sexta-feira, outubro 07, 2005

netinho vem aí...

já está nas bancas e no cyberespaço uma nova "carta capital", com um terceiro tipo de pop star se pronunciando (declarações como "quem ipod, ipod, quem não ipod sacode", para puxar seu apetite).

mas, antes, na mesma edição 360 de maria rita e do ipod (que estão reproduzidos no tópico imediatamente abaixo), aparecia na "carta capital" um segundo modelo de pop star, bem diferente de maria rita. chama-se netinho, você conhece muito bem.

enquanto o caso maria rita repercutiu sem parar da publicação até o dia de hoje (e além), sobre netinho ne sua tevê para negros não se tem ouvido falar, nem aqui, nem ali, nem acolá. que mecanismo seria esse que coloca maria e josé (de paula neto) em mundos tão diferentes, em redomas tão separadas, em barulhos & silêncios tão dissonantes?

você acha que netinho é um pop star? por que, nas partes "cultas" que nos cabem nesse latifúndio "inteligente", não se ouve o que netinho diz, não se pensa no que netinho canta, não se diz o que netinho pensa? quem tem medo do netinho? por que ter medo do netinho? é "medo", o que temos do netinho? o pop star mais visível do lado de lá da redoma social é invisível do lado de cá, por quê? por medo, repulsa, preconceito, desprezo, identificação reprimida, simples incompatibilidade?

netinho é "povão" ou é "elite"? tem comportamento de "elite" ou de "povão"? ou será que a elite É o povão? quem é mais sensacionalista, netinho ou a "veja"?

e/ou (e? ou?) será que josé É maria, maria É josé e moramos todos no mesmo "mondo cane"? au, au, eu não sou cachorro, não? (ou sou?)


NETINHO VEM AÍ...
Entre o mundo-cão e a responsabilidade social, o cantor conquista a periferia e anuncia a primeira tevê brasileira prioritariamente para o público negro. Será o novo Silvio Santos?

Por Pedro Alexandre Sanches

Primeira cena. O rapaz negro passeia de limusine por ruas e vielas da periferia da Grande São Paulo. Engomado em trajes de príncipe e gravata-borboleta estilo garçom, José de Paula Neto entra num labirinto de pequenas moradias aglomeradas, à procura da princesa Francisca Marques de Souza. Encontra a cinderela negra de chinelos de dedo, e ela lhe conta, incrédula: "Eu não sou feliz".

Príncipe poligâmico, José logo sairá em busca de mais princesas, em outras ruelas. Levará um travo de identificação com a história da princesa que sente muita falta da mãe, morta quando ela tinha 11 anos. É que com o príncipe aconteceu o mesmo. "Minha mãe faleceu quando eu tinha 11 anos, de parada cardíaca, viciada em álcool", rememora.

Segunda cena. O cenário kitsch é o de um programa popular de televisão. O príncipe da favela, em traje esporte fino, se converte no pagodeiro Netinho, que requebra ao som de sambas, melôs e sambas-rock vindos também da periferia de São Paulo, vários dos quais criados e cantados por ele próprio.

Exercitando a faceta de animador de auditório, o príncipe de 35 anos faz propaganda, em tom empolgado, de uma câmera e filmadora digital que custa, em 12 prestações, cerca de R$ 700. Tentando convencer os consumidores das classes C, D, E, que ele diz formarem o público alvo do programa Domingo da Gente, ele calcula o preço do produto de modo pragmático: "R$ 1,99 por dia".

Terceira cena. Num hotel nobre de São Paulo, o empresário Netinho de Paula, vestido de terno, mas sem gravata, anuncia seu empreendimento mais ambicioso a jornalistas. Entrará no ar, no próximo dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, a TV da Gente, primeiro projeto televisivo brasileiro dedicado prioritariamente à população negra. Irradiado a partir do Ceará, onde obteve concessão, o canal deve entrar imediatamente no ar em UHF, nas principais capitais do país, segundo ele promete.

O empresário explica que o investimento inicial, de R$ 12 milhões, virá de sua própria produtora, JPN, mas auxiliado por 25% de recursos desembolsados por investidores de Angola, onde Domingo da Gente é exibido com sucesso. Embute uma crítica à mídia na exposição de objetivos: "A mídia não está preocupada com a minha raça, muito menos com minha origem, a periferia. As tevês se recusam a contratar profissionais negros, mas jamais vamos cometer o equívoco que elas cometeram. Nossa tevê terá pluralidade racial. Terá pessoas de todas as cores, como é na periferia".

