segunda-feira, agosto 29, 2005

meu casaco de general 3

mais duas torres-carne (fica aqui o convite à visita-irmã ao tópico-andar debaixo, também inédito e recém-publicado), para falar dos dias de hoje. mais uma torre-osso, ela própria trigêmea dos tópicos-térreo lá debaixo, "meu casaco de general", partes 1 e 2.

terminada a leitura do livro "meu casaco de general", de luiz eduardo soares, sobram, dos escombros-sangue, estilhaços-vísceras de dúvidas e respostas, de respostas muito mais que de dúvidas. adubo ao solo-céu, deitam-se abaixo trechos-emblemas, que arrepiam pelo que queriam dizer em 2000, pelo que se tornam trazidos para 2005, pelo jogo de encaixes que produzem quando brincam de embaralhar "polícia" e "política" (e arte, e música, e sexo, e vida...). são três trechos tristes-alegres, mais alegres do que tristes no solo-adubo por onde se deitam a(o)s lulas-po(l)vos destes porosos anos 2000.

só para seguir no hábito, é o terceiro trecho tenso-sonso, lá embaixo, aqui mesmo neste tópico-saliva, o que deixa pular, das frestas-feixes, idéias as mais estimulantes, admiráveis idéias novas-velhas.

(trechos especialmente reveladores-aterradores virão delimitados por [***asteriscos***] )
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primeiro trecho
l.e.s. está a discorrer sobre dinâmicas criminais que entrelaçam tráfico de armas e tráfico de drogas e vêm desembocar na sociedade que somos, mesmo que nos pareça a priori que "tráfico de armas" e "tráfico de drogas" sejam coisas distantes demais de nós, distantes demais de nossa(o)s ("pecados") capitais. l.e.s. lista-as aos borbotões, mas que se fique aqui apenas com os tópicos-teses 9 e 10, relatores das dinâmicas-tráficos que forjam nossa sociedade entrelaçada-estraçalhada:

"9. estimulam reações que tendem a estigmatizar a pobreza e os pobres, promovendo imagens negativas das comunidades, favelas e bairros populares, que passam a ser vistos como fontes do mal - como tem demonstrado a professora alba zaluar. essas imagens freqüentemente inspiram e reforçam políticas discriminatórias. os traficantes transformam a vida das classes populares num inferno. além disso, exportaram o inferno: no rio, a topografia e a distribuição espacial das favelas estenderam o perigo dos tiroteios aos prédios vizinhos aos morros. por outro lado, tornaram-se fontes de várias modalidades de prática criminosa que atingem as camadas médias e as elites. portanto, acaba se tornando natural a identificação das favelas com a violência. pode-se deduzir as implicações políticas dessa identificação. resultado: os moradores das favelas sofrem duplamente, primeiro como vítimas da tirania do tráfico, em seguida como vítimas de preconceitos e de medidas arbitrárias, elas mesmas criminosas e promotoras da barbárie, como a premiação faroeste, entre tantas outras formas de acobertamento e estímulo à brutalidade policial. supondo que o preço do controle da violência seja o extermínio dos criminosos, alguns governos decidiram assumir os custos e autorizar tacitamente o extermínio, que nunca atinge apenas os criminosos, é claro. transforma-se com freqüência num banho de sangue, flashes de um verdadeiro genocídio. tantas vidas se perderam, entre bandidos, residentes inocentes e policiais, para nada. [***os traficantes das favelas não passam de varejistas sem importância. quando morrem, são imediatamente substituídos e o ciclo se reinicia, cada vez com mais ódio e com contas ainda maiores para acertar, de parte a parte.***]

