e segue animadas negociações em dolente sotaque nordestino, com o moço preto de sotaque igualmente arretado.
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despenca sobre mim o viaduto do chá, de onde rita lee 1985 fez despencar a glória f, a glória frankenstein. era um plágio, um quase autoplágio, porque glória f existia desde os tempos pré-mutantes, na pele de "suicida", acho que 1966. o fato é que a glória f de rita e/ou o/a suicida de rita&arnaldo&meninos despencavam do viaduto que ia levar à praça do patriarca e prosseguiam, meio esquartejados, meio ensangüentados, mas ainda vivos, lépidos e fagueiros.
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na distância vi o vulto do cigano desaparecer, nem sequer tive tempo de pedir que lesse minha sorte. alô, xico sá.
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o viaduto do chá está a apenas poucos passos do reduto das putas, mas ali a paisagem é completamente diferente. ao redor de bancos de praça que repousam ao sopé do viaduto, concentram-se outras tantas mulheres - brancas, pretas, quase coloridas -, que guardam entre elas apenas as semelhanças de serem todas senhoras idosas e carregarem revistas de catequização religiosa, "sentinela". de raspão, ouço promessas de regeneração, olhares perfurantes, a palavra "deus" ecoando na corrente elétrica que se transmite de uma a outra beata metropolitana.
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permito-me voltar a imaginar (fantasiar). e se trocássemos todas aquelas mulheres de lugar? vestimos de recato até os punhos, o pescoço e os tornozelos as jovens putas, abandonadas rodando bibliazinha no cu do anhangabaú. colocamos pesada maquiagem, minissaias e microblusas nas senhoras idosas beatas, atiçadas brandindo bolsinhas brancas de lantejoulas na testa dos cristãos. deliro? deliro. mas será mesmo que uma das velhas crentes não poderia se achegar a outra jovem prostituta e murmurar, um sorriso pintado no rosto, que "eu sou você amanhã"? não? não. mas então por que não se encontram nas reentrâncias e saliências do anhangabaú jovens pregadoras, velhas prostitutas? as primeiras ainda não nasceram? as últimas já morreram?
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"independência e vida", cantou certa vez rita lee, discordando veementemente da cisão proposta noutro século por dom pedro i. "independência e vida" constava do disco "zona zen" (emi, 1988), malhado à época por onze em cada dez pessoas, malhado até mesmo (desconfio) pela própria rita lee. independência e vida, "branca, preta, colorida".
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o relógio marca 18h10 quando atinjo o túnel metrô que partindo do anhangabaú vai furar o centro da terra. sexta-feira, dia longo de trampo, quase o fim de semana (para quem tem fim de semana). pessoas entram no buraco amontoadas, mas disciplinadas, feito formigas que passaram o dia fazendo provisão e agora vão privar de poucas horas de descanso nas entranhas do formigueiro. somamos passos amuados e seguimos vagarosos em fila, o rebanho, a pequena multidão que, agora que vai anoitecer, transformará o centro da cidade num lugar ermo, quase vazio. tão fora, tão longe, tão perto, tão dentro.
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chego de volta ao meu bairro, à minha rua que, cheia de árvores, quase me faz lembrar minha arborizada maringá. e volta à memória o sonho que outro dia eu sonhei: na rua paralela à minha, logo ali adiante onde a vista ainda alcança, ficava o mar, o oceano.