quarta-feira, maio 11, 2005

dupla identidade

depois foi a vez, na "carta capital" 332, de 9 de março de 2005, de reportagem sobre o ano do brasil na frança, escrito "a quatro patas" por mim e pela ana paula sousa. também escrevi um "box" dizendo quem é que é esse tal de andré midani. oui, oui...

[aliás, já que o assunto envolve ministério da cultura... que história é essa de agora o governo lula querer inventar loteria para tudo, hein? é loteria da cultura chegando, depois loteria da educação ("loteria da educação"????!?), de não sei mais quem... acham que o jeito de causar de-sen-vol-vi-men-to a um país é abocanhando na fezinha do povão, é? lamentável...]

DUPLA IDENTIDADE
Celebrado na França, o Brasil tenta mostrar-se moderno, mas os estereótipos verde-amarelos ainda resistem

Por Ana Paula Sousa e Pedro Alexandre Sanches

Protagonista de uma homenagem que se estenderá pelo ano todo na França, a cultura brasileira defronta-se, mais uma vez, com as próprias contradições. Mesmo alternando velhos estereótipos com uma abordagem mais moderna do País, o Ano do Brasil na França faz avançar uma complexa discussão sobre identidade nacional.

De um lado, os franceses ainda grudam a imagem do Brasil ao tabuleiro da baiana e ao rebolado da mulata. Do outro, os brasileiros embarcam no avião retratos mais sóbrios, como as placas de ferro do escultor Amilcar de Castro (1920-2002) e os sons inventivos do multiinstrumentista Hermeto Pascoal.

Apelidado de Brésil Brésils, o evento foi proposto pelo governo da França – que já fez o mesmo com países como China e Polônia – e incluirá mais de 400 atrações em todas as áreas culturais: exposições, shows, espetáculos de teatro e dança, cinema, literatura etc.

Do Tesouro francês sairá 1 milhão de euros. Dos cofres do Ministério da Cultura (MinC), estão saindo R$ 30 milhões e, de empresas estatais, R$ 10 milhões. "O investimento público é como a locomotiva do trem. Apenas puxará o Ano, mas haverá também dinheiro de empresas", aposta Marcio Meira, secretário de Articulação Institucional do MinC.

"A contribuição francesa não se dará apenas com dinheiro do governo. Estamos disponibilizando todos os espaços para o Brasil, de museus a casas de espetáculos. E vocês, no Brasil, têm a Lei Rouanet", cita, com desembaraço, Jean-François Chougnet, comissário-geral do lado francês.

Se Chougnet ouvisse as declarações do comissário-geral do lado brasileiro, André Midani, não se animaria tanto com as moedas que podem pingar da torneira da lei de incentivo fiscal. "Uma parte da iniciativa privada comporta-se bem, mas há uma massa ainda muito conservadora, que só quer saber se vai ter retorno financeiro", declara Midani. "No melhor dos mundos, metade dos investimentos no Ano viria da iniciativa privada. Mas, na realidade, talvez estejamos próximos de 40% do ideal."

As cifras até agora tornadas públicas (que deixam de fora os ainda não contabilizados recursos privados) podem passar a impressão de fragilidade. Mas, quando se folheia a programação, a sensação é outra: o Brasil estará, sim, fortemente presente no país. Conselheiro da embaixada do Brasil em Paris, o diplomata Rui Amaral mostra, com números, que a França está para lá de animada com o que vem por aí.

De acordo com Amaral, apenas em janeiro foram publicadas 21 matérias em jornal, 96 em revistas e mais umas tantas horas em tevê e rádio. "Há um movimento imenso ao redor do Ano, uma grande curiosidade a respeito do Brasil", aposta o representante do Itamaraty. E o que receberão os franceses?

"Esperamos e pretendemos mostrar um Brasil moderno. Quando um país quer vender sua modernidade, seja ela tecnológica, seja econômica, ele utiliza sua cultura como ponta-de-lança", define Midani. "O público francês desconhece por completo o Brasil. Conhecem os arquétipos, que não vamos recusar. Mas pretendemos complementar esse panorama com uma realidade mais ampla."

Marcio Meira exemplifica: "Não queremos reforçar as imagens preconceituosas. Em vez da mulata seminua sambando, por que não apresentar o samba de raiz?" Mas a missão não será simples. O jornal Le Monde deixa antever que espera tambores e gingado: "Dançaremos (sic) a 'capoeira' enquanto os 'trios elétricos' desfilam na Côte d'Azur".