A platéia presente confirma sem querer suas palavras. Muitos dos jornalistas são negros e trabalham na mídia alternativa; a maioria dos grandes jornais e revistas não enviou representantes ao hotel.

As três cenas condensam a trajetória atípica, às vezes contraditória, de um cidadão que nasceu no lado desfavorecido da muralha social, na Cohab da cidade de Carapicuíba, na Grande São Paulo. Em sua terminologia, a zona dos excluídos de que quer ser porta-voz é o "gueto". "É a maioria da população, mas se for ver de perto é mesmo um gueto, de casas pequenininhas, famílias desestruturadas. É como a palavra 'gueto' foi usada pelo nazismo: um lugar de pessoas que estão esperando para morrer", diz.

Ali viu o irmão mais velho ser assassinado por policiais, ali teve, aos 15 anos, o primeiro de seus sete filhos (dois deles adotivos). A trajetória foi se tornando excêntrica a partir do contato com ONGs da região e da formação do grupo de pagode Negritude Jr., que seria um dos maiores vendedores de CDs do Brasil nos anos 90.

Por inspiração do pagode A Princesa e o Plebeu, acabou apresentando, no Domingo Legal, do SBT, um quadro em que fazia uma visita-surpresa a uma garota pobre, conduzindo-a de limusine a "um dia de princesa". O quadro cresceu e originou o programa atual, exibido todo domingo, às 13h, na Rede Record.

A audiência crescente nas tardes de domingo ajudou a desdobrar o projeto na série de ficção A Turma do Gueto, de que hoje Netinho guarda más lembranças, classificadas por ele como episódios de discriminação racial. "Um diretor comercial da Record dizia que não conseguia anunciante, porque o povo não estava a fim de ver negros se beijando na tevê. Disse que as pessoas preferiam ver o negro com uma arma na mão, determinou que cada episódio da Turma do Gueto deveria ter no mínimo sete mortes."

Diz que engole em seco e em silêncio manifestações assim, a que se acostumou desde os sete anos, quando a mãe de um amiguinho aniversariante pediu que ele fosse comer o bolo lá fora, porque o dono "não gostava de preto dentro de casa". Justifica o silêncio: "Se eu reagir na hora vou ser violento, então fico quieto".

Não foi o que aconteceu numa briga conjugal que rendeu uma denúncia de agressão por parte da hoje ex-mulher, muito explorada pela mídia sensacionalista à época. "Ali foi minha essência, de não aceitar que ponham a mão em mim. É claro que me arrependi, nós dois nos arrependemos", tenta se justificar.

No início deste ano, propôs à diretoria comercial da Record abrir mão do salário, em troca do direito de negociar, ele próprio, os anúncios do Domingo da Gente. "O programa agora está cheio de merchandising e eu estou ganhando três vezes mais do que ganhava", comemora, em meio a uma avalanche de campanhas de produtos para emagrecer, cursos profissionalizantes, máquina de fazer fraldas, creme de alface brilhante e a tal câmera digital. Essa última provoca outra avalanche, no site do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), de compradores que se consideraram lesados pelo mau funcionamento do produto.

O remoinho de comercialismo desenfreado traz à mente imagens de programas de mundo cão que pululam pela tevê aberta, mas o Netinho empresário tenta descolar o projeto futuro daquele universo: "Para a grande tevê, programas dedicados à população de baixa renda têm que ser fuleiros, sem qualidade. Nós queremos mostrar que não temos só marginais, pagodeiros e jogadores de futebol, mas também jornalistas, juristas, atores que já poderiam estar encaixados nas grandes emissoras e sabemos bem por que não estão".

Por enquanto, como animador da Record, segue se movendo no fio tenso que separa universos divergentes como os da militância social e do mundo cão, da periferia e da elite (hoje mora e grava na região nobre de Alphaville).

A corda bamba se retesa no relato cru das princesas, que faz o programa oscilar entre a exploração de dramas particulares e a denúncia social praticada de perto, de dentro. CartaCapital viajou de limusine com Netinho e testemunhou algumas dessas histórias.

Num cubículo dividido com marido e três filhos, a princesa Noemi Felizardo Pinto desfiou roteiro já familiar para Netinho e seus espectadores. "Meu primeiro marido morreu assassinado, inocente. Morei na rua, pedi esmola." Ela chora. "Meu marido tem curso de carro-forte, mas está sem emprego há três anos. Ele pensa muitas vezes em entrar para o mundo do crime, pois não tem para onde ir." Ele chora. "Só tenho vontade de morrer."

Bebê doente chorando no colo, Noemi faz a revelação mais chocante: "Economizo o remédio para não acabar, porque o menino não pode parar de tomar. Só dou quando está muito atacado, não tenho dinheiro para comprar".

