quarta-feira, abril 27, 2005

eu sou o samba (o rap) (o funk), a voz do morro (brasil) sou eu mesmo, sim, senhor

boa-noite, comunidade!
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[ih, lá vem o tópico mais longo de todos os tempos da última semana... o bom é que este blog pode ser lido, sem contra-indicação, num só gole, em pílulas, em drágeas, em conta-gotas, a (des)gosto do freguês... o ministério da saúde mental recomenda: consuma com moderação. mas consuma tudinho.]
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foi 100% sem querer (alô, denise garcia!), mas no tópico anterior acabei relacionando cidade de deus com dogville. e depois tive a sorte de ir em pessoa ao "roda viva", para testar na carne os paralalos que haviam recém-pintado na minha cuca lelé. foi inevitável chegar lá amedrontado, pensando em grace de dogville enquanto esperava a chegada de mv bill de cidade de deus. havia um nexo?
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o primeiro gesto foi um nexo, notado imediatamente pela psicanalista maria rita kehl, que nos deu o prazer de participar da mesa de entrevistadores. ela notou (instintivamente eu também havia notado) que o olhar assustado de mv bill era doce, que mv bill em pessoa era doce. confirmou isso conversando cara a cara com ele, eu não tive a mesma coragem. fiquei esperando o programa começar.
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havia o nexo? será que o olhar meigo de mv bill é o olhar meigo de grace de "dogville", a branca subserviente meiga humilhada violentada que ao final do filme explode em violência? sem nem sentir, eu temia que fosse, que os dogmas estivessem em voga e vigor. mas os fatos vieram me aplicar uma cilada, uma arapuca, um tropeção. porque o nexo era o antinexo, a negação do nexo.
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é que mv bill é a anti-nicole kidman, a anti-grace de "dogville". o que há de subserviência na personagem fictícia de lars von trier dissipa-se no comportamento altivo do rapper real da cidade de deus. ao menos até onde o assistimos no "roda viva" desta segunda-feira, mv bill pode ser o que você quiser, mas algo que ele definitivamente não é é subserviente. cada agressão que ele tomou naquela noite foi respondida na lata, imediatamente, com aquela candura de olhar que maria rita e eu havíamos percebido naquela noite, que os repórteres fernanda mena e cunha jr. (outros dos debatedores na mesa) já conheciam há mais tempo que nós.
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focos de tensão se estabeleceram instantaneamente na relação entre mv bill e o repórter policial veteraníssimo renato lombardi. este último me causou intenso desconforto, ao encarnar e sublinhar vícios que às vezes fazem o jornalismo parecer rito de julgamento, tribunal de inquisição, sala de tortura. pelo tom que lombardi imprimia às suas indagações, parecia que bill estava previamente julgado culpado e condenado -mas condenado pelo quê? acredito que nenhum de nós saiba ao certo, nem mesmo o lombardi (algumas respostas, a propósito, estão contidas em "cabeça de porco", o livro que bill pretendia ali divulgar).
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pois o rapper implicou, logo de cara, com certas observações (mais que perguntas) do lombardi, tipo "isso é verdade". na bucha, ele retrucava: "você não tem que dizer o que é verdade. tudo que eu estou falando é verdade". parece retórica e bobeira, mas não é. bill demonstrava, pelas entrelinhas, que tudo que caras como ele dizem é sempre previamente avaliado como mentira, não como verdade (alô, dr. caetano). as perguntas que se têm a fazer, a caras como ele, enebriam-se da droga pesada de confinar o debate em roteiros de traficantes, meninos mortos, armas, drogas, assaltos, cooptações, policiais corruptos.
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sentindo-se subliminarmente acusado e repreendido, o homem-símbolo do outro lado da moeda tomava de volta o domínio da situação, com a calma que lhe era possível, mas tentando coalhar a postura-destino de soldado do morro com a postura-atitude de artista e militante político. em ríspidas palavras, lombardi parecia bradar "seja subserviente"; bill se impunha, "subserviente não serei". não foi, nenhum segundo sequer, pois ele era (é) a anti-grace.
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[breve interrupção para um pequeno assunto diferente, que é o mesmo assunto: aí leio n'"o globo" o estimado antonio carlos miguel opinando que o samba-rap do (carioca) marcelo d2 convence, mas que o samba-rap do (paulista) rappin' hood não convence. por que, hein, ô, miguel? sinto falta de argumento palpável, sabe?, porque do jeito ligeiro como foi colocado fica tudo boiando, é só a (velha) impressão de que estamos no terreno (campo de futebol) estéril do bairrismo (rivalidade), que o rappin' hood não é bom só porque os caras do rio não querem que rappin' hood seja bom... pô, miguel, isso desmerece o rap (a jovem guarda) como um todo, não o rap (o iê-iê-iê) paulista ou carioca. a cadência fica lerda, morosa, esse papo que já não deu.]
