sexta-feira, fevereiro 17, 2006

a música fora do eixo

vamos inverter um pouco a ordem e mudar um tanto o eixo, para falar um minuto sobre hoje, mais que sobre ontem e amanhã?

minha reportagem na "carta capital" 380, de 15 de fevereiro de 2006.


A MÚSICA FORA DO EIXO
Novas tecnologias turbinam um imenso mercado informal à margem do império das gravadoras e da mídia. um caldeirão cultural que mistura tradição e futurismo

Por Pedro Alexandre Sanches

Quem pensa que conhece bem a música brasileira precisa reavaliar suas certezas neste início de século XXI. Basta deixar de lado por um momento o que está nas lojas, no rádio e na tevê e ouvir um pouco dos sons e das histórias vindas das periferias (geográficas e econômicas) do Brasil para perceber que algo novo está em curso.

Os novos paradigmas parecem se concentrar e se encontrar todos no extremo norte do País, na pujante cena musical de Belém do Pará. Assim o antropólogo Hermano Vianna descreveu o ambiente das "festas de aparelhagem" que forjaram o gênero "tecnobrega", uma convergência mestiça de ritmos brasileiros e caribenhos, música tradicional, "cafona" e eletrônica, romantismo de Roberto Carlos e tecnologia de DJs: "Quando as novidades são apresentadas, os fãs-clubes das aparelhagens vão ao delírio, com braços para cima, como se estivessem saudando a aparição de uma divindade, o totem da tribo eletrônica da periferia de Belém".

É a periferia da periferia que se move ali. Todo um mercado informal se desenvolve sem freios a partir dos bailes de aparelhagem, de artistas pobres que manipulam música em computadores caseiros e de camelôs que espalham a caudalosa produção em CDs de MP3 em que cabem centenas de músicas.

Cenas semelhantes se reproduzem nas periferias de cada Estado.

Nas ruas de Salvador (BA), meninos pobres vendem, por R$ 5 cada, discos de rap, música eletrônica, percussão afrobaiana e canções infantis fabricados por eles próprios num projeto coletivo chamado Eletrocooperativa. Com sede no Pelourinho, a instituição é um projeto artístico-educacional: para aprender a manipular tecnologia, usar computadores e produzir música, 50 dos 307 jovens atualmente atendidos ganham carteira assinada, vale-transporte e alimentação, cesta básica etc. O único pré-requisito é estar cursando ou ter concluído o segundo grau.

Em Cuiabá (MT), 12 jovens cidadãos se uniram na criação do Espaço Cubo, uma central autônoma que organiza, entre outros empreendimentos, a cooperativa de músicos Volume, o selo Cubo Discos, os festivais de música Calango e Grito Rock, o Estúdio Cubo de gravações e ensaios, a Agência Cubo de Bandas e ações educativas diretas em escolas públicas locais.

Durante a edição mais recente do festival Goiânia Noise, em dezembro passado, a capital de Goiás testemunhou não apenas shows de rock pesado, mas também a fundação da Associação Brasileira dos Festivais Independentes (Abrafin), congregando produtores de festivais de estilos musicais diversos de vários Estados periféricos do País.

Na mesma ocasião, foram lançadas também as diretrizes de criação do Circuito Fora do Eixo, com portal na Internet, programas de rádio, distribuidora de discos etc. Nas palavras de um dos participantes, Pablo Capilé (que também integra o Espaço Cubo), "englobará os estados historicamente alijados das benesses estruturais do eixo Rio-São Paulo, incluindo, no primeiro momento, Acre, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Sergipe".

Também em dezembro, acontecia em Salvador a sexta edição do Mercado Cultural da Bahia, misto de feira cultural e festival cuja parte musical agrupou dezenas de artistas dos mais diversos estados do País (inclusive Rio e São Paulo), da América Latina e até da Escandinávia. Todos pertencem às delimitações habituais da dita música de qualidade. Nenhum deles porta vínculos com as outrora hegemônicas gravadoras multinacionais.

