segunda-feira, dezembro 12, 2005

o ioiô de iaiá

são de ler de olhos esbugalhados as cartas de amor enviadas por carmen miranda a um namorado casual nos idos de 1945, de que ruy castro reproduz trechos em "carmen - uma biografia", recém-arremessada nas livrarias.

carmen então já começava a descender nos cartazes cinematográficos de hollywood, onde morava e trabalhava (feito uma escrava branca) desde 1939. o mancebo a quem se destinavam as declarações era um tenente-aviador brasileiro que andara de passagem pelos e.e.u.u. - vieram dar no brasil, as cartas derramadas pela mulher que já acumulava, naquela ocasião, 36 anos de vida.

coloque reparo, dona moça, por favor, na névoa de infantilismo retardatário que vinha junto com o bafo do uso abusivo/abusado/abusador dos diminutivos na retórica da pequena notável.

ponha tento, seu moço, por favor, na identidade fraturada, triturada e esfrangalhada que a pequena notável deixava o namorico entrever no pandemônio de um intercâmbio feérico (como adjetivaria o biógrafo) de pronomes "ela", "ele", "você", "meu", "minha", "seu" & que tais, que pulavam fora do papel feito pipoca em chapa quente.

abram-se todos os olhos, pore favor, para a bruta confusão, ali delineada de raspão, entre amor e dinheiro ("dinheiro", o apelido mais precário da palavra "amor") pela iaiá de ioiô, pelo ioiô de iaiá.

vem, carmen:

"querido, já fazem uns bons sete anos que não pego numa pena para escrever uma cartinha de amor. talvez porque tenha andado muito ocupada com minha vida, ou talvez o 'tal' que merecesse a carta não tivesse aparecido.

mas você chegou com essa carinha muito safadinha, me pegou distraída descansando, precisando de amor e, já sabe, abusou da situação e instalou-se confortavelmente dentro delinha e pronto... cá está ela bancando a garota de colégio de quinze anos, boba e enrabichada.

faço questão, querido, que ele saiba que o mês que ela passou com ele foi o mais gostoso, o 'mais feliz' durante os seis anos que ela está na américa. como você encheu a vidinha dela, querido, completamente. não faltou nadinha, ficou estourando de cheinha, meu amor.

tudo é tão gostoso com ele, querido, ela se sente uma completa garota, louquinha, sabe? uma garota muito safadinha que topa todas as loucurinhas que ele qué. 'xi, que vergonha!', mas é tudo tão gostoso com ele, tão diferente, queridinho meu.

ela adora ele, qué ele todinhozinho para ela se diverti, meu amor. e como ela se divertiria com ele, querido, nem queira sabê.

mas também brigaria com ele 'pra caralho'. bem, só de vez em quando.

sabe por quê, querido? porque ela tem muito 'ciuminho' dele! porque ele é muito safadinho e ela 'tacaria o braço' nele muitas vezes, quando ele fizesse alguma sacanagenzinha com ela, sabe? (...)

e os dez dias na minha casinha, que dias, meu amor, como maridinho e mulherzinha; o nosso cafezinho de manhã; o jantarzinho juntinhos e as noitinhas quando ele ficava esperando elazinha no quartinho de camisinha preta e levantava as cobertinhas, ela estava dentro dos lençoizinhos e ele beijava ela muito, com muito amor, e às vezes deitava a cabecinha nos peitinhos dela bem gordinhos, lembra? (...)

que coisa doidinha, meu amozinzinzinzim, eu te quero muito muito, sabe? (...)

meu maridinhozinho, estou escrevendo pa ele olhando o retratinho dele, que ela trouxe com ela, que ela adora, com aquela carinha safadinha que ela acha um amor, e aquela boquinha que ela daria neste momento não sei o quê para beijar ela muito muito muito.

querido, poderia seguir escrevendo a ele toda noite, pois adoro conversar com ele. mas ela precisa mimi.

e por falar em 'mimizinho', como vai a sua lingüinha que ela adora? e que é uma coisinha louquinha? bem, eu vou lhe fazer uma 'proposta': cem dólares cada mimizinha. com uma por noite o sr. farzia a sua féria e ganhava mais do que o van johnson. que tal? (...)

meu amorzinzinzinho queridinho dela gostosinho, escreve, querido, escreve muito. convence a elinha que ele ainda quer muito bem a ela. (...)

da sua rolinha.

essa cartinha, querido, quem escreveu foi a sua garotinha que você deixou na américa, querido, em hollywood, a sua garotinha safadinha.

qualquer dia o senhor receberá uma da sua mulherzinha, da sua amantezinha, mas eu tenho as minhas desconfianças que ele topa mais a garotinha".

dos pronomes todos, "eu" é o único que carmen não usou nenhuma vez, pelo menos não nos trechos que o ruy transcreveu às páginas 399 e 400. até ali, o biógrafo parecia dedicar todo seu esforço para fingir que acredita que a biografada era uma fortaleza sem conflitos nem nuances (ou seja, para simular que a defende e a respeita?...). e é só ali, nos trechos transcritos e na análise acurada que castro faz sobre aquela miranda das cartinhas, que se começa a entender minimamente quem é que ela era, de que é que ela sofria, o que é que a (não) baiana (não) tinha.

é triste à beça, dá vontade de chorar (e mais apego ainda pela pequena notável, sim, é claro) - mas é melhor nos sabermos do que não nos sabermos, não?