segunda-feira, maio 30, 2005

"zé brasileiro" e a crise da música

enquanto assimilo a parada de ontem (que foi espetacular), vamos de "carta capital" 339, de 27 de abril de 2005. tenho certeza de que alguma história igual a essa está acontecendo bem pertinho de você, bem diante do seu nariz - e não há peru bêbado de carnaval (peru? bêbado? de caaaarnaaaavaaaal? escuta, alguém aí está ficando gagá, ou é impressão minha? alô, madamada!) que possa ofuscar...


"ZÉ BRASILEIRO" E A CRISE DA MÚSICA
O atacadista Benjamim Martins cresce em meio à recessão da indústria fonográfica e investe R$ 40 milhões em nova sede

Por Pedro Alexandre Sanches

Há um curioso elemento emergente na claudicante indústria musical brasileira. Empreendedor que acaba de erguer um prédio de R$ 40 milhões para sediar sua empresa atacadista de produtos musicais, Benjamim Guimarães Martins, 66 anos, tem desnorteado a idéia de ruína vigente na indústria fonográfica nacional dos anos 2000.

É tratado como "seu Martins" tanto por seus funcionários quanto por executivos que chegam de helicóptero ao Multimídia Trade Center, nova sede recém-inaugurada de sua A Universal (que nada tem a ver com a gravadora Universal, nem com a igreja homônima), rede de atacado que vem crescendo continuamente desde sua inauguração, em 1994.

A expansão se materializa agora às margens do rio Tietê, num edifício luxuoso com seis andares, salão de festas, palco para shows, capela, área vip, terraço com quadra de tênis e heliporto, docas de carga e descarga e até uma frondosa paineira centenária ao redor do qual o prédio foi construído.

Tanta pujança acaba por colocar sob suspeição o rosário de queixas em que se transformou a produção industrial de música no Brasil, sincronizada num discurso que martela que a pirataria a qualquer momento acabará com a música brasileira – a Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD) estima que a falsificação de CDs pulou de 3% do mercado total em 1997 para 52% em 2003.

Há poucos dias, o jovem presidente da Sony BMG, Alexandre Schiavo, jogou lenha na fogueira dos lamentos, afirmando que uma suposta crise de talentos artísticos estaria contribuindo para a penúria da indústria. Resultado da fusão recente das multinacionais Sony e BMG, a gravadora é, ela própria, sintoma a mais do encolhimento global da indústria musical.

Como explicar, diante disso tudo, a ascensão de seu Martins?

Baiano migrante que começou carreira em música há 44 anos, com uma modesta loja de discos instalada em São Bernardo ("sou de origem humilde e continuo humilde até hoje"), ele próprio mostra certa incredulidade diante do progresso: "Quando resolvi construir a nova sede, fui chamado de aventureiro, empreendedor maluco. Tem hora que acho que fiquei mesmo maluco".

Mas oferece os contra-argumentos: "Não estou na contramão, os compradores existem. O que falta é imaginação, atrevimento. Se há 170 milhões de brasileiros e nós vendemos 30 milhões de CDs, então menos de um em cada cinco brasileiros está comprando CD. É mercado em potencial".

Apoio à tese do "atrevimento" é o fato de que A Universal também sofre com a crise. De 2003 para 2004, registrou queda de 9% na venda de CDs – na indústria como um todo, o decréscimo foi de 27%. Hoje a empresa se relaciona comercialmente com 5.000 lojas espalhadas pelo Brasil, o que incomoda seu Martins, que já teve 7.200 clientes cadastrados e tem testemunhado o rápido desaparecimento de milhares de pequenas lojas. Mas, novamente, contrasta com multinacionais que vivem às turras com pequenos lojistas e não costumam ter mais que 1.500 clientes.

O atacadista em ascensão prefere combater a crise a adotar recuo equivalente ao das gravadoras. E ocupa, assim, um cenário de concentração inédita de poder de distribuição, o que ajuda a justificar o oásis A Universal, pela qual passam alegados 20% dos CDs oficiais em circulação no Brasil. Em termos de faturamento, a rede afirma concentrar 25% do mercado.