A revista Paris Match, que dedicou um número ao Brasil, colocou Marisa Monte na capa e não se restringiu ao óbvio – o que não impede que, nos anúncios, apareçam os clichês de sempre, com baianas enfeitadas de modo caricato e praias cheias de coqueiros.

A questão subjacente a isso tudo é, claramente, da imagem que o Brasil possui e da imagem que gostaria de possuir. Ao serem "recebidos" por um país como a França, os brasileiros, sem querer, adotam uma postura de gratidão. É o próprio Midani quem reconhece que as relações, por enquanto, não são de troca recíproca. "O Brasil, por debaixo desse sorriso grande e dessa bonomia, tem sido um País muito insular, tímido, com um grande complexo de inferioridade."

A historiadora Lorelai Kury, doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, destaca a necessidade de desenvolver um olhar menos pautado pelo exotismo nas relações entre a França e o Brasil. Lorelai observa que as imagens de alegria, vivacidade e sensualidade ainda são vistas como inatas dos países tropicais. "O símbolo da França é a Torre Eiffel, o dos EUA, a Estátua da Liberdade. Aqui, são montanhas ou mulheres peladas, imagens que não dependem de aptidão, do esforço humano", diz Lorelai.

E esse olhar estrangeiro, segundo a historiadora, foi interiorizado por parte das elites brasileiras. Mas Lorelai ressalta que, ao menos nos meios científicos, acadêmicos e culturais, a superação de tal complexo de inferioridade já é uma realidade. Esse deve ser o foco de seminário da Fiocruz no Ano do Brasil na França, que discutirá as relações científicas entre os dois países, e ainda de outros tantos debates agendados para o evento.

No campo da cultura, porém, a mudança de postura é mais complicada. As atividades nas áreas da música e do cinema desnudam desencontros entre o que os franceses acham que o Brasil tem e o que o Brasil acha que tem.

País de cultura cinematográfica, a França aproveitou o Ano para esticar os olhos às imagens produzidas no Brasil e convidou o País para mais de 30 festivais. Acontece que os organizadores voltaram os olhos para trás. E quase estancaram seu interesse nos anos 60.

Apesar de a Agência Nacional de Cinema (Ancine) ter selecionado 108 títulos feitos nos últimos dez anos, poucos deles caíram bem no paladar dos franceses. "Eles têm mais interesse pelo cinema de autor, apesar de, mesmo lá, esse conceito estar sob discussão", pondera Jom Tob Azulay, da Ancine. "Os organizadores dos festivais franceses tendem a tomar a pesquisa de linguagem como um critério de escolha", diz Azulay.

Que o diga Dominique Bax, diretora do Festival de Bobigny, nos arredores de Paris, que será aberto no dia 16. "O que conhecemos do cinema brasileiro é Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, e alguns outros filmes do Cinema Novo", confirma Dominique.

Por solicitação dos brasileiros, ela abriu exceção para oito filmes atuais que, de alguma maneira, se cruzam, tematicamente, ao que produziu a geração de Glauber, como Amarelo Manga, de Cláudio Assis, e Latitude Zero, de Toni Venturi. "Na França, hoje, conhecemos apenas Walter Salles e Cidade de Deus (de Fernando Meirelles)", confirma.

Dominique pontua que, pelo que viu até agora, tem a sensação de que o cinema brasileiro está tentando aderir a uma lógica industrial de sucesso. "Em geral, filmes feitos sob esse princípio interessam pouco aos estrangeiros", observa. Para contornar esse desinteresse dos franceses por parte da ficção produzida recentemente no País, os organizadores acabaram por apostar várias fichas nos documentários – mais autorais e mais próximos da realidade social brasileira.

"Os estereótipos não são só carnaval e futebol. Há também o de que cinema, no Brasil, é só o Cinema Novo", reflete a historiadora Moema Salgado, coordenadora do setor Audiovisual no comissariado. "No fim, o que mais tem interessado a eles é a produção documental."

O impactante Ônibus 174 foi, até agora, o campeão de solicitações. E, ironicamente, o filme dirigido por José Padilha acaba por ressaltar o caçula dos estereótipos. "O Brasil, na Europa, é carnaval, futebol e também violência urbana", atesta Chougnet. "Não reforçar essa imagem de violência é uma preocupação de todos nós, mas é natural que ela apareça nos filmes, por exemplo."

