segunda-feira, agosto 08, 2005

ele é o samba...

...a voz do morro é ele mesmo, sim, senhor(a). se você parar um minutinho para escutar e refletir, pode até levar o susto de descobrir que o pensamento que vem dos morros, dos reis do terreiro, é muito mais próximo do seu do que supõe nossa vã filosofia diária de botequim e de almanaque. senhoras e senhores, com vocês mv bill, intelectual que é povo que é intelectual que é povo que é povo que é povo. mais adiante pretendo copiar essa entrevista aqui na íntegra (intuo que ela só fará se valorizar por si própria, nos dias que virão), mas por ora vai abaixo como saiu na carta capital 352, de 27 de julho de 2005. porque se o caso é mostrar ao mundo que temos valor, nossa arma mais poderosa é mesmo a palavra.

MV BILL, A VOZ DO POVO
Um excluído que virou músico e escritor recusa o racismo cordial e ataca a impunidade da classe dominante.

Por Pedro Alexandre Sanches

O cidadão marginalizado que morou e mora em favela, que viveu e vive na vizinhança da violência e do crime, Alexandre Pereira Barbosa, 30 anos, personifica aquilo que o clichê chamaria de "a voz do povo", aquela mesma que não costuma ser ouvida nos andares de cima do Brasil, menos ainda em períodos de crise política como o de agora.

Mas Alex (como é tratado em sua comunidade, a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro) simboliza um novo personagem-modelo dentro da quase sempre calada "voz do povo", que nestes anos Lula ganha visibilidade inédita, nunca dantes navegada.

Em movimento de fuga da exclusão que lhe cabia neste latifúndio, Alex virou músico de rap, artista de hip-hop. Tomou o codinome artístico de MV Bill e passou a transformar suas indignações íntimas em música de protesto vociferada em canto-fala urgente, contundente, revoltada. E já em 1999 chocava a sociedade alta, ao se apresentar armado no bunker mauricinho do Free Jazz Festival.

Mas, dali por diante, Alex/Bill vem reformulando constantemente a sina do negro pobre que só consegue ser visível à sociedade quando aparece com expressão carregada no rosto e uma arma na mão. A travessia culminou, neste ano, com a edição do livro Cabeça de Porco (Objetiva, R$ 34), escrito a seis mãos por ele, seu empresário, Celso Athayde, e o antropólogo, cientista político e ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares.

Construído como um tratado sobre violência, abismo entre classes sociais e estratégias para superá-los, o livro já vendeu 13 mil cópias e consumou uma revolução no modo como Bill vê o mundo e é visto por ele. Conforme seu discurso ganha autonomia, Bill/Alex passa a ser ouvido por classes sociais divergentes Brasil afora e até em Londres, onde já palestrou.

É preciso despir preconceitos para penetrar no núcleo do pensamento hoje propagado por MV Bill. Despidos, aparece um retrato contundente da voz popular brasileira de 2005, como demonstra a entrevista concedida num hotel em São Paulo, um dia após a "queda" da Daslu.

CartaCapital: No início da carreira musical você resistia à mídia, muitas vezes nem aceitava dar entrevistas fora da Cidade de Deus. Isso foi superado?

MV Bill: Não, não foi superado, não. Só vou para outros lugares quando não tem jeito mesmo. Levar as pessoas até nossas comunidades, de onde só se espera que saia a dor, é uma forma de mostrar que é possível extrair amor dali, que não é preciso corpo no chão e tragédia para que as pessoas cheguem até aqueles lugares. Minha contribuição é desmistificar, apresentar esses dois mundos diferentes um ao outro. Estou surpreso, não achava que as pessoas fossem abraçar tanto assim o livro. Hoje estou vivendo o contraponto do que já fui no passado, quando vivia sob a sombra da invisibilidade, sem ter voz. Tem sido muito bom poder dividir não só sonhos, mas pensamentos e contradições com os outros. Acaba sendo um atrativo um livro dessa natureza, é saber uma opinião diferente sobre um assunto velho. Geralmente é necessária uma visão de fora, de um sociólogo, um antropólogo e outros "ólogos", para analisar nossa vida. A gente se auto-analisar, se auto-avaliar e se auto-retratar é importante, cria referência.

CC: Por que sua participação na Flip (Feira Literária de Parati)provocou tanta repercussão?

MVB: Não sei. Quando, há muito tempo, falei para minha mãe que ia lançar um CD, ela me chamou de maluco. Quando comentei que queria lançar um livro, ela já veio com a carteira do hospício para me entregar, não tinha dúvida que eu estava na maluquice. Nem ela acreditava em mim. A Flip serviu para mostrar que é muito bom quando existe um sistema democrático, quando todos podem emitir suas opiniões e têm que ficar quietos para ouvir as opiniões dos outros. Para mim, é patético discutir democracia se não se falar na questão racial. Se não se fala, eu não estou sendo contemplado. Muitos tentam amenizar ao falar disso, mas o para mim problema social e racial é grave. Me causa incômodo ver as políticas de desigualdade e a violência racializada não sendo discutidas, mesmo a gente sendo a segunda maior nação negra do mundo, atrás da Nigéria.

