quinta-feira, junho 30, 2005

o homem-escada

em 8 de junho de 2005, a carta capital (alô, anonymous!) 345 destacou o belo hermínio bello de carvalho - segundo um leitor da revista, o anti-eliana tranchesi (a dona da daslu). e o anti-roberto jefferson, acrescentaria eu? (aliás, quem derrubou bob jeff do armário? quem estava em cima do armário, quem estava dentro? quem fez aquele rombo na testa de bob jeff???)

ih, agora vou viajar pra brasília... até a volta!

O HOMEM-ESCADA

Hermínio Bello de Carvalho completa 70 anos de participação semi-anônima na história da música brasileira

Por Pedro Alexandre Sanches

É possível que você veja na prateleira a luxuosa caixa de CDs Timoneiro (R$ 95), imaginada pela gravadora independente Biscoito Fino para celebrar os 70 anos de Hermínio Bello de Carvalho, e se flagre perguntando internamente: "Mas quem é esse tal Hermínio Bello de Carvalho?" O poeta, compositor, produtor musical, pesquisador, jornalista, fã de música, músicos e intérpretes e descobridor de talentos há de ser, em pessoa, solidário com essa pergunta.

Pois partem do próprio artista dúvidas semelhantes: "Como me traz alegria, essa caixa também me traz a certeza de que sou uma imagem muito difusa diante do público. Quem é esse cara? Ele também é letrista, poeta? É o cara que há 30 anos fazia o Projeto Pixinguinha, numa outra hora está celebrando a ausência de Pixinguinha e Jacob do Bandolim, depois produzindo Elizeth Cardoso, idealizando a Escola Portátil de Música?... Isso tudo me faz de certa forma perder uma identidade pública, não ter uma imagem definida".

Esboços de respostas já se encontram dentro da própria dúvida, e esse é o novelo que ele vai aos poucos desfiando ao ser desafiado com a pergunta sobre quais teriam sido, ao longo de quase cinco décadas de atuação, seus momentos mais gloriosos.

"São muitos, muitos momentos. Posso mencionar a hora em que concorri como parceiro de Pixinguinha no Festival Internacional da Canção (de 1967), com Fala Baixinho. Em vez de descer de braço dado com ele a rampa do Maracanã, parecia que eu estava subindo ao céu, ao lado de um deus. Aí eu tive a noção exata de quanto eu era pequenininho perto daquele homem, e tenho essa impressão cada vez mais funda. Tenho os pés permanentemente no chão", derruba a primeira peça do dominó.

"Eu ter conhecido Cartola e entrar de braço dado com dona Zica na igreja, sendo padrinho, foi um momento único na minha vida", continua, desencadeando numa cena de bastidor uma seqüência de peças que toca a história de artistas que ajudou a descobrir e/ou redescobrir, como Aracy de Almeida, Pixinguinha, Araci Cortes, Elizeth, Elton Medeiros, Marlene, Nelson Sargento, Simone e dezenas e dezenas de outros.

Com Carlos Cachaça, mestre Cartola seria, por sinal, seu parceiro na hoje clássica Alvorada (celebrizada por Clara Nunes em 1972), dos versos "Alvorada lá no morro, que beleza/ Ninguém chora, não há tristeza/ Não existe dissabor", reutilizados em alto-contraste numa das cenas mais violentas do filme Cidade de Deus (2002). "A miséria não é bonita, é deplorável, mas há esses momentos em que aquela beleza estranha predomina no coração do poeta. Naquele tempo, vista lá de cima, do cume, a Mangueira parecia mesmo um céu no chão", reavalia, evocando também os versos de Sei Lá, Mangueira (1968), dele com Paulinho da Viola.

Paulinho é outro que surgiu primeiro num projeto seu, o histórico Rosa de Ouro (1965). Não bastasse isso, o espetáculo coletivo trazia para primeiro plano um mito máximo na história de Hermínio: Clementina de Jesus. Descoberta por ele já sexagenária e plenamente anônima, a empregada doméstica e matriarca negra viraria, após sua intervenção como incentivador e produtor, uma das mais altas expressões de canto feminino popular brasileiro.

Pois veja só como ele se refere àquela conjunção ímpar: "Detesto ser visto como descobridor de Clementina. Não. Lancei um olhar mais atento para ela, lamentando que ela só fosse revelada aos 62 anos. E as pessoas que a ouviram antes, o que fizeram com aquele material maravilhoso? Eu me considero uma escada. Apenas coloquei uns degraus para ela subir. Esse é o meu papel".

