quarta-feira, outubro 05, 2005

tinindo, trincando

escrevi às cegas, sem saber o que ia rolar, um texto para acompanhar o libreto do show-tributo ao álbum "acabou chorare" (som livre, 1972), dos novos baianos, no projeto "disco de ouro", do sesc pompéia.


o textinho dizia o seguinte:
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ACABOU O CHORO

A capa original de "Acabou Chorare" (que, por sinal, foi suprimida de edições posteriores em vinil e em CD) fotografava uma mesa de jantar bagunçada, desfeita, aparentemente abandonada por alguma horda de comensais saciados - possivelmente os mesmos Novos Baianos que vinham guardados dentro da embalagem. Mas, não, desde então as aparências já andavam dispostas a enganar quem não tivesse colírio nem usasse óculos escuros.

Mesa posta havia sido a do banquete tropicalista, quando outra trupe de novos mensalistas proclamou sua crítica feroz às decadentes pessoas na sala de jantar, que se ocupavam meramente em nascer e morrer. Pão e circo e promessa de uma nova e mais democrática mesa de jantar, a tropicália explodiu e implodiu em questão de segundos.

Exilados ou ao menos reprimidos pelo AI-5 os tropicalistas, foram os Novos Baianos os próximos a achincalhar a mesa patriarcal do reacionarismo popular brasileiro. Na dura cena vazia da capa de "Acabou Chorare", guardava-se a contra-imagem da dissolução da tradição, da família, da propriedade. Novos Baianos ganhavam o país morando em comunidade hippie, jogando futebol no sítio comunitário, fumando maconha em grupo, eletrificando o samba, sincopando o rock'n'roll, inventando o rock-samba que seria o inverso simétrico do samba-rock de São Jorge Ben & seus discípulos.

Pelas sinapses dos "novos neurônios", circulavam neurotransmissores tão diversos quanto a ancestralidade brasileiríssima de Assis Valente, a influência da pré-pós-modernidade da mãe bossa nova e do papa João Gilberto, o espólio tropicalista, o arvoredo do samba de morro, a reinvenção do rock'n'roll pelo triunvirato Erasmo-Rita-Raul. A síntese reinterpretada era feita por "Brasil Pandeiro", de Assis Valente, numa exposição de orgulho autóctone que poucas vezes o Brasil brasileiro consegue transmitir: "Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor"!

Era o desbunde para escapulir do terrorismo e da tortura - e, como eles, era também um tantinho suicida. Era a desordem mental que tentava evitar a fórmula de pólos reciprocamente excludentes entre a velha guarda que definhava tinindo trincando e as novas meninas que, no cisco do olho, agora também dançavam. Era a guitarra elétrica d'A Cor do Som, subgrupo dentro do caravana cigana, e era o arsenal de regional de samba cozido por Moraes Moreira, sob o amálgama da poesia surreal de Galvão e das vozes vivíssimas de Baby Consuelo e Paulinho Boca de Cantor.

"Acabou Chorare", louco por manter os reacionários afastados da mesa de jantar e doido por estancar a lamúria autoritária que vencia o Brasil, era o combustível que incendiava tudo, enquanto corria a barca lerda. Passados 33 anos, a barca grande do Brasil 2005 desfila toda transtornada, mas tão robusta que dá vontade de gritar outra vez, em coro com velhos e novos baianos e não-baianos: chega de choro!, chegou a hora desta gente bronzeada mostrar seu valor!

Pedro Alexandre Sanches
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aí, bem, o show aconteceu, no fim de semana que passou. e foi emocionante, emocionante, emocionante. havia gente fungando de choro entre um solo de guitarra e outro, e um deles era eu.

num visual estritamente snz e entre as manifestações de glória a deus de sua mais nova religião, baby (consuelo) do brasil compareceu para honrar a origem mestiça da dinastia (era carioca, essa nova falsa baiana). cantou, é claro, "tinindo, trincando" e "a menina dança". e chegou, para animar a festa, de voz intacta, corpulenta, perfeita. não fosse tão maluquete a bernadete, sua voz e o incrível domínio intuitivo que tem de interpretação a teriam levado, tinindo, trincando, ao pódio das mais completas cantoras da história do brasil. continua sendo uma das melhores, ainda que sem o reconhecimento e a constância e a consistência muitas vezes solicitadas pelas convenções da desmiolada cultura pop.

a baby pertenceu também outra das passagens acachapantes do show-acontecimento. em "acabou chorare", dividiu um duelo de arrepiar, guitarras & vozes, com davi moraes, filho do velho novo baiano moraes moreira. se como homem de frente do pop davi ainda bambeia na corda de uma potente guitarra baiana, como músico da trupe que se formou para mimar o tributo aos nb, ele esteve afiadíssimo, de deitar o queixo.