À saída do casebre, o sorriso sempre largo de Netinho foi dissipado por uma seriedade melancólica. "Nós, da classe média bem sucedida, supostamente pagamos imposto para beneficiar esse povo que está aqui. Mas cadê?", pergunta.

Lembra que o atual presidente do Brasil vem dessa mesma origem e emenda com comentários sobre a atual crise política: "Há um marketing grande que beneficia a oposição. A imprensa está aproveitando, pensa que o pessoal do gueto é bobo. A gente sabe que isso sempre houve, a gente só queria que o dinheiro que rola lá rolasse aqui também".

Na casa de Adriana Maria da Silva, a conversa gira em torno de depressão. Príncipe madrugador, Netinho encontra a bela adormecida deitada, deprimida porque está desempregada, ganhando peso, o nome sujo na praça.

"Depressão é uma doença que a gente pensava que era só dos ricos. Mas estamos descobrindo que está mais aqui na periferia", ele ensina. Ela chora. "Não fica assim que corta o coração do negão", pede ele, antes de voltar à limusine, abocanhando um sanduíche de mortadela.

Francisca, aquela que contava que "não sou feliz" na carta enviada ao ídolo, põe-se admirada diante dele: "Como é alto!". E conta seus desejos, aos borbotões. "Meu sonho é ser atriz." "Agora não tenho mais certeza. Li a Bíblia, tenho vontade agora de ser outra coisa. Cantora evangélica." "Canta bem?", ele pergunta. "Não", ela sorri, "minha mãe diz que minha voz é feia".

Enquanto doa a ela uma cesta básica, um pacote do Café do Netinho e R$ 3.000, o príncipe bambeia com a menina entre o sonho e a vida real: "Vamos ver se arranjamos uns cursos para a nega ficar uma cantora bem culta. Vamos tentar arranjar um emprego com carteira assinada. Você já cantou em coral?" Não cantou.

"Tem namorado?" "Não. Não adianta querer uma pessoa sem ter nada na vida", ela suspira, fitando o príncipe "fofinho", que se despede e a deixa sonhando, "é a primeira vez que vou passar na tevê".

À saída de uma das casas, uma mulher idosa se aproxima e pede ajuda, dinheiro, "sou muito doente, surda do ouvido". A população local rodeia, outra mulher puxa seu braço. "Lembra de mim? Eu morava no térreo, você com sua mãe no quarto andar. Seu apelido era Serelepe." Ele sorri, abraça-a. A outra senhora reclama, "ah, só ela merece um abraço", Netinho lhe abraça longamente e foge para a limusine, escoltado por 12 seguranças que acompanham a caravana.

Não haveria, em todo esse corpo-a-corpo, um componente de exploração de sonhos e tragédias alheias? "Já disseram que o programa é sensacionalista, piegas, forçação. Não vejo como exploração, meu povo sabe que não é. Não fico caçando desgraça, as histórias estão todas lá. Só quem é de outra classe social vai falar que é exploração."

Afirma, para prová-lo, que acredita na transformação que sua efêmera passagem provoca. Diz que, todo final de ano, o programa volta às casas de todas as princesas para mostrar o que aconteceu após o "final feliz". "O resultado é espantoso, 70% delas aproveitam, mudam de vida. Não acho que seja ilusão."

Além da ilusão, estão ações concretas de apoio a "seu povo", como o Instituto Casa da Gente, que ele abriu em Carapicuíba com apoio do BNDES e de três ministérios do governo Lula. Diz que o instituto atende a 1.200 crianças da região.

No front comercial, também abriu, em sociedade com o cantor Alexandre Pires, a gravadora independente Da Massa, que pretende abrigar artistas de pagode deixados à míngua pela indústria musical, após estancado o surto de sucesso dos anos 90.

Hoje, Netinho se permite ser algo crítico em relação àquele movimento musical que, no entanto, "era auto-estima pura para a rapaziada": "O movimento era muito besteirol, poucos conseguiam contornar isso. O pouco que a gente fazia com conteúdo social nunca era escolhido pela gravadora para tocar no rádio".

Seu estilo musical romântico e festivo era diametralmente oposto a outro que floresceu na periferia a partir da década passada, o hip-hop, mas nem por isso os dois mundos são estanques. Quando foi a Brasília anunciar o projeto da TV da Gente, há poucas semanas, o rapper Mano Brown, dos Racionais MCs, o acompanhava.