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mv bill pertence, como ele mesmo declarou, à "ala falante do rap" (a gente adora quando fala a ala falante do rap! a gente adora a ala falante do rap, a do funk, a do samba, a do soul e a da rebimboca da parafuseta!!!). digo mais, o bardo de cdd provou ali pertencer não só à ala falante, mas também à ala pensante do rap, da música brasileira, do brasil. nos intervalos do programa, do interrogatório, da saraivada verbal, o ícone da ala pensante do rap se encolhia, abaixava a cabeça, apertava os olhos com as mãos, contava até dez, se concentrava em seus límpidos objetivos, ensimesmava. mv bill sofria, era evidente - e nós, ao redor, sofríamos juntos.
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[pausinha para dentro do mesmo assunto: a ida ao "roda viva" revela uma postura recente de mv bill, segundo me contou depois de assistir ao programa o julio moura, assessor de imprensa da biscoito fino que divulgou o cd "traficando informação", de 1999, pela gravadora natasha, de paula lavigne. passo a palavra ao julio: "na época, ele sequer admitia dar entrevistas fora da cidade de deus, e nós tivemos que fazer a coletiva lá, com direito a tiro de fuzil pra cima, avisando o pessoal do movimento que a van cheia de jornalistas tava 'liberada'. o cara tá bem mais flexível e extrovertido hoje. acho o Bill brilhante". como se vê, mv bill é um brasileiro que não senta o traseiro na cadeira esperando a caravana passar...]
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a ala pensante quer se expressar, mas exige o mesmo de seus pares. solicita tratamento equânime, sem subserviências. daí um dos ápices do debate: bill está respondendo a alguma pergunta de lombardi; lombardi interrompe a resposta à sua própria pergunta, re-perguntando: "você já usou drogas?"; bill tenta continuar a linha de raciocínio, busca não ser interrompido; lombardi insiste, acua, assedia: "você já usou drogas?"; bill encara lombardi nos olhos e rebate, em igual tom recrimiatório: "você já usou drogas?"; renato se empertiga, se retesa, apura o volume da voz para proferir um gordo e sonoro "não"; bill passeia sobre o nervosismo do "inimigo", retoma a responda à pergunta que havia sido interrompida. grace não mora mais aqui. e você, que assiste à tv cultura, lê este blog, é rapper e/ou repórter policial? já usou drogas? fuma, bebe, exagera no torresminho? ou cê tá se safando, só tem culpa o bill?
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mas o que eu queria saber era o que bill sente ao ver seu nome co-assinando um livro, um livro em parceria com o elaboradíssimo cientista político luiz eduardo soares. perguntei, ele respondeu meio de viés. mas lá adiante, já em outra pergunta, veio o esboço de resposta que eu supunha e que eu esperava: bill afirmou, com todas as letras, que nunca na vida imaginou que um dia escreveria um livro. pois está aí o ato consumado, mais potente que qualquer inquisição.
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[ê, comadre, já começou a chiadeira das classes médias e altas porque o lula lelé falou que brasileiro é acomodado e senta o traseiro na cadeira e fica esperando o juro baixar. "o lula também é acomodado", berrou o clóvis - ãhã, e aí?, vamos ficar pirraçando para ver quem é mais acomodado? ok, tomamos um pito coletivo do presidente falastrão, e ninguém gosta de tomar pito (eu o-de-io). se a conversa é entre gente adulta, pito não entra, mas isso é um outro assunto. por enquanto, o compadre me permita me alinhar um segundinho a mr. president, largar os juros e os cartões de crédito ("até porque não é pobre que tem cartão de crédito", disse mr. polvo) de ladinho e virar o binóculo da celeuma. independentemente do que o língua solta quis dizer, me diz aí, comadre-compadre: seu traseiro tá sentado acomodado na cadeira? você tá batalhando pelo que quer de verdade, ou é daquele(a)s que, como diz dr. tagarela, "reclamam de dia e à noite se conformam, reclamam de noite, mas de dia se conformam"? em outros trocaletras, você mora em dogville?]
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pois então, mv bill não sentou o traseiro na cadeira, foi atender ao desafio do antropólogo e co-escreveu um livro. depois do final do debate, perguntei a ele se ele já pensava em um próximo livro. disse que já pensa, sim, que vai fazer. lembro-me de "irmãos coragem", com jair rodrigues (estou me autoplagiando, e aproveitando para também divulgar meu livro - sobre meu amado roberto carlos -, que tem um capítulo com esse mesmo nome): "e os campos se abriram em flor...", para não dizer que não falamos de flores (alô, dr. geraldo vandré). você já leu mv bill, nego? então vá.