São apenas algumas das inúmeras demonstrações de que um outro Brasil musical se desenrola para além dos limites habitualmente cobertos pela mídia que orbita no eixo Rio-SP. Esse outro Brasil é em tudo diferente do cenário pintado nos últimos anos pelas grandes gravadoras de discos, que repetidas vezes previram "a morte da música", caso não fossem contidos o avanço da pirataria e os usos e abusos da tecnologia. Enquanto assim se posicionavam, a música contornava previsões e ameaças para se fazer mais viva que nunca, em cada canto do País.

A informalidade ainda é uma das marcas de fogo do novo momento, mas parece já ficar para trás o embate simbólico que caracterizou a fase anterior, de gravadoras e músicos "honestos" de um lado, piratas "criminosos" de outro. É uma das características da cena paraense, segundo Vladimir Cunha, que prepara o documentário Brega S/A, em busca de destrinchar as transformações por que passa a cadeia produtiva local de música.

"Nem se pode falar em pirataria, porque não há ninguém ali recolhendo imposto ou direito autoral. É um marcado informal, efêmero, sem regras. Os artistas são muito pobres, mas com R$ 50 gravam uma música. A maioria das pessoas nem vive de música: trabalha no comércio de dia e canta à noite. Transitam entre o estrelato e a pobreza", avalia.

Cunha segue a rota informal do sucesso: "Belém é isolada do Brasil, mas fez uma relação forte com a tecnologia. O tecnobrega é todo digital, não existem mais gravadoras nem estúdios. É tudo feito no fundo do quintal. O atravessador do pirata passa de casa apanhando os MP3 que o camelô vai vender. Se a música ficar popular no camelô, será tocada no baile e renderá mais shows para o artista. Na festa, ele manda abraço para a galera do bairro, o show é gravado na hora e na saída já está à venda. O cara compra porque foi citado".

Caem em desuso esquemas tradicionais de jabaculê (o suborno entre gravadoras e mídia que infla artificialmente a execução radiofônica e televisiva de "sucessos" populares), segundo ele. "O camelô não cobra jabá, na aparelhagem não se paga para tocar. Não interessa para eles se o Zezé di Camargo está perdendo dinheiro, porque não se trata de pirataria."

A informalidade avança e toca no sistema oficial: o produtor Beto Metralha, residente do bairro periférico de Jurunas, é um dos que gravam sozinhos, em esquema 100% caseiro, programas de rádio e tevê que divulgarão o tecnobrega nas repetidoras locais de estações nacionais como a Rede TV! e mesmo a Cultura, antes refratária à música que não corresponde a padrões estabelecidos de qualidade.

Dessa mesma cena brotou o grupo que é o atual recordista em shows e discos vendidos (5 milhões, em seis anos de existência) e, por isso, furou a própria invisibilidade na mídia e já passeia com desenvoltura pelos programas dominicais da tevê aberta nacional. A Banda Calypso abandonou a informalidade e desfruta de estrutura profissional, com produtora e gravadora próprias, sediadas em Recife (PE).

A imagem de informalidade e independência que há anos floresce nos morros do Rio (com o funk carioca) e na periferia paulistana (o hip hop) apresenta Belém como um terceiro pólo, mas se esparrama pelo País, com o forró amazonense e cearense, o lambadão mato-grossense, a tchê music gaúcha, o arrocha baiano e assim por diante. Todas agregam uso universal da tecnologia com saberes musicais locais e formam uma rede espontânea que circula de periferia em periferia.

Se nessas cenas ainda prevalecem a informalidade e os subempregos, o processo de profissionalização também se acelera Brasil afora.

É o que ocorre na Eletrocooperativa baiana, que lançou no final do ano uma série de CDs autoproduzidos pelos alunos, dispersos entre hip hop com acento local (Afrogueto, Império Negro) e ritmos locais entremeados com recursos eletrônicos (os discos Caçuá Eletrônico, Eletropercusiva e O Folclore – A Alma dos Povos), entre outras fusões.

O CD coletivo Eletro Erê, por exemplo, reveste cantigas de roda como Boi da Cara Preta e Se Essa Rua Fosse Minha com percussão baiana e rap. "A intenção é tirar um pouco a sexualidade de pauta da criançada. O universo lúdico está esquecido nas festas infantis, é só boquinha de garrafa, festa no apê", justifica o baiano Reinaldo Pamponet, um dos criadores da Eletrocooperativa.

