sexta-feira, junho 17, 2005

pato fu & o sítio do picapau verde-amarelo

no canto do cisco, no canto do olho, a menina canta. a menina, fernanda takai, pegou sua lancheira e, pela estrada afora, foi cantar uma música do folclore nordestino dentro de um filme que mostrava a vida de três mulheres pobres, paraibanas, quase indigentes, irmãs e quase completamente cegas de todos os olhos.

a menina nem se dava conta, mas havia um negócio chamado espírito do tempo operando em seu caminho, e ela cantava para assoprar o cisco, para desembaçar a visão, para começar a enxergar - era o mesmo que estava acontecendo com as três estrelas do filme, chamado "a pessoa é para o que nasce". lá no telão, cegas molambentas, as três mulheres de certa idade aprendiam a enxergar pela câmera obscura
do filme-documentário de roberto berliner, que as colocava no nicho de estrelas do nosso cinema e, assim, conduzia-as a um novo arco de visão.

a luneta nova era visão de assum preto, cego dos óios, um pássaro nordestino que, aninhado no coração-gaiola do planalto central do país, poder-se-ia apelidar luiz inácio, ou lula, ou assum preto da silva (no filme das três assuns, até o presidente do brasil, lula, aparecia como ator coadjuvante em participação especial).

fernanda, enquanto reaprendia a enxergar em caminhos cruzados com as cegas paraibanas que tudo viam & farejavam & sentiam, cantava feito veludo, cantava feito favo de mel, cantava feito nara leão. a voz de cantiga de roda de nara morrera em prol dum brasil doente, feito de sangue e ditadura; fernanda concentrava no estampido de pelica de sua pequena voz "toda cura para todo mal" - esse era o título do cd-irmão do filme das tias cegas, assinado pela banda pato fu, banda de fernanda, banda de seu marido john ulhoa, banda de seus amigos mineiros e/ou não mineiros, banda da pequena nina (filha de fernanda e de john, filha do tecnopop do kraftwerk, filha do brasil em tempos de lula), banda da cadela de estimação que, perdida de sua melhor companhia também canina, deixara ficar grisalho o redor do olho, de um olho só, cachorra rainha em terra de humanas cegas.

num festim melodioso de guitarras e órgãos iê-iê-iê, linhas rítmicas de funk e guitarras polpudas de rock'n'roll, fernanda (interpretando john) celebrava aquela vida canina. "acho que sou um cachorro, sim", retrucava fernanda-john na faixa-guloseima "amendoim", contorcendo o sentimento antigo de "eu não sou cachorro, não", revogando/revigorando waldik soriano, aspergindo açúcares de beija-flor para tentar demolir as arcaicas muralhas que outrora separavam o velho do novo, o chique do brega, o intelectual do iletrado, o otário do malandro, o erudito do popular.

e se você fechava o olho, a menina ainda cantava, e dançava. e assim também o menino, porque roberto carlos já estava assimilado, assimilado nos cravos sessentistas e no balé vocal elaboradíssimo de "anormal" ("mas que anormal/ eu devo ser/ pra ver você/ em todo lugar"), assimilado no doce-triste de melôs carlistas como "agridoce" ("por que você às vezes/ se faz de ruim,/ tenta me convencer/ que não mereço viver,/ que não presto enfim?").

meigo e tímido, o menino-homem ligava o processor de voz, virava desenho animado e fazia chover sobre uma casa no campo, numa cybercanção batizada "simplicidade": "quanto menor a casinha, ai/ mais sincero o bom-dia/ mais mole a cama em que durmo/ mais duro o chão que eu piso/ tem água limpa na pia, ai/ tem dente a mais no sorriso".

"busquei felicidade/ encontrei foi maria/ ela, pinga e farinha/ e eu sentindo alegria", continuava o moço-menino. seu brasil era de cachaça, farinha, isopor, televisão de cachorro, vida operária, simplicidade, alegria e mil marias - da silva. a imensa profundidade (da letra) podia ter a espessura de uma folha de papel (de gibi). o mundo girava nas voltas do sítio do picapau amarelo, ploquet, pluft, nhoque, patinhas, patacôncio, pateta, "pátofo, patôfo, patofú".