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[mais um intervalinho para nossos comerciais, este branco feito leite: já saiu o novo disco do kid abelha, "pega vida" (universal, 2005), em que paula toller e seus abóboras branquelos deram de falar de sexo pelos cotovelos (eu gosto). e, embora branco feito mármore, o cd traz uma versão de uma black music antiga feita por um cara quase tão branco quanto a paula, o guilherme lamounier (de quem também tenho falado insistentemente, eu sei - mas é que acho que nesse mato tem coelho, e eu não sei qual é). a música é "será que eu pus um grilo na sua cabeça?", uma das mais lindas baladas soul brasileiras dos anos 70, do saudoso lp "guilherme lamounier", continental, 1973. o co-autor é tibério gaspar, outro branco que já fez muita música preta brasieira (por exemplo "br-3", com que o abrasivo toni tornado arrasou o fatídico festival da canção de 1970). a versão do kid é reggaezinha, não pega totalmente o espírito do original (mas, bem, conservar intacta a supremacia da versão original também terá sido um sinal de sabedoria pop do kid, terá não sido?). ó uns trechos da letra: "abro meu coração/ solto meus cabelos livres no ar/ e não quero mais saber/ quero é dividir o meu amor com você", depois "curte essa canção/ solta o pensamento livre no ar/ e não queira mais saber/ venha dividir o amor que há em você". tão bonito. fora isso, ainda há os versos "olhe a natureza solta no chão/ veja aquele esquilo entre nozes e avelãs", aaaaaaaaaaah!!!!, esquilos e avelãs no brasiuuuuu, no brasill, aaaaaaaaaaaaaaaaah!!!!! será que eu pus um grilo na sua cabeça?]
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ah, mas a gente também adora as horas de clímax. houve um outro quando lombardi, já parcialmente neutralizado pela calma lancinante de bill, quis interromper de novo a fala do entrevistado, do dono provisório do programa da cultura. talvez exasperado com o ruído que vinha ali do lado, bill subiu levemente o tom de sua voz, tentando impor a obviedade de que eram dele ali a fala e o solo; lombardi invadiu, levantou também o tom de sua voz, competiu com o entrevistado pela primazia da voz; bill elevou mais uma vez seu tom, sem nunca querer ou precisar chegar ao grito ou ao descontrole; lombardi desistiu, calou, e bill pôde enfim completar seu raciocínio. então se virou educamente para lombardi, agora para saber o que tanto o afligia. e obteve do entrevistador o inesperado, um impactante pedido de desculpas, por que ele, entrevistador, vinha parecendo "meio antipático nas perguntas".
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gênio, gênio, gênio. naquele breve instante, o esqueminha do preto-bandido tomando tunga do branco-caubói desmontou, desmoronou, degringolou. lombardi não era o mocinho, porque bill não era o vilão, porque lombardi não era o mocinho, porque lombardi não era o vilão, porque bill não era o mocinho, porque bill não era o vilão... naquele instante parado no ar, a vida não se resumia a festivais, nem tampouco a filmes de caubói.
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e eis que fui me lembrar daquela frase tão fofa que pequeno pedrinho tantas vezes ouviu da boca de sua mãe, dona zaira: "quando um burro fala, o outro abaixa a orelha". zangado com seu lombardi, desejei repetir para ele a máxima de zaira. mas, espera, enfim qual de nós ali não atropelou o(a) outro(a) num desses ímpetos ansiosos de participar? ih, será que estou fazendo seu lombardi de meu "bode expiatório"?
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[pausinhona para o intervalo (anti)comercial. desta vez não é branco nem preto, nem homem nem mulher. é mestiço, postiço, castiço, arisco. chegou aqui também o single do chico césar, "compacto e simples", pelo independentíssimo selo próprio chita discos. eu tô rolando de rir, "odeio rodeio" é uma toada caipira cafooooooooona cuja letra estritamente mordaz diz assim: "odeio rodeio/ e sinto um certo nojo/ quando o sertanejo/ começa a tocar/ eu sei que é preconceito/ mas ninguém é perfeito/ me deixem desabafar", hahahahahaahahahahahahahahha. cançoneta que se diz & se contradiz & se antidiz na velocidade da luz, é cantada de modo "breganejo", naquela estratégia de duas vozes estridentes dos chitões e xorós. sabe quem faz a segunda voz? a "inventora" da expressão "odeio rodeio", rita ruiva lee. a outra faixa do single - s-i-n-g-l-e, ouviu?!, nóis também tem síngol! -, também composta por chico césar, se chama "brega", para desta vez dizer & desdizer & redizer a maldição do brega. estritamente cafona, faz assim: "olhar etíope devora seu retrato/ braços antílopes me apertam o coração", hahahaha. melhor, faz assim: "onde está meu araçá azul? devolve!", hahaahhaahahahahahahahhahaahahahahahhahahahahahahaha. eu não agüento, eu não agüento! dê-lhe, crítica & autocrítica!]