Uma das âncoras do projeto é o apoio psicológico aos jovens ali atendidos. "Ensinamos música e tratamos de temas transversais como drogas, violência, sexualidade, paternidade responsável, o valor do dinheiro, cidadania. A idéia é que, quando chegarem ao mercado de trabalho, eles tenham vivido sempre no coletivo. Alguns reagem ao acompanhamento psicológico, dizem 'eu não sou maluco', mas quem quiser continuar vai ter que se analisar, sim".

Outra experiência de organização é a do Espaço Cubo, de Cuiabá, que chega à sofisticação de ter cunhado uma moeda própria, o Cubo Card. Pablo Capilé explica: "É um sistema de créditos que auxilia na profissionalização dos artistas e nas inter-relações entre o instituto e a classe, uma moeda de troca de prestação de serviços. Por exemplo, a banda toca em uma produção da Cubo Eventos e recebe 300 Cubo Cards. Cada um equivale a R$ 1,50, e ela pode trocar esses créditos por ensaios, gravações, assessoria de imprensa, locação de equipamentos etc.".

O grupo parece se profissionalizar e se politizar ao mesmo tempo, mantendo contato constante com poderes locais e federal. "É nossa obrigação nos organizarmos. A verba para cultura é de todos e para todos. Temos que acabar com os 'carlismos', 'caetanismos' e 'barretismos' a que somos submetidos. Não podemos ficar só apresentando projetos e esperando a aprovação, temos que nos mobilizar", discursa Capilé.

Caso equivalente é o dos produtores de festivais Brasil afora que passaram a se reunir e a se organizar em classe, sobrepujando até questões estéticas e de rivalidade entre subgêneros musicais.

Os associados de primeira hora vêm de festivais de rock pauleira a música eletrônica. Vão da surf music do Primeiro Campeonato Mineiro de Surf ao evento de discussões conceituais e tecnológicas Porto Livre, do grupo pernambucano que coordena desde 1993 o Abril pro Rock. Passam por Natal (Festival do Sol), Uberlândia (Jambolada), Brasília (Senhor Festival) etc.

"Percebemos que era preciso encontrar um jeito de nos fortalecer em conjunto, em vez de ficar chorando as pitangas uns para os outros", sintetiza um dos pilotos da Abrafin, Fabrício Nobre, dos festivais goianos de rock Bananada e Goiânia Noise e da gravadora independente Monstro.

Após revelar a cena mangue bit pernambucana e vários outros brasis para o Brasil, o Abril pro Rock vai um passo além na profissionalização e luta por se internacionalizar. Seu organizador, Paulo André Pires, se desdobra também no agenciamento internacional de carreiras artísticas como as da Nação Zumbi e do DJ Dolores.

"É difícil sobreviver somente aqui, ouvindo patrocinador pedir para incluir o Capital Inicial. Não investimos em trazer atriz e ator da Globo para dar pinta, se estivéssemos nessa de dinheiro já teríamos saído fora há muito tempo", justifica Pires.

Outro formato que se divide entre dialogar com a terra natal e com mercados exteriores também periféricos é o Mercado Cultural da Bahia, definido pelo diretor Ruy Cezar como uma iniciativa para fomentar um mercado de música de qualidade, algo "que a grande indústria não promove" – e que nessa sexta edição reuniu 600 artistas e 800 especialistas de cultura de vários países.

O curador musical é Benjamin Taubkin, que vem de outra iniciativa descentralizadora, a do projeto Rumos, do Itaú Cultural. Uma das chaves do projeto, segundo ele, se concentra nos debates, para os quais procura adotar o seguinte norte: "A gente não faz seminário de lamentação. Tem problemas? OK, como é que se contornam os problemas? Um péssimo vício nosso é essa idéia de que precisamos salvar o Brasil, mas quem salva sou eu, não você. Uma andorinha não faz verão, a cultura se modifica por vários".

"Achei que o papel fosse buscar a diversidade musical das várias regiões do Brasil. O que queremos é que cada trabalho selecionado tenha ligação com sua origem. Pode ser rock, rap ou música eletrônica, desde que tenha um pé na sua região", completa Taubkin, ele próprio ancorado na tradição da música instrumental.