CC: Qual é sua opinião sobre "racismo cordial"?

MVB: A gente vive sob o mito da democracia racial, que não existe. Esse mito cai por terra quando você começa a exigir poder. Quando você exige direito e respeito, as pessoas até apóiam, mas quando grupos se organizam para tentar eleger um prefeito, deputado ou governador, aí a brincadeira deixa de ser engraçada e passa a ser um problema. Existem vários grupos de pretos se organizando no Brasil inteiro para tentar reverter esse quadro de forma pacifista. Mas se outros demonstram, dentro de seu grau de ignorância, que não estão nem um pouco preocupados com a questão, é inevitável a formação de grupos mais armados e mais violentos. Classifico isso como legítima defesa. Eu gostaria muito que não fosse assim, mas a gente só passa a ser visível quando começa a ameaçar. Estive em Salvador, onde neste ano já morreram 250 jovens, todos pretos e com idades entre 15 e 21 anos, o que é um verdadeiro genocídio. São mortes com requintes de crueldade, por grupos de extermínio. As mães de muitos deles vinham me mostrar carteiras de trabalho assinadas, carteiras de estudante, "nada consta" da polícia. Mas existe uma desculpa viciada da polícia, de que o jovem morreu por envolvimento com crime. Isso vira verdade absoluta, e a sociedade nem se mexe, ninguém está nem preocupado com aquelas mortes. Os movimentos negros de lá desencadearam a campanha Reaja, senão será morto, com o slogan "os brancos pedem paz para continuarem ricos e os pretos pedem paz para continuarem vivos".

CC: O que você achou da operação da Polícia Federal na Daslu?

MVB: Há um fator novo no governo Lula. Não sei até onde vai a influência dele nisso, mas não me lembro, desde que me conheço por gente, na história do país, de uma quantidade tão grande de desembargadores sendo exonerados, de pessoas importantes entre aspas, intocáveis, sendo tocadas, investigadas e indo para a cadeia. O próprio governo está sendo investigado, a PF está pegando tubarões em vez de só pegar camelôs. Esse é um lado do governo que muita gente está enxergando, mas que poucos têm coragem de exaltar.

Na pesquisa para o livro, estive em contato com dois Brasis diferentes que não se conhecem ou se tratam como dois países em conflito. Ver que existem leis diferentes para pessoas diferentes me deixa puto. Outros estão putos e acham exagero a PF investigar a Daslu, mas vêem com normalidade jovens mortos pela polícia, o modo como a renda aqui é dividida... Ver que essas pessoas só conseguem se reunir e torcer pelo Brasil na Copa do Mundo mostra que a discussão sobre democracia está longe de chegar a um denominador comum. Nosso trabalho nas bases é importante, porque os que são formadores de opinião e detêm a riqueza do país não estão nem um pouco preocupados com nosso discurso ou com o que a gente sofre.

CC: A indignação contra a Daslu significa inveja e ressentimento por parte das classes médias e pobres, como argumentam algumas pessoas?

MVB: Isso é coisa do ser humano, que precisa de alguém para invejá-lo, para mostrar que ele próprio possui muito. Vim de Londres agora, lá vi a diversidade de pessoas. Vi preto lavando chão e dirigindo ônibus, mas também vi preto executivo. Vi branco executivo, dirigindo ônibus e lavando chão. Vi várias Gisele Bünchen varrendo o chão, trabalhando como garçonetes ou balconistas de supermercado. Os ingleses, nas palestras, não acreditavam quando eu comentava que o próprio brasileiro tem vergonha das suas raízes, dos sambas antigos, ou quando eu falava dos contrastes sociais, do olhar do rico para o pobre. Muitos só conhecem o Brasil através da bundalização, do Carnaval e do futebol, nem sabiam que há pretos no Brasil. Não sei qual é a imagem que a embaixada brasileira passa na Inglaterra, que tipo de povo eles mostram como nosso.

Se a dona da loja está sendo acusada de algum ato de banditismo ou fora da lei, ela que se explique, como a gente tem que fazer nas favelas. A gente não tem nem condição de se explicar, fica por lá mesmo na favela cheio de sangue no chão. Nos causa descrença ver, de dentro da favela, a lama na política, o descaso e a frieza de alguns milionários que preferem blindar casa, carro e roupa a promover uma blindagem social. Mas estou aqui do meu lado fazendo a minha parte, tentando defender os meus pares. Quando a lama aparece do lado dos ricos, no máximo eles são submetidos ao constrangimento de ter que depor, ir à delegacia. Acho muito bom mostrar outros bandidos, que não são novos, só não eram investigados. Quando vejo o mesmo aparelho e aparato destinado aos pobres sendo usado contra os ricos, começo a visualizar uma possibilidade diferente.

CC: Como você vê a crise política atual no governo Lula?