Além dos filmes isolados em festivais, a área do audiovisual terá algumas homenagens especiais ao inevitável Glauber, ao experimental Júlio Bressane, ao documentarista Eduardo Coutinho, ao multinacional Walter Salles e ao vanguardista Alberto Cavalcanti.

Se a lista de diretores homenageados resume bem o interesse dos franceses e sua idéia do que realmente importa no cinema brasileiro, o panorama musical também não fugirá dos nomes inevitáveis. Pelo viés da imagem brasileira fixada desde os anos 60 na música popular, estão programadas apresentações de artistas como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gal Costa e o próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil.

Por outro lado, os estereótipos de alegria tropical estarão garantidos em concertos de nomes brasileiros muito populares na Europa, como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Carlinhos Brown.

O comissário André Midani diz saber que a escalação causará "chiadeira" no Brasil: "Aqui já sei que vão dizer que é 'só Bahia', 'baianada'. Mas não dá para botar artistas reflexivos num palco para 40 mil ou 50 mil pessoas. Negociamos um palco como o do Olympia para Marisa Monte, mas um show ao ar livre precisa de Carlinhos Brown, Gil, Ivete Sangalo. Brown reuniu 300 mil pessoas em Barcelona, não dá para negar isso".

Midani admite, aqui, um certo conflito entre a identidade que o Brasil quer ter e a imagem que de fato o País transmite. "Inicialmente, pensei que poderia influenciar na seleção de projetos que recebemos, mas não fui muito bem-sucedido. Ouvi reações como 'muito bem, mas esse artista eu não conheço', tive que dar marcha atrás."

Mesmo assim, o Brasil conseguiu emplacar uma galeria eloqüente de artistas novos (e ainda desconhecidos na França, como é o caso de Maria Rita, filha de Elis Regina) e alternativos. Desse último grupo saem nomes que escapam dos estereótipos samba-axé, porque são modernizadores, como DJ Dolores, Marcelo D2, Nação Zumbi, Silvério Pessoa etc., ou primam pelo formalismo musical, como Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Paulo Moura, João Bosco, Yamandú Costa, Mônica Salmaso etc.

A diversidade apontada por Midani como objetivo a ser atingido se apresenta nos extremos que vão do samba de raiz, extracarnavalesco (Velha Guarda da Portela, Dona Inah) ao polêmico funk carioca, representado pelo DJ Marlboro, que aqui costuma ser apontado como primário, mas vem influenciando crescentemente as platéias européias.

Um curioso espelho forma-se, enfim, entre o cinema industrial que não empolga os comissariados franceses e a música popular, que deve se expor lá fora em toda a sua diversidade, mas alijando em larga escala a cada vez mais fraca indústria fonográfica nacional.

Diz Midani, do alto da vivência como homem egresso do círculo das grandes gravadoras (quadro na pág. ao lado): "Seria melhor se tivéssemos uma indústria otimista, dinâmica, que se integrasse a essas iniciativas. Mas ela é acuada, age só para tentar não perder mais ainda. Não chegamos nem a tentar parcerias. O processo passou à margem das grandes companhias".

A Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), unificadora da grande indústria fonográfica local, dá sua versão, por intermédio do diretor-geral, Paulo Rosa: "Fomos contatados por telefone por Midani em meados do ano passado. Ele nos solicitou DVDs de vários artistas (cinco unidades de cada), no que foi atendido prontamente. Depois desse contato, a ABPD não foi mais procurada por ninguém".

Mas Rosa contemporiza, festejando a presença da música brasileira no evento: "Entendemos que a música brasileira estará muito bem representada".

Se no cinema a ala mais "industrial" não agradou aos franceses e se na música a indústria foi ignorada pelos organizadores brasileiros, nas outras áreas os desencontros parecem ter sido menores. Apesar do susto pregado pelo fim da BrasilConnects, de Edemar Cid Ferreira, os projetos de exposições, sob coordenação de Elisa Leonel, seguem adiante.

Haverá as grandiosas, como Amazônia Brasil e As Artes dos Índios do Brasil, ambas em Paris, e mostras de grande relevância espalhadas por diversas cidades, como as de Cicero Dias, Frans Krajcberg, Iberê Camargo e Adriana Varejão, entre muitos outros. Caberá a Tunga uma das participações mais ousadas. "Ele levará, de junho a setembro, para a pirâmide do Louvre, a instalação A Luz dos Dois Mundos", conta Elisa.