De tal conceituação surge um festival que, embora mais dedicado à comunidade cultural que ao público consumidor, estabelece parâmetros aos quais o Brasil só agora começa a se acostumar. Na volumosa programação, convivem pacificamente gêneros e artistas os mais diversos. Eis alguns exemplos díspares, testemunhados em dezembro por CartaCapital:

O poeta, cordelista, repentista e cantador Bule Bule, de Feira de Santana (BA), apresentava seu samba de roda mais rural que urbano, sem entrar em contradição com o discurso sócio-político do grupo de hip hop Faces do Subúrbio, de Recife (PE). O Trio Manari, do Pará, extraía jazz e sambão de reco-recos indígenas gigantes, enquanto os rapazes do Naurêa despejavam em ritmo de "forrock" os lemas "como é bom ser brasileiro" e "como é bom ser sergipano".

No Teatro Castro Alves, Vitor Ramil evocava a melancolia, o frio e as milongas do Rio Grande do Sul; em praça aberta, o grupo Lado 2 Estéreo, do Piauí, exibia um híbrido de drum’n’bass, "samba black power" e rock militante anti-discriminação racial e social. No palco, Josh, do Lado B Estéreo, provocava os anfitriões: "Mandaram eu colocar a camiseta de volta, porque aqui é a Bahia. Tirei porque lembrei que aqui é a terra de Carla Perez".

Josh tenta resumir o ambiente em que virou artista: "Teresina é uma cidade que vive sob o padrão Globo de sucesso. Não fazemos parte de nenhuma cena que temos que seguir. Uma vantagem que no início era dificuldade é a gente ser de uma cidade improvável. É um estranhamento".

O Brasil musical que resulta dessas tantas imagens díspares é complexo, diversificado e em nada uniforme como faziam supor, ao longo dos anos 90, gravadoras e mídia. Dilui monoculturas como as de axé music, pagode urbano e canção sertaneja, assimilando-as e as revestindo de diversidade que antes não possuíam.

No pólo Norte, por exemplo, Daniel Zen, organizador do festival Varadouro, manda notícias sobre a nova música do Acre: "A contradição/fusão entre urbano e florestal, típica das cidades amazônicas, constitui a poética de boa parte das bandas daqui, o que demonstra uma identidade local, que reúne essa contradição urbana/florestal".

No pólo Sul, Marcelo Domingues, do DemoSul, dá informações diversas, mas semelhantes, sobre Londrina (PR): "Hoje, há cerca de 80 bandas em atividade na cidade, variando entre o rock, o pop e a MPB. São lançados de 15 a 20 CDs por ano, alguns pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura e outros por iniciativa independente de selos como Lab Records, que era direcionado apenas a punk e hardcore e agora começará a lançar outros estilos".

De volta ao Pará, Vladimir Cunha ensaia a síntese entre tantas possibilidades díspares, defendendo ao mesmo tempo a qualidade popular do tecnobrega e novos diferenciais estabelecidos por bandas de rock como La Pupuña e Suzana Flag, que adotaram o português e as referências musicais locais lado a lado com fascínio "universal" pelo pop-rock anglo-americano.

"São alunos de música e chamam artistas do tecnobrega para tocar com eles, chancelando-os não mais como paródia. São formados em música e se aproximam da periferia para começar a entender o lugar em que vivem", afirma, consciente de que Belém não quer ser Londres, Hollywood, a Rede Globo ou São Paulo. Belém quer ser Belém – e isso talvez comece a se estender a cada cidade do Brasil.


NA ERA DAS GRAVADORAS DE ESQUINA
"A indústria fonográfica tradicional perdeu conexão com o gosto popular", avalia o antropólogo Hermano Vianna

Uma das figuras estratégicas no acompanhamento da descentralização que vive a música brasileira é o antropólogo Hermano Vianna, que co-dirigiu com o produtor Beto Villares o projeto Música do Brasil, uma espécie de atualização das expedições de Mário de Andrade (1893-1945) rumo às musicalidades do Brasil profundo.

