quarta-feira, março 08, 2006

o rei do norte

uma leva estonteante de filmes políticos disputou primazias universais outro dia ali na esquina norte-americana, na noite caretíssima do oscar. alguns filmes políticos ganharam mais prêmios, outros filmes políticos ganharam menos prêmios. filmes políticos "favoritos" perderam para filmes políticos "azarões". em comum: era uma leva estonteante de filmes políticos. ali em hollywood, capital mundial da ilusão.

lula está na inglaterra, recebendo rapapés da rainha, do primeiro-ministro e do resto da corte secular. em discurso lado a lado com a rainha, lula fez charminho apolítico (será?) sobre a rivalidade futebolística entre a inglaterra e o brasil. a rainha velhinha abriu um sorrisão.

marisa monte está lançando dois novos discos no brasil, leia por estes dias em todo lugar que seja feito de papel e de tinta, ou de imagem e de câmera, ou em som de ondas curtas, médias e longas, até mesmo na tinta invisível de sites, blogs & portais da esperança. um dos discos de marisa monte é de samba, mas um disco de samba à la marisa monte, um disco de samba elaborado no feminino. o outro é um disco tribalista, mas de um tribalismo em que os desejos da menina tribalista pede primazia aos humores dos meninos tribalistas (alô, arnaldo, carlinhos, e zé).

a) "brokeback mountain", filme de ponto de vista essencialmente masculino, perdeu o oscar. mas "brokeback mountain" venceu o oscar, tá na cara, tá na cura. b) "paradise now", filme de ponto de vista essencialmente palestino, perdeu o oscar. mas, só pelo fato de existir e de existir na américa do norte e de concorrer ao oscar, "paradise now" venceu mais que uns 500 oscars. c) "terra fria", filme de ponto de vista essencialmente feminino, mal concorreu ao oscar. mas "terra fria" venceu todos os oscars da invisibilidade, a ponto de se tornar visível, quase visível, especialmente visível, 100% visível.

o lula que a (rainha da uva da) inglaterra está vendo é o lula que o brasil não viu, não quer ver e tem raiva de quem viu - vovô não vê a uva, a menos que alguém esfregue o cacho inteiro, "ploch", na testa sorvetona. aqui, não, nada de uva nem de vinho - por enquanto, só se disse que "lula atrasou um minuto [um minuto!!!!!!! cortem-lhe a cabeça!!!!!!!, disse a rainha de copas!!!] para encontrar a rainha", que "a rainha não pediu desculpas" [a rainha nunca pede desculpas, estúpidos; quem pede desculpa é operário - e não adianta pedir, porque a rainha não desculpa], que blá, blá, blá, blá... ou seja, o supra-sumo do sensacionalismo abaixo da linha da cintura (no saco, para ser mais seco) e da futilidade supra-intelectual; a prova (será?) de que santo de casa não faz milagre nem mesmo no terreiro macumbeiro do quintal cheio de livros da supra-intelectualidade verde-amarela-azul-anil-cor-de-rosa-e-carvão moreninha-com-um-pezinho-na-cozinha (mas só um pezinho, porque se encostar suja demais o tornozelinho da rainhazinha dos balangandãs, sabe?).

a praia de copacabana já se recuperou da pisada de elefante (alô, mogli!) dos rolling "god save the queen" stones, esses verdadeiros sex pistols, los pirata das duas pernas-de-pau e olho-de-vidro e a cara de waaaal. amnésico, memento, o brasil já quase se esqueceu de que bono existiu um dia, de que katilce existiu um dia, de que bono & katilce viveram romance efêmero e trágico de romeu & julieta, de leo di caprio kate winslet (& um titanic por detrás, no local ora ocupado por uma brokeback mountain).

e lula distende ao máximo sua estada na inglaterra, enquanto o cigano jk posa de estadista na tela da globo, bush se encolhe oprimido pelas brokebacks do sul da américa do norte e tucanos paulistocariocas se engalfinham entre esgares e sorrisos amarelos sob a cova do covas. (você já assistiu "syriana"?)

