quarta-feira, novembro 09, 2005

vestidinho vermelho, vento na campina

lado a do lado a

inverno em são paulo à beirada do verão, marina lima fechou-se na esquisita pirâmide chamada auditório ibirapuera e fez um verão.

inverno caminhando para o final, a voz tão visada encorpando devagarinho, marina lima olhou para trás e tentou vislumbrar seus primórdios, no espetáculo multimídia "primórdios".

num ponto isolado do espaço entre o inverno e o verão, entre quando começava a haver laurie anderson e quando começava a existir tetine, marina lima estreitou elos femininos (com a diretora monique gardenberg) e elos masculinos (com o cenógrafo isay weinfeld, com o sempre irmão antonio cícero) e compôs um espetáculo de meia-estação entre o datado e o pós-moralista, entre o rock e a eletrônica, entre a eletrônica datada e o rock pós-moralista.

dividiram em dois, os criadores do evento, o imenso espaço de palco da obra faraônica de oscar niemeyer, aquele monolito, esse buda nagô tupi, aquele cacique-vodu touro-sentado.

no (imenso) lado esquerdo, a platéia acompanhava os flashes de imagem e os elementos femininos da justaposição - telas de projeção, globos estroboscópicos, o time imponente de mulheres cenográficas que entravam ora portando clássicas perucas fluo, ora exibindo cyber-nudez performática.

no (enorme) hemisfério direito, o público podia contemplar os elementos de som e os nutrientes masculinos do encaixe - centralizados na banda localizada numa ilha quadrada que boiava ancorada à deriva, integrada (como de praxe) exclusivamente por músicos (e, desta vez, um vocalista de apoio) do sexo masculino.

à frente dos dois pólos, marina lima se movimentava para lá e para cá, entre o som e a imagem e o masculino e a feminina, ensejando na multimídia feérica o balé de inversões e transgressões. no rock (masculino) como na dance music (feminina), mastigava conceitos já passadiços e fazia misturadora confusão: abria-se para se expor (quase) inteira frente à música que vem (re)reconquistando de pouco em pouco, enquanto fechava o corpo (quase) duro numa dança frenética, travada, contida, aflitiva (para nós e para ela mesma; para ela como nosso espelho mágico e para nós como espelhos d'água dela).

feminina, cantava (para) a (artista plástica) "anna bella" (geiger), reivindicando a edificação futura da instituição da sauna gay feminina: povoava a metade esquerda do palco com uma profusão de mulheres (quase) totalmente nuas, mas imobilizadas em estética estática de estátua, na fotografia paralisada de uma nudez mais pudica que pudenda. o sexo (feminino, ou melhor, feminino-masculino) aflorava contido, persistente de clausura auto-imposta, aquela que trava os movimentos do corpo e os movimentos políticos da massa que quer (mu)dança.

másculo-feminina, reivindicava a presença futura de uma mulher no exercício da presidência da república brasileira (salve, marina!, já é certo que esse dia chegará!) [socorro, amiga márcia, acuda: era mesmo desse momento a alusão à presidência feminina, de que não me lembro se me lembro?]. e evocava a lôca, "aquele inferninho" ao mesmo tempo em que trazia (de volta) ao brasil a malemolência robótica de mrs laurie anderson, mulher de mr lou reed. a versão de "beautiful red dress" aterrissava em terra brasilis como "vestidinho vermelho", genial (re)criação fadada a formar par valsante com a (re)leitura espetaculosa de "paris-dakar" (2001), tecno-mpb que condensa e glorifica a trajetória acidentada de marina lima: "olhos à deriva/ no ar/ o mundo se olhando no espelho/ começa a gritar/ o mundo gira e cai de joelhos/ tentando respirar". o mundo, no intervaldo de (quase) silêncio de um minuto, era marina lima.

masculina, algo desastrada e trapalhona no jeito macho de corpo, repescava a bela "$ cara" (1990) do auge do desastre collor. sob os versos vencidos "jamais foi tão escuro/ no país do futuro/ e da televisão", de protesto político ainda moralista, ainda maniqueísta, confundia as cores nubladas de collor com os coloridos transtornados de lula, como se fossem os mesmos e como se valessem para agora os descaminhos d'antanho. não valiam, mas valia o documento de um tempo que (oba!) já se deixara para trás.