destoando de baby do brasil, luiz melodia e elza soares modularam vozes menos preservadas pelo balanço das décadas. mas haveria vírgula a ser aposta a uma versão de "brasil pandeiro" duetada por elza & melodia (ou na versão de melodia para uma das canções mais adoráveis do planeta, "mistério do planeta")? não havia, e no clássico de assis valente que o show já começava derrubando lágrimas, convocando o tio sam & as novas gerações da pátria do tio barnabé a conhecer a nossa batucada. mesmo acidentada, "brasil pandeiro" não aceitou vírgula nem ponto-e-vírgula, nem no bis, nem no "tris" acrescido dos quadris de elza, do rebolado de elza, da turma toda reunida no palco em "v" de "valeu, bicho" projetado por lina bardi para as bundas quadradas da patuléia do pompéia da paulicéia.

quadris e bundas estiveram em falta, aliás, apesar do jorro de sambas em "começou sambare" - cantaram e tocaram samba sem rebolar samba os quadris-duros davi moraes, romulo fróes, os meninos do bando dos lampirônicos. o naipe de metais da banda mantiqueira até sambou, mas aí eram os metais que convulsionavam as convenções do rock-samba que se poderia esperar de um "acabou chorare" redivivo e roqueirizado. elza, melodia e baby, sobretudo baby, sambaram pouco (melô ensaiou até uns movimentos rappers de street dance, enquanto elza chacoalhava o miudinho) - mas sambaram.

egressos da bahia, os novíssimos baianos lampirônicos trouxeram ao palco o simpático dj mangaio, que paramentou a atmosfera suspensa com barulhinhos bons e samplers (como o do "mistério do planeta" original, com paulinho boca de cantor na cantoria e chiado de vinil no megafone). num território onde ainda mora muito nariz torcido contra a eletrônica e os djs, mangaio nem foi vaiado - melhor, foi aplaudido, com empolgação e merecimento.

o mesmo merecimento se estenderia aos lampirônicos todos, que na sala & na cozinha faziam vezes de novos baianos, de cor do som, de regional, de banda de rock, de bando de lampião, de quadrilha de rastapé de luiz gonzaga. mais ou menos imaturos ainda em seus discos autorais ("que luz é essa?", de 2001, e "toda prece", de 2004), os lampiões eletrônicos estiveram em estado de graça na noite de domingo. o cantor vince de mira tateava uns passos ainda meio amedrontados, mas o que valia era a empolgação da(o) banda(o) em recriar, mais davi moraes, as barra-leve-barra-pesada "preta, pretinha", "besta é tu" e "um bilhete pra didi". eles querem ver quando lampião chegasse o que ia acontecer, eles querem ver. tá visto.

o tom meio cangaceiro, algo sertanejo, marcadamente gonzaguiano-jacksoniano que os lampirônicos imprimiram ao espetáculo foi um dos pulos do gato, na medida em que re-revolucionou o rock-samba e o samba-rock e a pós-tropicália dos novos baianos em rock-baião, baião-rock, funk-samba-rock, rock-axé, pós-pós-tropicália e pós-mangue beat (anárquicos, os meninos são discípulos do mais ou menos novo baiano carlinhos brown, mora?). o tributo aos novos baianos se convertia, enfim, num tributo aos novos, novos, novinhos.

[e foi a perene madrinha dos novos elza soares quem pilotou, meio desengonçada, a segunda vinda de "preta, pretinha", o fecho do disco-show. enquanto corria a barca, a cada vez que repetia o chamamento "preta, preta, pretinha", elza reencontrava o ovo de colombo, faceira e esbelta, lata d'água ideológica na cabeça: "sou eu". é ela, é ela, preta, preta, pretona.]

o fio que suspendeu o futuro e trouxe o passado para um presente em estado de graça é facilmente explicável: o arranjador e diretor musical da pajelança foi o paulistano sambexperimentalista romulo fróes, que falou um tiquinho demais e também cantou (com presença de palco tímida, mas vozeirão seguro) o suingado "swing de campo grande". aparentemente atordoado, deu a liga de que um show coletivo depende para acontecer - como de fato aconteceu. jovens roqueiros baianos, experientes sopristas paulistas, veteraníssimos intérpretes cariocas e um maestro novinho em folha, estava recolocado à mesa, em fronhas alvas, o garboso banquete de nobres mendigos de 1972.

para quem esteve lá, com um nó de tristalegria prendendo a garganta, o encontro adquiriu ares de inesquecível e cumpriu papel subversivo, ao misturar em óleo bifásico perfumado a nostalgia da melancolia do eterno retorno à arca perdida da mpb passada e "o inesperado faz uma surpresa" da gana gulosa de celebrar os novíssimos. e aí, pluft!, acabou chorare, ficou tudo lindo.