terça-feira, novembro 01, 2005

a vida no lado leste

as discussões mais recentes aqui no blog trazem para o forninho, (re)quentinho, o pãozinho de uma reportagem que havia ficado para trás (pois mr. lulu santos "furou a fila") lá na "carta capital" 362, de 5 de outubro de 2005. pertence à seção "brasiliana", em que fazemos crônicas instantâneas da vida brasileira, e naquele fim de semana eletrônico de nokia trends peguei a rota desviante e rumei para duas noitadas na zona leste (alô, dona márcia!, bem-vinda de volta! é nóis na zl!).

é que havia um outro festival rolando lá pelos lados onde o sol nasce primeiro. nesse, não havia sombra de mecenato da tim, da nokia, da claro, da oi, do mundo encapsulado em telefones celulares. mas não pense que era um festival "no logo", que era um festival sem patrocínio. não, estava lá um cartaz da petrobras, sinal da presença do governo federal (petista). o espaço poliesportivo utilizado deixava claro que é dos cuidados do governo estadual (tucano). e, segundo conta o organizador do evento, gente da prefeitura (tucana) da cidade de são paulo também andou por ali durante o festival.

é que festival na "zl" não dá no rádio nem na televisão. não rende anúncio em jornal nem na mtv. não atrai consumidores movidos a celular nem a speedy. mas rende voto, muito voto. porque é lá que mora um tal povo brasileiro. que, por "hábito", vê tudo do lado de fora. e, embora more no brasil, só entra no brasil pelo buraquinho da urna. quando, também por "hábito", costuma estufar o peito e gritar: "nããããão!".

(em tempo: já ouviu os skywalkers? eles são do balacobaco. já lançaram dois discos pela 100% independente baratos afins, do malucaço luiz calanca. foram eles que me deram o toque, d'o q difere.)


A VIDA NO LADO LESTE
Por Pedro Alexandre Sanches

Rafael Roque e Audrey Marie, ambos de 23 anos, são namorados, tocam na banda de rock Os Skywalkers e estão participando de um festival de música na zona leste de São Paulo, como músicos e como espectadores. Ambos moram na zona leste, ele na Vila Formosa, ela na Vila Prudente.

Neste fim de semana em que bandas locais se agrupam tendo como "padrinhos musicais" os mais conhecidos Arnaldo Antunes, Otto e Nação Zumbi, ambos confessam um certo temor, pois é a primeira vez que pisam na Cidade A.E. de Carvalho, onde acontece o festival O Q Difere.

Mais afastado do centro paulistano que as vilas Formosa e Prudente, esse bairro está apartado da praça da Sé por meros 23 km (menos de meia hora de metrô ou de carro numa Radial Leste descongestionada, nas opções usadas pela reportagem). Ou, então, pelos anos-luz que ainda separam o centro da periferia, os preconceitos da "vida real".

Na madrugada de sábado 24, Arnaldo Antunes rema contra a maré dos consumidores paulistanos de cultura, que nessa mesma semana preferem sacudir à eletrônica celular do Nokia Trends, pegar (ou furar) fila para o show do Moby por R$ 140 ou, quando muito, conferir numa casa chique o mais novo show de Los Hermanos.

Arnaldo corrobora, sem querer, a dura desigualdade entre os dois lados da muralha social. "Espero que vocês se divirtam aí de baixo tanto quanto nós aqui de cima", acaricia o público minguado, parecendo comentar, simbolicamente, bem mais que somente a altura de três metros que separa o palco e a platéia do Pólo Cultural Zona Leste.

"Pessoas da zona leste costumam ir ao centro ver Os Skywalkers, mas não vão quando o show é na Vila Formosa", conta Rafael, demonstrando que o isolamento cultural de seu lugar de origem também tem raízes fincadas dentro da própria zona leste. Ecoa pelo ar a canção de 1994 de Itamar Assumpção (1949-2003), que de lá da Penha lamentava, em inglês zombeteiro: "She let me down because I live in the east side of town" (em português direto, "ela me abandonou porque eu moro na zona leste").

A escassez de público nos três dias do festival pode dar razão à sensação de abandono traduzida por Itamar, mas, cuidado, as aparências continuam a enganar. Colocado em pé pela ONG Aarca (Associação de Arte, Cultura e Educação Ambiental, www.aarca.org.br) por um custo estimado em R$ 40 mil e sob patrocínio da Petrobras, o festival é fruto de um projeto de mapeamento cultural que já compilou 2.500 artistas, 73 bandas de música, 55 grupos teatrais... Todos da "ZL".