MVB: Não consigo comparar um governo com outro na questão da roubalheira. Simplesmente num governo pode se estar descobrindo mais e no outro pode não ter sido descoberto nada. Pode ter acontecido a mesma coisa, ou até mais. Acho muito que Lula é um cara sincero, respeitador, que tem uma boa intenção. Mas com essa dinheirama toda espalhada, inclusive de partidos de oposição, sinto a política partidária cada vez mais distante de mim. Ela tem me mostrado, até na convivência com Luiz Eduardo Soares, que não há lugar para pessoas honestas, sérias, que querem mudar de verdade.

CC: Ao trocar aquele perfil ameaçador do começo da carreira para outro que busca o diálogo, você demonstra que mudou?

MVB: Adquiri mais conhecimento. Posso não ter formação acadêmica, mas estudo na escola que não tem férias nem greve de professor, que é a escola da vida. Deixei de falar só para os que são iguais a mim, passei a dialogar com os intelectuais, com os que decidem as coisas, estive com Lula. Antes, queriam me entrevistar com uma coisa meio sensacional, de tentar me colocar na posição de exótico, diferente, revoltado, até de bandido. Poder hoje mobilizar as pessoas sem ter que usar desses artifícios, sem precisar ser ameaçador, é muito bom. Não nego minha mudança, e também consigo enxergar o mesmo nas pessoas ao falar comigo. Acho que bateu uma mudança do país também, muita coisa está se modificando.

CC: Um estereótipo que você tem afrontado é o de que, sempre, pobre é ignorante e rico é culto. Você encontra muita ignorância nos novos meios em que tem entrado?

MVB: É fogo ouvir de apresentadora de televisão que pessoas das favelas não saem do tráfico porque não querem, que podem ser garis, empregadas domésticas, pedreiros. São as construções em que eles querem que a gente se perpetue. Dar oportunidade aos moradores de favela, na cabeça de certas pessoas, é tirar oportunidade dos ricos. O lado bom da sociedade não quer que o lado podre pense. Quer que continue ignorante, porque assim continua sendo massa de manobra. O que aprendi, nisso tudo, é a ouvir e respeitar a opinião dos outros, por mais absurda que seja. Vou ouvindo, mas a provocação em mim é uma força involuntária, a militância está no sangue. Explico que a gente das favelas é proprietária das profissões mais humildes. Que o espelho não é somente o tráfico e o bandido. E que dentro desse leque de opções, de profissões humildes e dignas, surge o tráfico, como a possibilidade de ganhar mais, de ter a sonhada auto-estima, a visibilidade, ser importante de alguma forma. Não adianta pregar "seja pedreiro", se a tevê fica mostrando as coisas boas da vida, de que a maioria é alijada. Alguns respondem que "é só ter força de vontade", ou "os favelados não podem ter inveja da gente que trabalhou um pouco mais do que eles", ouvir isso é fogo (ri).

Às vezes as pessoas do rap falam "Bill, tu fala legal, tu fala diferente". Eu me sinto mal quando me põem na posição de privilegiado só por eu ser um preto que sabe falar o português correto. Mostra que a gente ainda vive num abismo social. O que conquistei foi só pelo conhecimento, até hoje estou para voltar a estudar e não consegui. Algumas profissões parecem querer deixar claro para nós que não nos pertencem. Mas é mais uma barreira que nós temos que quebrar. A organização e a articulação têm um papel fundamental nesse novo Brasil que a gente pensa, nessa nova ordem, em que ninguém mais quer ficar sendo rato de laboratório.

CC: Já é quase lenda o documentário que vocês produziram em várias favelas do Brasil. Afinal. Ele vai existir?

MVB: Eu e Celso Athayde estamos preparando mais dois livros. Um é autobiográfico, outro é O Falcão, o mesmo título do documentário, que incluirá entrevistas com jovens integrantes do crime. Nesse meio tempo, ou no final de tudo, a gente vai apresentar a pesquisa audiovisual, que tem que ser editado sem pressa, com muita responsabilidade. Dos 16 jovens entrevistados, 15 já estão falecidos. Pode sair daqui a um ano ou três, mas posso garantir que O Falcão vai voar. Vai ajudar a elucidar, a desmistificar a idéia de que o jovem favelado, principalmente o do tráfico, não tem visão política do país. Eles têm, sim, mas morrem antes de conseguir mostrar.

CC: O que você pensa sobre o jogador de futebol Ronaldo ter dito que é branco?

MVB: Acho que ele não mostrou desprezo nem arrogância ao não se denominar preto. Demonstrou um certo desconhecimento e inocência. Os pretos são sempre ligados a coisas negativas, não têm motivo para se proclamar, dizer "sou preto com orgulho". Ronaldo vive no meio de brancos, que não devem discriminá-lo por sua conta bancária. Quando dá uma declaração dessa ou de que o cabelo dele é ruim e por isso precisa ser raspado, ele, que é um cara venerado, causa uma grande confusão na cabeça de quem o tem como espelho. Minha sugestão para Ronaldo é: vá se informar, informe-se mais sobre nós mesmos. A gente não pode achar que favelas, cadeias e população de rua são os lugares destinados a nós. Da favela não podem sair somente jogadores de futebol e músicos, como eu, nem criminosos. Têm que sair também ministros, doutores, donos de empresa, formadores de opinião.