[adeus, maria fulô: nara leão morrera sem ver a banda passar, elis regina partira querendo uma casa no campo, ambas entregues quais trágicas noivas virgens ao sacrifício, em prol da manutenção de um porvir, de um status quo que nunca vinha de fato a existir. morrendo, se deslegitimavam temporariamente e legitimavam transitoriamente a ditadura que suas vozes não conseguiam exterminar.]

mas fernanda e john, não, esses já tinham uma casa no campo, já eram donos de seus narizinhos e já estavam, junto com o resto de seu país, reaprendendo a enxergar, sob as lágrimas grossas do sofrimento. estavam tranqüilos, porém (era só ouvir a maciez agridoce das mais cândidas baladas). sabiam, intuitivamente, que agora era hora de toda cura para todo mal, não mais do todo mal contra qualquer cura por vir nos sonhos de seus antepassados musicais.

"quem tem a paz como meta, quem quer um pouco de paz, que tire o reboque que espeta o carro de quem vem atrás", cantava john na pluripartidária "uh uh uh, la la la, ié ié!", já sem o processador de voz de cartoon. os versos soariam até truncados numa primeira desatenção, mas o que diziam em chuviscos de intuição era simples, simples, simplinho: desatrela, desatarraxa, solta os pinos e os parafusos, abre as portas e as janelas, põe a tocar todos os discos, quebra os vínculos, solda tudo com chiclete. era um convite à independência, à maravilha de não ter de rebocar ninguém, mais que nada à delícia de não se deixar rebocar por nada nem ninguém.

[lá fora o sistema político ruía, e o sonho-risco-utopia da hora era esse: eu sou o político de mim mesmo. o governo somos nós. eu sou meu líder. eu me comando, eu laço minhas rédeas. quando o segundo sol chegava, despertávamos todos, que havia um líder escondido dentro de cada um de nós.]

agora era hora de "vida diet" (humores pop meio marisa monte, meio lulu santos): "a gente se acostuma com tudo/ a tudo a gente se habitua/ e até a não ter um lugar/ dormir na rua/ a tudo a gente se habitua". a fadinha fernanda aspergia, esgrimindo tempos, tempos, tempos, manos véios de contenção, de contrição, de concentração: "me habituei ao pão light/ à vida sem gás/ o meu café tomo sem açúcar/ e até ficar sem comer/ sem te ver/ a gente custa, mas se habitua". mídia, disco, jornal, pra quê?, quem precisava? "se acostumou sem querer/ ao salto alto/ salário baixo, à vida dura/ e até ficar sem tevê/ é bom pra você/ televisão ninguém mais atura".

tudo se misturava em rotomusic de liquidificapum, "acho que eu sou um cachorro, sim,/ acho que sou um cachorrim", não quero mais mil casas no campo, sou mamute mutante, rita lee somos nós, arnaldo baptista piramos nós, "amor aos pedaços", "sete, catorze, vinte e um", como dois e dois são quatro.

a menina dançava. "uh uh uh, la la la, ié ié!", jackson five, michael jackson absolvido (mas não propriamente inocente - atenção, cuidado, atenção, menina, ao dobrar uma esquina, apenas viro, me viro, mas eu mesma viro os olhinhos - sem trailer, sem gancho, sem reboque, sem abuso, sem violência), isaac hayes em "shaft", roberto & erasmo & wanderléa & paul & john & yoko na festa de arromba... e, em meio ao baile de yeah-ié-yeah, aflorava mais um sintoma de recuperação de visão, mais uma constatação intuitiva de que era hora de o brasil parar de viver de mentiras: "tudo que se vê não é suficiente". meias imagens já não nos convenciam mais. a sociedade adquiria consciência, essa modalidade sofisticada de visão.