"Brown é meu amigo de infância, crescemos no mesmo bairro. De dois em dois meses temos um quebra-pau por ideologia, mas seguimos agindo pelo mesmo objetivo. A diferença é que os Racionais são radicais, nós somos pacifistas", delimita.

Nega que Brown seja um investidor oculto da TV da Gente, ou que vá aparecer na tela da tevê do gueto. "Ele é muito tímido para aparecer. Não há pretensão de que os Racionais tenham um programa. Mas eles podem, quem sabe, estar dirigindo um programa."

Dizendo que já desistiu de reivindicar a contratação de profissionais negros na grande mídia, como procurava fazer antes de abraçar o novo projeto, ele completa: "Não acho que os negros vão conseguir mudar essa realidade na mídia. São os próprios brancos que têm de se conscientizar sobre qual é sua participação no modo como a periferia é. No Brasil quem consegue concluir curso se acha superior, mas para nós ele não é. No fundo, a mesma coisa que ele pensa da gente a gente pensa dele".

Gravadas as visitas no "gueto", a próxima etapa é apresentar as princesas em competição no programa. É hora de catarse, que não raro atinge momentos de crueza incomuns até nos programas de mundo cão, como aconteceu no caso da princesa Débora Cristiane de Oliveira em gravação também testemunhada por CartaCapital, que irá ao ar no domingo 18.

No vídeo pré-gravado, Débora conta que já perdeu um marido e quatro irmãos, todos envolvidos com drogas. Netinho diz que ela precisa arrumar os dentes, prega o uso de camisinha ("no gueto só tem menina de 14 anos grávida, é epidemia de gravidez"). Ela apresenta Alex, o atual marido, desempregado. Chora. Hesita, mas acaba por confessar: "Ele tá viciado também, em crack". O príncipe dialoga com o marido da princesa: "Mano, se você não resolver se cuidar é o abismo, você já foi para a morte. Vê seu filho, o filho é o espelho da gente".

No palco, Alex aparece de mãos dadas com os filhos e é tratado com simpatia por Netinho: "Tá todo bonitão, fez até a barba". Ele sai do estúdio num carro da clínica patrocinadora em que cumprirá um programa de reabilitação. A família chora.

"Eu não vou ser o salvador da pátria, vou tentar dar oportunidades para que vocês se desenvolvam", diz à princesa Rosa Gomes de Jesus e a seus irmãos, que ganham bolsas de estudos da Universidade Zumbi dos Palmares, também orientada à população negra. "Tem negrão que vive atrás da cor para justificar que não consegue as coisas, não pode", aconselha.

Grávida, a princesa Maria das Dores Ferreira recebe de um patrocinador o direito à ligadura nas trompas. E ganha bolsas de estudos para seus filhos num colégio da valorizada Vila Olímpia, cujo representante explica que "trabalhamos com pessoal de classe média alta, mas reservamos bolsas para 20% dos alunos". "Não vai ser fácil, vocês vão viver numa realidade diferente, terão que ter muita força de vontade", adverte o educador. "É escola particular, você tá ligado que no Brasil só playboy é que tem isso?", Netinho incentiva um dos garotos. "Ó a responsa. Eu levo fé, o menino é danado", estimula.

Mas é o drama de Débora que espalha o choro pela platéia, composta só por negros e pardos, não fosse a presença da equipe de um vereador curitibano do PFL, que divulga um programa que apresenta na Record paranaense, sob o mesmo modelo assistencialista. A atriz e cantora Tânia Alves cai no choro e tem de interromper a fala ao votar nela para princesa titular. Débora sai vencedora, com R$ 10 mil de prêmio no bolso. "Glória a Deus", ela chora.

Esticando o fio da periferia até o centro, e vice-versa, José de Paula Neto vai moldando a zona fronteiriça tensa em que se equilibra, entre a arcaica exploração do mundo cão e conceitos mais contemporâneos a que sempre se reporta, como "política afirmativa", "responsabilidade social", "auto-estima".

Se o poderio que vai acumulando tijolo por tijolo faz evocar a trajetória do ex-camelô Silvio Santos, ele reconhece a inspiração com certa ironia: "Meus ídolos são Silvio Santos, Roberto Marinho e Edir Macedo. Foram inteligentes e espertos. Fizeram amizades e conseguiram concessões por tráfico de influência, para depois fechar concessões para outros que chegavam".

Pisca o sinal de alerta: Netinho faria o mesmo que eles fizeram, para deter futuros rivais? "Nem teria como, com internet e TV digital será cada vez mais difícil isso acontecer. Estamos em outros tempos", coloca o ponto final, descrevendo um tempo em que o príncipe e o plebeu se misturam na mesma pessoa.