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[rapazes d'"o globo", atenção!, não vão falar que "compacto e simples" é ruim só porque chico césar, assim como a grande maioria dos seres humanos, não é carioca, hein?! já basta o drible furado de criticar vander lee porque parece jorge vercilo (desse vocês gostam, né?) e porque nessa seara já existem chico césar e zeca baleiro. ei, mas, com o perdão da grosseria, o que tem o cu com as calças??? ah, lembrei. chico é paraibano. zeca é maranhense. vander, além de mineiro, era sambista e agora resolveu surfar na onda bregapop do vercilo. que, suprema coincidência, é carioca de botafogo.]
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ah, não falei ainda do paulo markun, o gentilíssimo apresentador do programa. tratou mv bill com exemplar civilidade, mesmo cedendo brevemente ao chavão de reclamar que o livro de bill, soares e celso athayde abordava os problemas, mas não encontrava as soluções; não, aquele livro é, por ele só, um pecinha riquíssima da soluçãozona (falta todos nosotros irmos encaixando também nossas pecinhas neste imenso e complicadíssimo quebra-cabeças).
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pois depois do final do debate markun comentou comigo e com fernanda a importância da presença de lombardi no debate - renato personificava o contraponto, ele explicou. não entendi no ato, mas depois garrei a maginá. e concordei que, por querer ou sem querer, lombardi desempenhou a escada de apoio para que mv bill reafirmasse seu valor, sua auto-estima, a justeza das idéias que defende - e, ao contrário de seu antagonista, fez isso ressaltando que não tem certeza de que esteja certo, que sabe que são apenas suas convicções e nada mais; ah, se todos tivéssemos convicções assim tão firmes, e as colocássemos com a mesma delicadeza a nossos irmãos... dogville ficaria um tiquinho mais distante...
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[ah, mas viu numa notícia minúscula da "folha" outro dia que a favela de heliópolis não quer mais ser dogville? está lá o ruy ohtake, aquele das carambolas e melancias, coordenando o projeto imaginado pela própria comunidade, de pintar de cores vivas as casas da favela. parece que othake tinha dito que heliópolis era feia como o diabo, os habitantes não gostaram e se uniram ao antagonista para reformular. e, pelo que se via na foto, lá as riscas de giz sobre o chão nu à moda de "dogville" amanheceram pintadas de todas as cores, aquelas que, misturadas, colocam um sorriso discreto no canto da nossa boca.]
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e aí o ato de mestre de markun. depois do fim do programa, desceu humildemente de seu lugar com seu exemplar de "cabeça de porco" a tiracolo, chegou até mv bill e, observando que não tem o hábito de fazer isso, pediu-lhe um autógrafo, a mesma expressão generosa de maria rita kehl estampadando o rosto aparentemente fechado. meu mundo caiu, e eu, que nem diante de lou reed tivera a pachorra de pedir um autógrafo (tenho um de baby do brasil, mas foi ela que quis dar - e eu adorei), me curvei às evidências e pedi também o meu primeiro autógrafo, ao mv bill, cuja música nem consigo compreender completamente. cê tá entendendo a dimensão simbólica, que markun percebeu com tamanha presteza? evoco o branco ivan lins, cuja música também não consigo compreender completamente: "somos todos iguais nesta noite".
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[nos sorrisos simpáticos simultâneos trocados entre lula e condoleezza rice, qual dos dois você acha mais parecido com grace, de dogville? a nicole-negra-condoleezza? ou o homem-kidman-da-silva? quem tem mais medo, quem mente mais, quem toma mais pito? condoleezza rice é luiz inácio?]
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já amanhecendo no lusco-fusco desta gigantesca crônica (chama crônica isso? como isso chama?), fico achando que não fui muito claro a respeito de mim mesmo nesse balaio de gatos. saí de lá ainda tenso, mas feliz pela impressão de ter estabelecido durante o programa uma comunicação 100% não agressiva com o temido mv bill. ao vivo e em várias cores, perdi um pouquinho do medo que eu tinha dele. por trás das câmeras, não era bem assim, ali são outros 500 (anos de história). não quero passar a falsa impressão de que me comunico assim com tanta fluência e descontração com gente como mv bill, china, deize tigrona, maria rita, tati quebra barraco, felipe s., max de castro, rappin' hood e outros dos mais importantes artistas do brasil de 2005, os quais vivo cruzando por aí por força do ofício. não é bem assim. os diálogos, fora o disfarce dos ofícios, é truncado, doído, temeroso. é muita barreira a ser movida, para todos nós, brasileiros, que temos (re)aprendido que "o medo de amar é o medo de ser livre". doggodville (ainda) é aqui. boa-noite, boa-noite, bom-dia, comunidade-de-deus!