pois "bang bang (my baby shot me down)", um pop chiclete do veterano de guerra & paz sonny bono, tão masculina e desastrada e trapalhona quanto, invertia parâmetros para o pós-referendo vencido pelo "não" sob os céus de allah de iraque e afeganistão: o pop chiclete de sonny bono, músico-parlamentar que no final dos anos 90 se fez patrono-patrocinador do ataque político-industrial reativo-conservador ao progresso dos copylefts e à liberdade musical de expressão, era masculino no sentido menos nobre do termo. mas a versão masculina-feminina de marina lima não era, ou era menos.

fêmeo-masculina, espelhava geometrias brasileiras no (quase) início e no (quase) fim do espetáculo: paulinho da viola passara por ali.

primeiro, acontecia na (re)releitura do clássico embalsamado "nervos de aço", do gaúcho lupicinio rodrigues, de que o carioca paulinho, o da viola, se apossara amorosamente em 1973. ode mui estúpida ao amor egoísta (porque cego um palmo adiante do nariz, e narcisista, e derrotista por demais), "nervos de aço" ressuscitava travesti do travesti, revestido pelos loops pós-samba (re)inventados pelo também gaúcho thedy corrêa (líder do grupo nenhum de nós e recém-produtor do inquieto álbum "loopcinio") - agora os nervos continuavam sendo de aço tenso e retesado, mas já eram também de fios de ovos, de baba de moça, de pompom d'algodão doce.

por fim, se repetia no (falso) final do show a (re)materialização hiperamorosa de um paulinho da viola ainda sambista, mas não-sambista. prelúdio, antes acontecia mais uma (re)versão preciosa e preciosista da ode mui (auto)feminina "pierrot" (1998), a música de marina lima que, de todas, mais falava sobre marina lima: "sim, eu precisei me ausentar/ para ocultar a minha dor/ fugi, menti/ talvez por pudor", você já sabe, então "bem-vindo à minha terra/ feita de homens em guerra/ e um (ou) outro louco para amar".

os primórdios confessionais eram prenúncio do (eterno) retorno de paulinho da viola (e de marina lima). "para um amor no recife" (1971), regravada por ela pela primeira vez no ano terrível de 1996, não ocultava (nunca) mais a sua dor: "andei levando a vida quase morto"... "quero fechar a ferida"... "quero estancar o sangue"... "eu voltarei depressa"... "tão logo a noite acabe"... "para beijar você"...

prometendo voltar depressa, marina lima virava os ombros largos para o público, abrigava o corpo esguio numa capa hollywoodiana e a cabeça numa sombrinha guarda-chuva, enquanto a platéia assistia, atônita, à decomposição da pirâmide faraônica de oscar niemeyer: o fundo majestoso do palco do auditório era falso. suspenderam os jardins da babilônia, e eis que a quarta parede se erguia lentamente e embotava os olhos perdidos da platéia com a visão liberta do ibirapuera, do parque, do cheiro de grama, do vento na campina verde. marina lima se descolava do palco (da pirâmide, do claustro, da tumba do faraó, do ovo cúbico blindado, do sepulcro) e, ainda cantando, fugia para o verde, para o encontro das moças antes nuas & agora vestidas de branco num imóvel e contido piquenique sem maçãs (mas com formigas).

era uma confissão de fascínio algo convulsivo pela morte (como se já não soubéssemos...), como se a libertação da clausura cúbica levasse em linha reta às pradarias verde-brancas de um paraíso tipo selva de pedra, meio tela da globo. mas o final era falso, como era falsa também a despedida. marina lima ainda voltaria depressa, para cantar mais e mais, numa brincadeira "prestes a voar" de quebra-cabeça pop-erudito sado-masoquista infanto-juvenil, de gato & rato, de tom & jerry, de público & seu espelho, de vida & morte & vida.

mas havia vida lá fora (como também cá dentro), à esquerda e à direita, ao norte e ao sul, a leste e a oeste. os momentos felizes não estavam escondidos nem no passado, nem no futuro (mas sim no presente), jamais fora tão claro e cintilante o país do presente.

lado b do lado b

xerife honorário do lado direito do palco, o pós-cowboy supra-norte-americano neil young lançou, no ano da graça de 2005, mais um disco, um novo, novo disco. "prairie wind", vento na campina, foi seu mais que quadragésimo elepê, dentro do quase quadragésimo ano de uma longeva e caudalosa história musical.

