sexta-feira, abril 15, 2005

a "mãe" (& a refavela *)

você percebeu que ontem foi um dia incrível, notável, histórico para o brasil?

tudo começou quando dr. lula foi passear na áfrica. veio logo o apupo, o nhenhehém: que o presidente só passeia, que não há nada para fazer na áfrica, que a viagem está sendo inútil, que o ministro furlan se irritou com os africanos, que não vai adiantar nada no comércio, blablablá...

aí mr. simbólico vestiu as túnicas dos africanos. interiorizou, incorporou, recebeu o santo.

enquanto a comitiva passeava, o brasil seguia seu tino. como já aconteceu zilhões de vezes, num campo de futebol em público e ao vivo para zilhões de pessoas (ou seja, num lugar qualquer, paratodos), um jogador branco de futebol insultou de forma racista um jogador negro de futebol. e eis que, plim, alguma coisa estava diferente naquele dia, e o homem branco que espezinhava o homem negro foi chamado à sua responsabilidade. aprendeu, de forma traumática, que doravante terá de pensar duas vezes antes de dar vazão pública às suas próprias misérias.

mais ou menos ao mesmo tempo, na áfrica, o presidente do brasil pedia perdão público aos africanos, pela escravidão que por séculos os violentou. ministros choravam, em especial o ministro-cantor negro gilberto gil, pai de uma menina chamada preta maria e autor, há mais de uma geração, do hino medrosamente anti-racista "refavela" (do álbum medrosamente anti-racista de mesmo nome, philips, 1977, que também continha versos de paulinho camafeu que diziam "branco, se você soubesse/ o valor que preto tem/ tu tomava banho de piche, branco/ ficava preto também").

também estava lá a ex-ministra mulher negra ex-favelada benedita da silva, demitida daquele mesmo governo, quem sabe para pagar por antecipação os abusos do moreno (mas coberto de denúncias de todas as cores) romero jucá (esse, recém-nomeado, ficou aqui no brasil mesmo). escorraçada do governo em um dos expurgos anteriores, benedita disse que não guarda mágoa. será que o pedido de perdão também lava sua alma política humilhada, de algum modo? será que romero jucá guarda mágoa do sr. lula?

também estava lá a semi-ministra mulher negra matilde ribeiro, que responde pela secretaria especial de políticas de promoção da igualdade racial. mesmo da áfrica, matilde comentou o que acontecia nos campos brasileiros de futebol (ou em quaisquer campos). disse que o racismo não será suficientemente punido no brasil enquanto apenas brancos seguirem liderando o poder judiciário. espero que isso seja um chamado aos negros, mais que um puxão de orelha aos brancos.

e, obviamente, estava lá também abdoulaye wade, o presidente do senegal, país onde se encontra essa ilha de gorée (já cantada, em francês e com toneladas de dor, por gilberto gil) que era palco do pedido histórico de perdão. segundo ensina gil desde ao menos o álbum "quanta" (wea, 1997), gorée foi plataforma de lançamento de escravos africanos para vários cantos do mundo - o brasil colonial esteve na "vanguarda" desse atraso. pois o presidente do senegal falou, com simpatia e exagero, que chefe lullaby é o primeiro presidente negro do brasil. não, embora seja simpatizante, lula não é negro, não. o(a) primeiro(a) presidente negro(a) do brasil nós ainda havemos de conhecer.

dois pra lá, dois pra cá, brasil e áfrica seguiam o dia de ontem de mãos entrelaçadas, feito charles & camilla, numa corrente para a frente que articulava e enfileirava a casa dos escravos de gorée, o campo brasileiro de futebol, a prisão tupiniquim onde foi atirado, não sem certos esgares também racistas, o jogador argentino de futebol (a prisão ainda acompanha de perto o suco étnico do brasil - "a favela é a nova senzala", alô, lobão)... e o racismo, por raro preciosismo, virou manchete por um dia, em toda a mídia nacional (ecoando também por áfricas, argentina & outros continentes). era um dia histórico para os dois, mãe áfrica e filho (bastardo) brasil.

é possível que a gente ainda veja cada um desses flagrantes de forma isolada, confinada, camuflada, enrustida - é a falta de traquejo em nosso olhar sofrido. não articulamos os fios, como também não os relacionamos com fios como, por exemplo, a vitória do professor homossexual baiano jean wyllys no "big brother brasil", o pânico da mãe de santo brasileira periférica em voar no avião presidencial para encarar a "vanguarda" religiosa do mundo, ou as conquistas de deize tigrona, funkeira feminista carioca que não tem um pingo de vergonha de dizer que mora em cidade de deus e que não é só cantora e compositora, mas também empregada doméstica (mais detalhes na revista "carta capital" que está chegando às bancas).

mas, se pudermos desanuviar o olhar e ligar todos esses pontinhos, o nome do conjunto será "processo histórico", "espírito do tempo", "cura coletiva". e os dias entre março e abril de 2005 terão sido marcos de uma pequenina (gigantesca) revolução, à qual não sairá incólume (graças a deus) um brasil que se encontra em pleno processo de abolição da escravatura.

de repente, onde tudo se mistura, um país inteiro vestia colossal túnica africana.

(* "refavela", lembra? é assim: "a refavela/ revela aquela/ que desce o morro e vem transar/ o ambiente/ efervescente/ de uma cidade a cintilar. a refavela/ revela o salto/ que o preto pobre tenta dar/ quando se arranca/ do seu barraco/ prum bloco do bnh. a refavela/ revela a escola/ de samba paradoxal/ brasileirinho/ pelo sotaque/ mas de língua internacional. a refavela/ revela o passo/ com que caminha a geração/ do black jovem/ do black rio/ da nova dança de salão. a refavela/ revela o choque/ entre a favela-inferno e o céu/ baby blue rock/ sobre a cabeça/ de um povo chocolate e mel. a refavela/ revela o sonho/ de minh'alma, meu coração/ de minha gente/ minha semente/ preta maria, zé, joão. a refavela/ alegoria/ elegia, alegria e dor/ rico brinquedo/ de samba-enredo/ sobre medo, segredo e amor. a refavela/ batuque puro/ de samba duro de marfim/ marfim da costa/ de uma nigéria/ miséria, roupa de cetim. a refavela, a refavela, ó/ como é tão bela, como é tão bela, ó/ iaiá, kiriê, kiriê, iaiá.")