Cabe aqui outra dúvida possível: por trás de tamanha rigidez de auto-avaliação não haveria um componente de falsa modéstia? Pois seu nome é, sim, uma marca particular, impressa sobretudo em espetáculos e discos idealizados nos anos 60 e 70, que vinham com a assinatura "um show de Hermínio Bello de Carvalho".

"Meu nome passou a ser uma grife, porque passei a produzir discos de Elizeth, a fazer coisas que ninguém estava fazendo. Reunir Pixinguinha, Clementina e João da Baiana no disco Gente da Antiga (1970) era uma coisa inusitada. Revelar uma mulher chamada Clementina de Jesus e aquilo não ser uma enganação evidentemente fazia meu nome passar a ser uma grife, sim, para determinadas coisas. Tenho muito orgulho disso até hoje", afirma, despindo por instantes a capa protetora da modéstia.

A imodéstia e o sentimento de ter uma presença "difusa" na cultura nacional reencontram-se nessa próxima pedra do dominó: "As pessoas não sabem nem que tenho 14 ou 15 livros publicados, porque não faço parte dessa multidão que corre atrás da mídia. Não faz meu estilo. Só vou à mídia para brigar. Agora estou brigando com a TVE, por meu acervo que está lá e não pertence a eles, mas à cultura brasileira. Não me interessa se sou eu que estou ali entrevistando Aracy, Elizeth, João Bosco e Raphael Rabello. Tirem minha figura, mas preservem o trabalho que fiz. Nessa hora de brigar, vou à internet, escrevo cartas desaforadas, é meu lado explosivo que eclode e não consigo conter. Tenho um diabo dentro de mim, e ele salta de vez em quando".

Mas, por trás das túnicas de humildade, haveria um homem que cultua seus próprios feitos e os acalenta intimamente? "Quando vou caminhar, na trilha que ladeia a encosta do Morro da Urca, há um lugarzinho lá no fundo, quando chego ao final, em que converso com meus deuses e agradeço. É nesses momentos que essas lembranças afloram. O que tenho a fazer agora é olhar o que eles me deram e tentar repassar para a garotada. Fui bafejado por essa corrente de generosidade que não posso deixar que se interrompa, mesmo sabendo que sou um elo muito pequeno. Não admito que a honestidade e a integridade deles sejam pisoteadas por ninguém, os grandes poderes que se danem."

Entre os mais jovens que hoje acolhem quem no passado resgatou do esquecimento pixinguinhas, clementinas e cartolas está Zélia Duncan, produtora de um disco inédito incluído na caixa Timoneiro, com quatro reedições dos anos 70, 80 e 90 – dois tributos coletivos, um trabalho em parceria com o cantor paraense Vital Lima e um disco em que Alaíde Costa interpreta suas canções. Sob a batuta de Zélia ("tomara que ela nunca me deixe, nunca me abandone"), o novo tributo reúne uma turma heterogênea que vai de Chico Buarque e Zeca Pagodinho (em dueto) a Mart'nália e Lenine, de Paulinho da Viola e Dona Ivone Lara aos meninos dos grupos Afro Samba e Siri na Lata.

Hermínio une essas duas pontas da curva do tempo ao comentar sua personalidade, que admite ser mais memorialista que novidadeira: "Sei que o tempo dos jovens não é igual ao meu. Tive um infarto há três anos, podia ter morrido, quanta coisa teria deixado de fazer? O tempo que tenho pela frente é menor, então racionalizo cada segundo do meu tempo, sem nenhuma morbidez. Me proíbo olhar a morte com morbidez. Tenho que olhar as pessoas maravilhosas que tenho ao meu lado, trabalhar com os tempos que nos são servidos. É como se entrássemos no empório do tempo, 'sirva-se'".

Olhos postos permanentemente no futuro, ele conta que freqüenta psicanálise há dez anos, desde que completou 60: "Olhei para dentro de mim e não gostei do que estava vendo. Pensei que estava na hora de me harmonizar melhor com o mundo. Não quero deixar de brigar, mas quero brigar com mais racionalidade e objetividade, até porque não tenho muito mais tempo pela frente para brigar".

Convocado a mencionar pontos de baixa em sua história, ele o faz, mas contagiando-os com outras qualidades: "Não pavimentei minha vida para aos 70 anos ser um homem próspero. Mas fico muito orgulhoso de pertencer a uma casta de pessoas que não enriqueceram ilicitamente. Me orgulho de ter seguido o percurso de meu pai, que era calista, de uma família muito humilde, um cara que sempre trabalhou". Pronto, você agora sabe um pouco mais sobre Hermínio Bello de Carvalho.