[a crise era crise, sim, mas era também um enlevo, um desvelamento. a membrana do glaucoma esfarelava. lágrimas negras caíam, saíam, doíam, cessavam. cicatrizava o furo nos olhos do assum, que, cego de dor, cantava e enxergava melhor do que nunca. "terra à vista", gritavam anônimos bilhões de assassinados das cores negra, vermelha, amarela, branca & furta-cor. não subestimem nossa sensibilidade, não subestimem nossa sensibilidade, era o que o coro dos coerentes vinha a cantar. sara, cura, nossa terra. estávamos lançados no coração do nosso tempo.]

se tudo lá fora estava incerto, quase deserto embora já não houvesse censura, era numa fagulha de gênio que a menina, o menino & seus correligionários diriam tudo que havia a dizer. a canção-faísca se chamaria "!", e não conteria versos nem palavras, nem ao mesmo sílabas ou letras. na canção de título impronunciável, barulhinhos estranhos irreconhecíveis entre o humano e o inumano fariam a vez do susto na montanha-russa, do ponto de exclamação, do !, do !, do !, do !!!!. como escrevera o sisudo josé miguel wisnik duas décadas e meia antes (quando amar roberto carlos ainda era coisa de mulher), a canção popular era um meio termo entre o silêncio e as palavras. no claro-escuro, o pato fu descobria que o meio termo, o justo meio, o minimistério podia ter a forma de uma barra e um ponto, de um !.

e então estava tudo dito: !

não, quase tudo: cioso, papai john passaria ainda um pequeno (e bem-humorado) pito nas "novas gerações", aquelas que não saem aqui dos blogs nem para fazer pipi: "quem mexe com a internet fica bom em quase tudo/ quem tem computador não precisa de estudo/ estudar pra quê?", fina ironia, ei-la, "estudar pra quê?".

e antes, por fim, que os jackson five todos pudessem ficar pálidos como branca de neve, brancos feito fernanda takai, haveria hora extra para um "boa-noite, brasil", na tradicional faixa de encerramento do disco. ensaiando a reconciliação histórica entre o colonizador e o colono (ou entre direita e esquerda, atrasado e moderno, psdb e pt, branco e preto, hetero e gay, homem e mulher, velho e criança), traziam, para dividir os óculos vocais com fernanda, a mansa manuela azevedo, mãe da portuguesinha nara e cantora da banda portuguesa clã, do disco "rosa carne" & outras rubras milongas. juntas, fernanda e manuela cantavam mais uma historieta inocente imaginada por john, de um episodiozinho em que um mentiroso contumaz se enchia de pânico & prazer diante da impossibilidade de continuar mentindo-enganando. dizia assim a canção luso-brasileira:

"essa noite o locutor/ errou mais uma vez/ e um satélite no céu/ contou pra todo mundo o que ele fez. eu não gosto muito dele/ perfeito até demais/ nunca diz um palavrão e nem pediu perdão/ pra recomeçar/ de onde parou/ sem mesmo piscar. no intervalo comerical/ reuniu seu pessoal/ disse que assim não dava pra continuar. demitiu seu assistente/ que foi quem o distraiu/ e mandou toda sua gente descobrir quem foi que riu/ e recomeçou/ de onde parou/ sem mesmo piscar. quando o intervalo acabou/ eu não sei se o senhor notou/ o seu rosto estava cheio de uma fúria/ os seus olhos, cheios de uma dor/ e ao se despedir do telespectador disse: boa-noite, brasil/ vai pra puta que o pariu!".

de volta ao presente. impressos no encarte, os termos "brasil" e "puta que o pariu" não são audíveis na gravação. mas a dor & a fúria de quem muito se força a mentir está em carne exposta a todo brasil (a todo portugal, a todo mundo). somadas, "!" e "boa-noite, brasil" fazem, por espetacular espírito do tempo, um retrato completo do brasil de junho de 2005, o mesmo que assiste ao nascimento de "toda cura para todo mal". de olhos bem abertos, a menina ainda canta até o sol raiar, até dentro nascer o que há. ave, pato fu. bom-dia, brasil.

[p.s., como nos quebra-cabeças e palavras cruzadas do rock bubble gum "o que é isso?", é hora de perguntar: alguém quer brincar de achar samples espalhados aí por cima? isso é crítica musical, garotada!]