na "carta capital" desta semana, você não vai ler nada sobre marisa monte, embora este servo continue ouvindo repetidas vezes os dois cds da garota carioca do barulhinho-bom-suingue-sangue-bom, e embora este serviçal já tenha tido até a oportunidade de uma hora simpaticíssima de entrevista telefônica com a mais bem-sucedida artista brasileira de música de menos de 40 anos de idade. não, vamos esperar um pouquinho, não é mesmo? antes a "carta capital" deve tratar de um outro artista de música (& outras coisas) cuja obra, como a de marisa, dá piruetas tão malucas pelo mundo quanto, por exemplo, as de ang lee, um cineasta que veio de taiwan para ganhar o prêmio de melhor diretor norte-americano por um filme de caubóis que, segundo a indústria transatlântica-titanic-hollywood, não era o melhor filme norte-americano do ano.

não, por favor, pare agora, espere o silêncio de um minuto. por enquanto, "carta capital" e este mordomo se contentam em assistir, contemplar, ouvir, esperar, ruminar, digerir, assimilar. só para não formar vácuo, enquanto "todo o planeta" estiver falando sobre marisa monte (e não sobre marisa letícia, porque essa não é assim tão amiga das rainhas), a gente dá uma breve desviada, sai um minuto pela tangente, pela direita, à la pantera-cor-de-rosa. e com vocês [ruge o leão da metro], para "matar" o tempo, um artigo publicado originalmente na revista "bravo" 99, de dezembro de 2005, que ensaia também pulular entre o brasil tropical (sul moreno de luiz gonzaga) e a américa nortista da terra fria das montanhas brokeback (norte pálido de elvis presley), samba do preto-e-branco doido. porque quem é plebeu não perde jamais a majestade, segundo já nos ensina ensandecido este louquíssimo século xxi.

(o louco É a lúcida?)


O rei do norte
Em novo álbum, Stevie Wonder encarna a figura agressiva e sorridente dos Estados Unidos e evidencia que Roberto Carlos é seu "duplo" ao sul da América

Por Pedro Alexandre Sanches

Se pegada pop e prestígio são valores que dificilmente conseguem se ajustar num mesmo compartimento, então Stevie Wonder é o nome da contradição. Mais um atestado de que pode haver atração entre tais pólos opostos se encontra na volta de um dos formuladores do modelo Motown de pop (negro, suingado, sensual) aos ambientes de gravação, após dez anos de afastamento. A ficha técnica do recente álbum A Time to Love (Universal, 2005) é o recibo. Aconchegam-se no nicho morno de Wonder artistas tão díspares como o jazzista Hubert Laws, o ex-Beatle Paul McCartney, o bossa-novista brasileiro Oscar Castro Neves, o funkeiro Prince, a radiofônica India.Arie... Todos no mesmo espaço, proclamando que o popularíssimo Stevie, arranjador e instrumentista soberbo, goza, sim, de respeito em diferentes searas musicais. Forjador de obviedades pop irresistíveis, Wonder tem inspirado meninos-prodígios e divas do soul, rappers enfezados e "boys bands" comportadas na busca da pedra filosofal do sucesso e da fortuna.

Atadas todas as pontas, Stevie Wonder se mantém, aos 55 anos de vida e 44 de carreira, como uma representação viva do povo e da nação em que foi cultivado, os Estados Unidos da América. É ao mesmo tempo vulgar e sofisticado, refinado e diluído, datado e perene.

Cego dos olhos, mas vidente de tudo mais, caminha de pés descalços sobre brasa acesa, lado a lado com outros reis plebeus de seu país, do branco Elvis Presley e do negro (e cego) Ray Charles ao preto-e-branco Michael Jackson. Na volta, até colhe uma ou outra reação zombeteira, mas em geral é agraciado com a reverência que a majestade de clássicos pop-eruditos como Talking Book (1972) e Songs in the Key of Life (1976) promulgaram.

A nós, do sul da América, sua volta faz sobrevoar também o paralelo possível com nossos próprios reis de papelão. O duplo brasileiro de Wonder, por mais de uma razão, chama-se Roberto Carlos.