Embora lamente o gargalo na ponta dos lojistas, João Marcello Bôscoli, diretor da gravadora independente Trama, comemora a expansão d'A Universal noutros aspectos: "O poder está mudando de mãos, há uma descentralização. A grande distribuidora do Brasil hoje é independente, não pertence a nenhuma grande gravadora". Para Bôscoli, trata-se também de um exemplo de que a pirataria não é indestrutível: "Na composição do caos que herdamos das majors, é um componente a mais. A pirataria não é um demônio sem saída, as coisas funcionam quando tomamos as rédeas".

Seu Martins consegue a façanha de extrair elogios em companhias tão divergentes quanto a Trama e as multinacionais. Quando da inauguração do novo prédio, a revista de mercado Sucesso CD dedicou-lhe edição especial, coalhando suas 48 páginas com elogios derramados por dez entre dez grandes executivos. Por duas festas de inauguração para cerca de 1.200 pessoas, passaram políticos, presidentes de todas as gravadoras e um sem-número de artistas (classe em que seu Martins também coleciona fãs).

Estaria a já acuada indústria se tornando refém de um único distribuidor para levar seus produtos a territórios que os piratas já dominam com exuberância? "Não acho que estejamos reféns", responde o diretor de marketing da EMI, Edison Coelho. "Como há poucos pontos de venda no país, seu Martins conseguiu arregimentar pequenos clientes que não têm crédito com as majors. Num primeiro momento esse crescimento até pode contrastar, mas também acredito que é preciso investir durante a crise. Estou com ele."

Presidente da gravadora líder no mercado (e homônima da Universal atacadista), José Antonio Eboli relativiza a questão: "Historicamente sempre existiram dois ou três grandes atacadistas disputando o mercado. A concentração num só nunca é positiva para a indústria. Mas o lado positivo é que o sr. Martins sempre foi um grande aliado das gravadoras".

Martins brinca com o fato de ser visto como um "atravessador" do mercado, mas a própria indústria se encarrega de defendê-lo. "A Universal não inflaciona o mercado, pois, como seu volume de compras é grande, goza de um desconto maior e consegue repassar nossos produtos com só 5% a 8% a mais no preço", diz o diretor comercial da Warner, Edson Novais.

Elogios à parte, Martins demarca um tom crítico diante do que classifica como um "ambiente fortemente cartelizado" pelas gravadoras: "Eu que vim do nada nunca me contrapus a ninguém, porque sei que o cartel é poderoso. Mas não entro no cartel, nunca entraria".

A impressão de que os elogios da indústria são lapidados pela dependência é matizada por João Marcello Bôscoli, que aponta o respeito amealhado por Martins entre grandes e pequenos: "Numa indústria truculenta, que maltrata e humilha, ele é um homem emotivo, trata a todos com dignidade. Isso faz toda a diferença. Poderia achacar presidentes de gravadoras, mas essa não é sua postura. Torce pelo negócio, não contra os concorrentes. Fazia maquetes do prédio usando caixinhas de CD, construiu aquilo em volta de uma árvore para não derrubá-la. É um exemplo de mobilidade social, tem a trajetória de um Zé brasileiro".

Martins investe hoje na ampliação de serviços, apostando também na exportação de música brasileira, cujo festejado potencial raramente é aproveitado pela indústria. Mas mantém presentes origens e paixões ("tudo que sou eu devo à música"): distribui cargos centrais d'A Universal à mulher e às filhas, ergueu o "Botequim do Martins" para promover rodas particulares de samba e viola ("mas não de violeiro metido a americano") e promete abrir à visitação o Museu da Música Brasileira, tudo dentro de sua torre.

Dos primeiros tempos, guarda lembranças da convivência movida por certa antipatia com Lula e o PT. "Até alguns anos atrás eu era anti-PT. Acompanhei todas as greves de São Bernardo. Eu não gostava, ele fazia passeatas, eu tinha que fechar as portas da loja e não faturava".

Expandindo-se justamente dentro da era Lula, refaz a equação ("hoje acho ele moderado, sou seu admirador"), mas ainda lembra das origens comuns, que os faziam oscilar entre o embate e a convivência pacífica: "Freqüentávamos bailinhos juntos em São Bernardo, Lula comprava fita cassete do Luiz Gonzaga na minha loja. Passava na frente e perguntava: 'Vai na passeata hoje?'. Eu respondia: 'Mais tarde eu vou'".