assim procedendo, neil young, o roberto carlos canadense, comprovou uma vez mais (como se já não soubéssemos...) que foi, é e sempre será uma espécie de stevie wonder em alto consraste, mantendo-se ainda assim tão compacto e consistente como um stevie wonder. porque enquanto stevie se resguarda dos excessos e dos desgastes, neil, qual um roberto menos moreno, produz e produz e produz e produz, obsessiva-compulsivamente. sem nunca perder o condão nem deixar de gozar da estima de seus súditos - porque canadá não é brasil, não, nem os canadenses devem andar habituados a amar odiar seus robertos carlos, como costuma fazer um certo país infra-norte-centro-sul-americano.

pois em 2005 neil young sentou-se ao vento da campina e se fez lobo da estepe, tolo na colina, ermitão no topo da montanha. plugou em música incansável os sustos do pré-envelhecimento - consumaram-se abundantes em "prairie wind" os indícios do medo da morte, do fascínio pela morte, do pulso vital de evitar e contornar e enfrentar a inevitabilidade da morte, a evidência de que tudo na (vida &) na morte é fugaz, de que tudo na vida (& na morte) é fullgás.

o aviso apressado ele fincou já na primeira canção, "the painter" (uma pintora do sexo feminino, uma anna bella geiger, foi quem elegeu como primeira personagem). a canção se conectou diretamente com o imaginário fértil do álbum (quase) mitológico "harvest", colheita, de 1972, idos tempos férteis de safra e colheita e fartura. não mais - no ano da (des)graça de 2005, o velho lobo do (m)ar germinou grãos e espigas em abundância para afirmar que não resta safra de grãos nem de sabugos no chão fofo do adorável homem das neves, do velho lobo do gelo.

contou que está "falling off the face of the earth", o homem que caiu da terra, o macho decaído na estiagem outonal. decretou que agora era "no wonder", no (stevie) wonder, chega de maravilhas. "he was the king", cantou para elvis presley, colidindo óbvio e inusitado encontro de linhas paralelas que um dia irão se encontrar boiando no infinito, só, somente, só, só lá. em livre tradução de cultura livre para os criativos comuns: "na última vez que vi elvis/ ele dirigia um cadillac pink (um calhambeque, beep-beep)/ o vento estava blowin' (in the ansewer, my friend) sua cabeleira/ e ele nunca olhou para trás/ ele era o rei"...

pop-erudito infanto-juvenil sado-masoquista que no passado já determinou apoio a mr. ronald reagan, neil perfilou-se diante do pai, de bóbi filho para bibo pai, e orou "for daddy", para o papai - essa foi a dedicatória do lobo na colina, em seu disco do ano da glória de 2005.

sentiu-se "far from home", ovelha negra desgarrada, espermatozóide que fugiu de casa para nunca mais. ali emaranhou os novelos de amor paterno ensejados na dedicatória: "quando eu era um 'growing boy'/ pulando no pescoço de papai/ 'daddy' apanhou um velho violão e cantou: 'me enterrem na lone prairie' (na campina deserta, em campina grande, na paraíba masculina, sim, sinhô)".

duas estrofes além, far from daddy's home, neil recolheu as aspas da canção paterna, engoliu-as, fez suas as citações do pai e se formou pai de si próprio e de seus próprios filhos. "enterrem-me na campina/ onde o buffalo gostava de vagar/ onde os gansos do canadá cortavam the sky/ e então eu não estarei mais longe de casa", pediu neil-pai. sombrio, soturno, apaixonado pela morte andava aquele neil young no ano de secos bush-arbustos de 2005.

e enquanto o pulso da morte e a tremedeira do ocaso vibravam os nervos do velho young, ele se enchia de (mais e mais e mais) vida e debulhava o trigo, recolhia cada bago do trigo, forjava no trigo o milagre mundano do pão. decepava a cana, recolhia a garapa da cana, roubava da cana a doçura do mel, se fartava de mel (de abelhas). afagava a terra, (ainda) conhecia os desejos da terra, cio da terra, propícia estação. e fecundava o chão, carpindo as pradarias no norte-sul num caminhão de bóias-frias habitado por luiz gonzaga, lupicinio rodrigues, elvis presley, milton nascimento, chico buarque, sonny bono, bob dylan, lou reed, david bowie, stevie wonder, gilberto gil, rita lee, roberto (& erasmo) carlos (& wanderléa), paulinho da viola, laurie anderson, marina lima.

e o vento soprava nas campinas, nas matas ciliares, nos verdes parques modernistas e nas florestas & pantanais, balançando na brisa um vestidinho vermelho todo bordadinho em brocados bêbedos. era inverno¨& verão & outono & primavera, quandonde tudo se misturava.