Sim, pois nosso rei branco-e-preto também nasceu para a música como discípulo tímido do rei Ray Charles e molhou a paixão do iê-iê-iê brasileiro pelos Beatles no caldo nutritivo pagão da Motown e Stax, templos negros reencarnados como fábricas de hits pop.

Assim como Roberto, Stevie sempre investiu na mitificação algo moralista do amor. Jovem, fazia das mágoas de romance e da traição motes proeminentes. Maduro, ocupa dois terços de A Time to Love para idealizar a felicidade, edulcorar um mundo cor-de-rosa. "Excesso de sentimentalismo", advertem, comedidos, os críticos de lá, enquanto os detratores de cá julgam insuportável a água açucarada do nosso veterano RC.

Presente em ambos, a religiosidade opera linhas cruzadas: enquanto Roberto se enamorava por Jesus Cristo (1970), Stevie acasalava o soul com fervores gospel em preces terríveis (e maravilhosas) como They Won’t Go When I Go (1974). Um, o de cá, levou a veia religiosa a cumes de fanatismo. Outro, o de lá, reteve-a sob controle.

Se o rei plebeu do Brasil mantém produção compulsiva, o nobre vagabundo dos Estados Unidos foi suavizando a autodiluição sob um espaçamento cada vez maior entre cada obra. O sul se desgasta para que o norte se preserve, ou vice-versa. Talvez por isso SW já cantasse em 1972 que "superstição não é o caminho" e RC esperou os anos 2000 para descobrir que o nome clínico de suas famosas "manias" era transtorno obsessivo-compulsivo.

Um ímã que os atrai e repele é o da articulação sociopolítica. Negro consciente, Stevie abrilhantou sua obra em canções que retratam com crueza 100% melódica a vida no gueto: Big Brother (1972), Village Ghetto Land (1976), It’s Wrong (Apartheid) (1985), etc.

Quanto a Roberto? Bem, pesando na balança que a "wonderland" não teve ditadura e que Stevie nunca colou em si o rótulo de artista "de direita", não deveriam ser subestimadas as tentativas apavoradamente políticas de Todos Estão Surdos, Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, Como Dois e Dois (1971) e, sim, até Jesus Cristo. No balanço dos maniqueísmos, Roberto e seu duplo rebelde Erasmo Carlos eram combatidos como meros e puros alienados, enquanto mr. Stevie, na pior das hipóteses, gozava o status de um politizado hedonista.

Talvez aí morasse a cratera cavada não só entre os dois, mas também entre o norte e o sul: sob o sol da ditadura brasileira, brancos pobres do gueto cantavam o amor para a multidão, sem audácia e/ou vocação pela subversão à ordem; sob a sombra da férrea democracia estadunidense, negros pobres do gueto estavam livres para falar de suas vidas reais em meio ao romantismo açucarado que, dizem, o mercado e a multidão tanto apreciam. Stevie ostentava o orgulho e a autoconfiança de que Roberto só podia desfrutar junto ao povão, à massa tão oprimida e desprezada quanto ele próprio.

E aí chegamos ao espelho, às platéias de cada rei posto e/ou deposto. Nação orgulhosa de si, mesmo sob os fantasmas de Bush e da guerra ao Iraque, os Estados Unidos se permitem a condescendência com seus heróis, num pacto entre supostos "inimigos" que une fãs e críticos, moderados e fundamentalistas.

Aqui, onde a voga é nutrir vergonha pela nação (ou seja, auto-rejeição), as camadas mais críticas e intelectualizadas ensaiam outro tipo de pacto torto, firmado de igual para igual com a faceta opressora de seu maior ídolo popular. Se formos "inteligentes", cultivaremos vergonha, reprovação ou, no mínimo, desprezo por mr. Roberto Carlos, o mais brasileiro de todos os brasileiros. Porque, cego, dócil, submisso e choroso, ele é a representação viva do Brasil, uma lancinante imagem em negativo de Stevie Wonder, esse "cego", ativo, agressivo e sorridente sr. United States.

PEDRO ALEXANDRE SANCHES, repórter e subeditor de cultura da revista CartaCapital, é autor do livro Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004).