"10. promovem o entrelaçamento entre o chamado 'crime de colarinho branco', praticado por membros das camadas médias e das elites, e a criminalidade que prospera nas favelas e nos bairros populares, atuando no varejo dos tráficos de armas e drogas. [***apesar de as polícias continuarem a focalizar o varejo, que é mais visível e produz efeitos mais vistosos, não haveria tráfico sem lavagem de dinheiro, negociações internacionais, mediadores poliglotas, experts em contabilidade e administração financeira etc. sabe-se que esses personagens não moram em favelas.***] duvido que tenha havido, no brasil, oportunidade comparável para o estabelecimento dessa cumplicidade interclassista, que se apóia numa divisão do trabalho bastante conveniente para os criminosos que vivem longe da favela. a disposição bélica da tropa que atua no varejo dos morros se beneficia da competência financeira e administrativa dos cúmplices com escolaridade superior. por sua vez, esses evitam sujar as mãos com sangue e com a pequena propina cotidiana. delegam boa parte dos problemas operacionais e não se preocupam com os riscos inevitáveis da distribuição. fornecem os meios para uma perversa distribuição de renda, que se manifesta pelo viés perverso da democratização do medo."

[se lembra, maninha, daquele papo-boi-da-cara-preta do medo contra a esperança, da esperança contra o medo? pois hoje, maninha, só dá flor não-daninha neste solo-soluço que suplantou aquela dualidade troncha, neste solo-mãe-gentil em que os petistas-de-colarinho-branco estão socializando responsabilidades (e "culpas", infelizmente) com os varejistas-da-invisibilidade, coisa que seus antecessores mais maliciosos jamais fizeram. a "democratização do crime" há de ser, quiçá, mãe da democracia dos sem-medo, da democracia dos com-responsabilidade, da justa-eqüânime divisão do trabalho-responsa.]
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segundo trecho
aqui, l.e.s. defende a polêmica-explosiva proposta de oferecer, por um curto período de tempo e sob regras muito bem determinadas, "anistia" ampla, geral e irrestrita aos microcriminosos do cotidiano violento incrustado nas favelas brasileiras:

"anistia foi assunto digno quando éramos nós que estávamos presos - nós, da classe média -, durante a ditadura, por razões políticas. hoje, virou tabu. quem consideraria, a sério, uma proposta de anistia para todos os criminosos não condenados que se apresentassem durante determinado período de tempo, sob certas condições?

"no entanto, fui me convencendo aos poucos, a partir do início de 1999, ao ouvir as histórias dos meninos que ficavam no tráfico desejando sair. (...) esses jovens sonhavam com mudança de vida, com uma nova chance, mas achavam que não tinha mais jeito. que estavam perdidos. que não havia mais volta para eles. que estavam, como eles diziam, 'carimbados' pela polícia para morrer. ou que só lhes restava, fora do mundo do crime, a hipótese de uma cela infecta, em que seriam violentados e condenados a vegetar de forma subumana por muitos anos. de onde sairiam piores do que entraram, com menos alternativas para sobreviver decentemente e ainda mais marcados por estigmas. (...)

"não fazia sentido condenar tanta gente a permanecer, contra a vontade, fiel ao exército inimigo. por que engrossar as fileiras inimigas se poderíamos esvaziá-las? além disso, havia a questão ética. é verdade que já superamos, há muito tempo, a idealização dos bandidos. o lema célebre de hélio oiticica, 'seja marginal, seja herói', que fazia sentido quando não havia uma constituição democrática e todos os que se recusavam a aceitar as imposições da ditadura estávamos, de uma maneira ou de outra, à margem, éramos marginais, esse lema, hoje, quando as condições são inteiramente diferentes, soa absurdo. aprendemos que o crime tem de ser combatido, se queremos preservar a democracia que nos custou tanto conquistar. os criminosos são inimigos de todos, sobretudo dos pobres, entregues ao seu arbítrio violento. [***por outro lado, quem negaria que há uma parcela de responsabilidade que é nossa, que é de toda a sociedade brasileira, quando um menino de onze, doze anos se liga a traficantes?***] esse menino em breve estará comprometido com a organização criminosa. em alguns anos, estará praticando outros crimes, além do tráfico. aos dezoito ou dezenove anos, perceberá que já nãoretorno. seus horizontes estão bloqueados em todos os níveis, da psicologia à economia. a polícia conhece seu nome e seu passado, e mal pode esperar para colocar as mãos nele. caso isso aconteça, que futuro o aguarda? as chantagens, a morte, a prisão. nesse último caso, em que condições? com que perspectivas de recuperação? [***temos ou não alguma responsabilidade pelo destino trágico que começa a se esboçar antes da adolescência? alguém opta por se tornar um bandido aos onze anos?***] a criança cresce em meio a vínculos e processos sociais que farão dela um homem antes que ela tenha tido a chance de atravessar, com a ajuda dos pais e da comunidade, os anos difíceis da adolescência. [***esse homem prematuro que hoje é nosso problema - quanto deve à nossa omissão o seu salto mortal da infância ao inferno? temos ou não o dever de estender-lhe a mão, uma vez? de lhe dar uma oportunidade? de abrir-lhe uma porta de saída para que se reencontre conosco e recomece a sua vida? a sociedade, nós todos também merecemos uma segunda chance. a anistia não é apenas uma segunda chance para os que se perderam; é também uma oportunidade única para que a sociedade seja melhor do que tem sido.***]"