Fica para junho a inauguração do Espaço Brasil, único projeto assinado pelo MinC, que ocupará 2,6 mil metros quadrados, no Carreau du Temple, em Paris. "A China iluminou a Torre Eiffel de vermelho; a Índia botou um elefante para passear pelas ruas; nós decidimos criar espaço, que fará uma espécie de convite de 'venha ao Brasil'", diz Daiana Castilho Dias, coordenadora do Espaço.

O Espaço Brasil vai congregar 13 estados brasileiros representados em cinco grandes mostras. "O espaço foi montado como modelo de divulgação do Brasil no exterior. Vai abrigar negócios também, como estandes de moda-praia e outros de degustação de frutas, cachaça e café de grife. O Banco do Brasil montará um banco de negócios, com uma carteira de exportações aberta."

De acordo com Marcio Meira, estimulada pelo Ano do Brasil na França, a rede de lojas Printemps já comprou 40 milhões de euros em produtos brasileiros, e a Casino, R$ 70 milhões. "Além dos negócios, o Ano pode contribuir para o aumento do turismo no Brasil", aposta o secretário do MinC.

Entre os cifrões do comércio e os símbolos mais discretos da cultura nacional – que não são coloridos por tons verde-e-amarelos –, resta ver para que lado penderá o Brasil na França. Estereótipo, todos sabem, é mais fácil de vender. A julgar pela programação, o Brasil ainda cede a estereótipos, mas tenta escapar desse enganoso atalho.

DE DESERTOR A COMISSÁRIO
Ex-chefão de gravadoras, Midani coordena o Ano do Brasil

Choque cultural é algo que sempre fez parte da história do homem que ergue pelo lado brasileiro o Ano do Brasil na França. Nascido na Síria há 72 anos, André Midani tornou-se francês antes dos 3 anos de idade, e não teve relação pacífica com as próprias origens: "Eu tinha vergonha de ser filho de árabe. Falsificava esse dado, inventava mentiras para afastar esse dado de mim".

Aos 22 anos, querendo fugir do alistamento francês à Guerra da Argélia, veio para o Brasil como desertor, segundo suas palavras. Aqui, iria se tornar um dos principais executivos da indústria fonográfica local. Como diretor da antiga gravadora Philips, esteve por trás da ascensão de artistas como Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso, Raul Seixas e dezenas de outros.

Data dessa época a relação com o hoje ministro da Cultura, Gilberto Gil, que acabou designando como comissário-geral brasileiro seu ex-patrão.

Midani participou ativamente do círculo de virtudes e vícios da indústria fonográfica dos anos 70 e 80. Há dois anos, já aposentado, veio a público relatar sua participação em esquemas viciados das gravadoras, como pagamentos para impor sucessos musicais em rádios e tevês – o chamado jabaculê.

Poderia ser visto, a gosto do freguês, como um agente impulsionador/modernizador da cultura popular brasileira, ou, por outro lado, como explorador desses mesmos valores. Em 2005, surpreende-se que um megaevento de caráter assumidamente comercial venha a funcionar como oportunidade de reconciliá-lo com a França, exatos 50 anos mais tarde.

"Acho que você sempre migra contra a vontade e, ao migrar, rompe com o passado para não sofrer. Rompi e fiquei rompido, até agora", resume.

Ao mesmo tempo admite e nega uma ligação do tipo colonizado-colonizador em trocas como as que acontecerão por conta do Ano do Brasil. "Um problema que, ao que eu saiba, ainda não foi resolvido é o do colonialismo do brasileiro pelo próprio brasileiro. Enquanto o colonizador interno não for resolvido, vai haver sempre um cancerzinho aí nos levando a posições colonizadas", reflete.

Midani reconhece que as relações, por ora, não são de troca recíproca. Mas, defendendo sua atuação presente, afirma que a França nunca foi colonialista em relação ao Brasil: "O pensamento francês tem uma grande importância na história do Brasil, mas o que pouco se sabe e é ignorado é que a recíproca também é verdadeira".

E toma o exemplo norte-americano para elaborar uma possível receita do que acredita que o Brasil precisa fazer para vencer o tal complexo de inferioridade: "Os Estados Unidos foram colonizados pelos ingleses e não se entendem como colônia. Dialogam com os ingleses de igual para igual".

Por isso, diz que evoca conselho de sua mãe ao menino Midani para negociar com empresários brasileiros e franceses: "'Bote seu terno mais bonito porque hoje vamos à igreja', ela dizia. Hoje já temos terno, meia e sapato, falta-nos a camisa e a gravata". Está falando do Ano do Brasil na França – e de tudo o mais. PAS