Contando com infra-estrutura de festivais de porte, sofre da dificuldade em reunir espectadores e de abundantes problemas técnicos – inexperiente, a equipe técnica também foi toda recrutada localmente. "Todo mundo que está trabalhando é da comunidade. Nosso objetivo é criar mercado, gerar renda, ensinar gente daqui a produzir", afirma Moisés Vilas Boas, um paranaense que se radicou em 1969 na Vila Califórnia e hoje preside a Aarca.

A inspiração vem de festivais de rock alternativo que se consolidaram a partir de regiões periféricas do Brasil, como o Abril pro Rock (em Recife) e o Goiânia Noise. "Quem iria para Goiânia se não fosse para um festival de rock?", pergunta-se Rafael Roque, sonhando migrar para leste o raciocínio.

Primeiro será preciso compactar os núcleos fragmentados da ZL, ainda freada por conflitos de "briga da rua de baixo com a rua de cima", segundo palavras de Vilas Boas que lembram as de Arnaldo Antunes. Mas o mostruário que o primeiro O Q Difere consegue produzir já é por si só vigoroso, salpicado de pequenas novidades.

Pelos três dias, sobem a três metros de altura bandas de nomes inquietos como Salve Jorge, Nhocuné Soul, Joana Flor e Seus Dois Maridos (cuja líder mora no Copan, bem no coração da cidade), Maomedes, Ritual da Tribo do Leste, Mama Gumbo, Sotádicos etc.

A panela ferve na madrugada de domingo, com os rappers do grupo Pretologia esmiuçando recados bem rock’n’roll, bem hip-hop. "A história do Brasil está sendo reescrita aos poucos, devagarzinho. A gente está fazendo uma revolução estrutural neste país", apregoa um dos vocalistas, desprezando verbos no passado ou no futuro.

Manifestam-se "pelos ancestrais que morreram na senzala", exprimem indignação racial ("não era você, branco, que era chamado de macaco"), praticam o auto-orgulho ("sou preto até os ossos"), decretam "a ideologia do povo preto: a pretologia".

"Vai embora, eu quero ver o Otto!", clama um chapa da ZL. Mesmo sob certa resistência, a "revolução" se espalha e vaza para o chão de cimento chapiscado da platéia. É onde se apresenta, com rigorosa desenvoltura, o grupo de street dance Pensativos Break, de São Mateus. Girando soltos no espaço, respondem ao silêncio que abraça a periferia imprimindo poesia visual nos próprios corpos.

O líder do grupo, Piu, conta que dança desde os primórdios do movimento hip-hop, ainda na estação São Bento do metrô. "Era nossa referência, mas depois que fecharam começamos a adquirir o asfalto", diz, citando como novos pontos de aglutinação a cidade de Diadema e os CEUs (Centros Educacionais Unificados) Aricanduva, São Mateus, Rosa da China...

Esses despontam como pontos rudimentares de reorganização de uma comunidade "totalmente desarticulada", como avalia Vilas Boas. No mesmo espaço em que dança o grupo de Piu, Rafael Roque intercala o sincretismo que pratica nos Skywalkers, de tropicália, rock’n’roll e candomblé, com... aulas de música erudita: ele é contrabaixista da Big Band do CEU Aricanduva.

Percebendo as tensões entre o projeto educacional de origem petista, hoje pilotado pelo PSDB, e a gestão tucana do Estado, que administra o Pólo Cultural Zona Leste, Vilas Boas vislumbra um horizonte a ser desbravado: "Na sexta tinha gente da prefeitura lá. Pegaram nosso contato, disseram que querem transformar o espaço. Esses eventos criam concorrência entre os poderes, e isso é bom para a gente".

Após o fim abrupto do show do Pretologia, o loiro pernambucano Otto sobe o palco tristonho, aparentemente desanimado com a platéia diminuta. É preciso que entre seu convidado, Rappin' Hood, para colocar as coisas em possíveis novos lugares.
Rappin' capta o público miscigenado, que harmoniza uma classe média local com garotos negros de uniforme hip-hop, e manda ver no discurso, enquanto a banda ergue uma zona franca sonora de rap, MPB, ponto de Xangô, samba e batuque escravo: "É, preto e branco lado a lado... É assim que tem que ser". Como cantava Itamar Assumpção, o lado leste da cidade também é santuário.