Vianna cultiva ramificações íntimas com a cultura oficial: é próximo tanto de Caetano Veloso, quanto da Globo, quanto do ultracomercial Tim Festival, quanto do Ministério da Cultura de Gilberto Gil. Mas também atua como um ideólogo do outro lado da moeda, como mostra na entrevista a seguir.

CartaCapital: A música do Brasil não precisa mais de gravadora, tevê em rede nacional, rádio, jornal e revista?

Hermano Vianna: A música mais popular no Brasil não precisa mais de nada disso. O pessoal se cansou de esperar oportunidade, de reclamar da falta de espaço e atenção das gravadoras. Partiram para a ação, aproveitando o desenvolvimento tecnológico que tornou fácil e barato que qualquer banda produza seus discos. Onde há um computador com gravador de CD, há uma gravadora. Então, há gravadoras em praticamente todas as favelas brasileiras. Quase todas as favelas agora têm lan houses, já reparou?

O sucesso da Banda Calypso não foi produzido por gravadoras, e só quando já haviam sido vendidos milhões de CDs nos camelódromos as rádios e tevês passaram a tocar. Todas as bandas do forró eletrônico cearense já produziram DVDs, inventando uma nova indústria audiovisual que não depende de Lei Rouanet, mas abastece os bares de periferia. O lambadão cuiabano e a tchê music gaúcha inventaram suas economias paralelas, que só são paralelas do ponto de vista da grande mídia.

Quando leio as estatísticas de queda da indústria fonográfica, fico surpreso. Todas essas bandas fora da indústria vendem muito, os shows estão lotados por multidões, mesmo nas regiões mais pobres. Foi a indústria fonográfica tradicional que perdeu conexão com o gosto popular. Nos camelôs de Belém, toda semana há lançamentos novos de tecnobrega, com as músicas que estouraram no último domingo nas festas da periferia paraense. A indústria fonográfica não tem essa agilidade.

CC: A música brasileira vive um processo de descentralização?

HV: A descentralização é inegável. Não aconteceu por projeto político, até porque a maior parte dos movimentos políticos "conscientes" despreza essas músicas, condenando-as como alienadas ou lixo cultural. Mas aconteceu, em todos os lugares ao mesmo tempo. As gravadoras lançam quantos artistas por ano? E quanta gente faz música pelo Brasil? É uma multidão que fica de fora. A multidão resolveu lançar seus discos. Não é mais um movimento centralizado no Rio e em São Paulo. Cada cena desenvolveu modelos diferentes, adaptados à realidade local. São maneiras experimentais de produzir, divulgar e ganhar dinheiro com música. E as periferias se comunicam entre elas, sem depender de Rio e São Paulo. Já há uma rede nacional de comunicação paralela, que não é mais centralizada.

CC: Onde você colocaria, nesse tabuleiro, a produção musical dita intelectualizada?

HV: Acho que é mais dependente do esquema antigo. Ainda fica esperando que uma grande gravadora venha salvá-la. Acreditamos que a música boa é produzida por artistas geniais, por criadores privilegiados, não é? Eles são admirados como pessoas superiores. Suas criações devem ser protegidas e perpetuadas como se fossem de vidro frágil, como se tudo conspirasse contra elas. Essa concepção de arte é recente, apareceu com o Romantismo europeu. Antes música era uma produção coletiva, sem "autores" e "direitos autorais". Isso continua a acontecer na maior parte das festas populares brasileiras. As pessoas ali têm uma relação diferente com a música: tudo é brincadeira de todos. Ninguém está ali para reverenciar quem está no palco. Quem está no palco é igual a quem está na platéia.

CC: A cisão entre centro e periferia na música, que você tem descrito, é irremediável? Como se poderiam reconciliar essas duas pontas que não se compreendem uma à outra?

HV: Uso as palavras centro e periferia como provocação. São muito carregadas, muitos grupos diferentes acham que são donos delas. Gosto de bagunçar o coreto dessas fronteiras: tudo que acontece de interessante passa sempre de um lado para o outro. Se não fosse a indústria de informática do centro do império norte-americano, nenhuma dessas novas músicas periféricas existiria. O mundo é felizmente mais complexo do que um jogo com dois lados. Há muitos lados. Sempre gostei de mediação.