[mas isso foi em 2000, l.e.s. se referia aos pequenos homens prematuros do morro, os varejistas-sem-qualquer-importância. como seria possível, em 2005, transpor tais idéias para os infantes tardios do asfalto, os importantíssimos-políticos-empresários-banqueiros-capos-de-mídia? prendemos todos, todos os partidos, todos os políticos, todas as instituições das pequenas-grandes corrupçõezinhas-nossas-de-cada-dia? prendemos todos, cercamos de grades o brasil inteirinho? elegemos uns pobres-diabodes-expiatórios para o linchamento em praça pública, em presídio privado? deixamos todos soltos? libertamos o brasil, liberdade, ainda que tarde? nós não vamos pagar nada? a solução é alugar o brasil (para quem, para bush ou para bin laden)? é tudo free? tá na hora?]
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terceiro trecho
agora, l.e.s. se põe a discorrer sobre seus estudos in loco das políticas vitoriosas de segurança instaladas em nova york há algum tempo, quando as torres-gêmeas-simulacros ainda estavam de pé. e nos compara os americanos do norte, contundentemente:

"havia também algo mais no ar. talvez fosse o peso da tradição protestante, que faz de cada indivíduo o responsável solitário pela própria salvação. nosso espírito, no brasil, nas polícias, parece ser excessivamente católico. [***facilmente terceirizamos a responsabilidade, atribuindo a alguma instância externa a nós a culpa pelos problemas que nos atormentam. no brasil, há sempre um vago e obscuro 'eles', uma espécie de sujeito coletivo e oculto que se corporifica nos políticos, nos governos, nas elites, e cuja função simbólica talvez seja carregar o peso das culpas que cada um de nós, individualmente, gostaria de exorcizar.***] claro que é muito mais difícil mudar essa mentalidade quando a realidade externa dá razão à perspectiva crítica e confere verossimilhança à lamúria. melhor, então, deixar que a cultura produza sua própria química e rearranje os nossos fantasmas e as nossas personalidades, no ritmo que nossa história autorizar. a tarefa de modificar mentalidades é muito superior à força das políticas públicas. a mim, cabia simplesmente intervir para alterar comportamentos e procedimentos institucionais. era o que eu tinha de fazer. passei à ação, sem ilusões, mas com a certeza de que a implantação das áreas revolucionaria nosso quadro de insegurança pública e de caos organizacional."

[o triste fato é que hoje em dia (alô, leo) não há mais acordo nem mesmo entre l.e.s. e os petistas que chegaram a abrigá-lo no governo federal do brasil. mas, seja como for, que bela exposição de limites entre público e privado, entre as responsabilidades dos políticos (para nós sempre gigantescas) e as nossas próprias responsabilidades (para nós sempre minúsculas), não é mesmo? ok, os "sofisticados" crimes políticos e os crimes "brutos" das favelas parecem hoje se parear, resultando igualmente hediondos a nossos olhos assustados. mas é preciso lembrar que entre a barbárie do submundo dos morros e a esculhambação do hipermundo do planalto central, bem no meio do caminho-tiroteio, estamos nós. geralmente agindo como se não tivéssemos nada a ver com tudo isso - nem com a favela, nem com o palácio. ali estamos nós, tendo pesadelos, convencendo as paredes do quarto e dormindo "tranqüilos". sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo. (lula sabia? sabia, sim, tá na cara, tá na cura. nós também sabíamos.)]