terça-feira, abril 04, 2006

fora de (des)ordem

para saber um pouco mais sobre o show-manifesto "fora de ordem", que se materializou na semana passada nos arcos da lapa, no rio de janeiro, entrevistei por telefone o músico erudito eduardo camenietzki, um dos pivôs do atual embate entre artistas de música brasileira e a ordem dos músicos do brasil, a omb [maiores detalhes abaixo, no tópico "a (des)ordem ameaçada"]. a direção "atual" da omb, liderada por wilson sandoli, mantém-se soberana e hegemônica há já mais de 40 anos - coincidência ou não, é o mesmo período de duração da hegemonia da rede globo na lida de construir nossas cabecinhas brasileiras.

mas, ops, o assunto aqui é mais simples. quero, apenas, relatar alguns dos assuntos e idéias que surgiram na conversa com camenietzki. [entre colchetes e em itálico, reflexões posteriores minhas, que não cheguei a expor a ele no calor da hora, e/ou porque, em geral, dadas as convenções & condições "normais de pressão e temperatura, um jornalista jamais se expõe diante de um entrevistado (mas, ei, colega músico!, olha eu aqui!, agora em zona livre de fronteira).]

"é fácil falar do sucesso do evento, todo mundo viu. foi ordenado, profissional. mas houve alguns fracassos também. foi triste, por causa da chuva e do cronograma atrasado alguns músicos não puderam tocar, como pascoal meirelles, nivaldo ornelas, lúcia turnbull", contou ele, dosando sucesso & fracasso, a alegria pelo objetivo cumprido & suas máculas. [as máculas matam os êxitos?]

"parecia filme de semana santa, depois de muita chuva o céu se abriu bem na hora do show", consolou-se dos fracassos. [o imaginário cristão & suas culpas inerentes sempre nos perseguem, especialmente quando supomos estar fazendo algo grande & importante?]

sobre a cobertura da imprensa no dia seguinte, queixou-se do uso indiscriminado do trocadilho "luta de classe". "'luta de classe' lembra conceitos marxistas, não foi assim que começamos isso. não é à toa que temos ao mesmo tempo o apoio do ministro da cultura, gilberto gil, e do prefeito do rio, cesar maia, do pfl. muitas vezes, o jornalista precisa atuar como um condutor de novela da globo, criando heróis & vilões", criticou com gentileza o lado de cá do front. [e a "luta de classe" no jornalismo, a quantas anda? o roteiro de novela da globo prevê papel coadjuvante ou figurante para jornalistas?] e tentou sintetizar, colocando a galera toda na roda: "não é isso, o que estamos discutindo é o cartorialismo das instituições, que é uma praga, uma doença que pode acontecer em sindicato de patrões ou em sindicato de trabalhadores".

"eles [os 'gestores' da omb] não estão sozinhos. eles estão articulados, infelizmente", lamentou. [infelizmente, só ouço críticas & reprovações à omb, quando entrevisto músicos & músicos & músicos. onde se escondem os apoiadores da omb? quem são eles? por que não ousam dizer seus nomes?]

"sim" à crítica gentil, "sim" também à autocrítica maleável, ei-lo abraçando a causa: "em geral, nós [os músicos] vamos aos palanques dos políticos e esquecemos a democracia no nosso próprio metier. chico buarque [em depoimento virtual no telão] lembrou que em 40 anos esteve em muitas lutas, disse que em 40 anos nunca viu a omb presente em nenhuma manifestação pró-música. esse é um dos problemas da omb, ficam só naquele paternalismo de passar talquinho". [pois é, quais mais profissões se empenharam nas denúncias & lutas políticas gerais do "brasil grande" e se esqueceram de carpir seu próprio quintalzinho? os jornalistas, será? e os advogados da oab, que andam instrumentalizando o caseiro francenildo como um autêntico herói macunaímico, esses manjam de autocrítica? e a sua própria profissão, a quantas anda, camarada?]

"[os gestores da omb] são ilustres, ricos, convivas do poder. e se referem aos músicos que comandam como 'cabelinho', 'bombinha'. o 'cabelinho' não pode ser tratado assim. é como disse zélia duncan no show, não é porque nós estamos sob os holofotes que nós não sofremos sob os holofotes", enfileirou, entrelaçando & reatando problemas que são vividos, embora sob diferentes graus de foco, abstração e ocultamento, pelo 'cabelinho', pela zélia duncan e pelo mano caetano poderoso.

sobre os discursos ensaiados sob os arcos da boemia por artistas de diferentes extratos, neste momento ainda incipiente de reorganização, assim refletiu o camenietzki: "alguns dos discursos são ingênuos, sim. mas é porque nós, músicos, não trabalhamos com o ardil, mas com o coração. antigamente o nome disso era 'vagabundo', mas não é vagabundagem, é inteligência emocional" [sob o guarda-chuva da suposta vagabundagem, quanta gente cabe? músicos populares, músicos eruditos, rappers da perifa, artistas em geral, escritores, acadêmicos nos feudos universitários, operários convertidos em políticos, prostitutas, moradores de rua, esquizofrênicos, párias sociais de todas as sortes & azares? se são esses os "vagabundos", quem seria o nobre? o playboy bon vivant? e a dama, quem seria? a rainha da inglaterra? (copyleft alessandra alves)].

imediatamente, camenietzki passou a divagar sobre a atuação política que vem tendo entre os "fora de ordem": "ser roubado do seu tempo de fazer música é como sair da vagabundagem". silêncio. durante um longo silêncio, camenietzki chora [eu não percebo de início, tento entender em silêncio o silêncio dele, reconheço o choro, tenho vontade de chorar também, seguro as pontas do lado de cá, que é (quase) igual ao lado de lá - se a atuação em prol de si próprio sela o rompimento da sensação interna de ser "vagabundo", parece que vivemos um momento ímpar, especial, não?].

ainda emocionado, ele tenta pôr em palavras a comoção que o apanhou: "recebi a encomenda da minha vida do oboísta harold emert, um concerto para oboé e orquestra. esse trabalho está atrasado há meses, simplesmente porque para fazê-lo preciso me dedicar emocionalmente à música, e não tenho conseguido, não consigo". não consegue porque está na rua, lutando, "vagabundando": "precisamos sair de casa para participar politicamente, zélia duncan disse isso também". [zélia duncan É eduardo camenietzki?, o popular É o erudito?, somos todos iguais nesta noite, nesta tarde, nesta manhã, nesta madrugada?]

[ainda entre colchetes, mas ensaiando uma saída do itálico, agora. se posso me atrever a interpretar-interrogar, olhe só como tendo a entender o desabafo do músico que se politizou: chegam justamente ao mesmo tempo, a encomenda da sua vida e a oportunidade de sua vida para participar politicamente de sua própria vida. colocam-se na nossa frente como encruzilhada, dilema, ponto de inflexão. e então, será preciso optar por só uma das "encomendas"? acalentar um lado significará abandonar o outro? mas, ora, não foi isso que fez o sr. wilson sandoli há mais de 40 anos, quando abdicou de uma carreira de músico para se fazer burocrata nos cartórios da ditadura? o músico enrustido forjou o burocrata violento? estará camenietzki chorando pelo medo de vir a ser no futuro um novo dr. sandoli?, ou estará chorando pela sacação de que, faça o que fizer, aceite a(s) encomenda(s) que aceitar, ele não pode e não quer (e não vai?) reproduzir wilson sandoli? há uma nova história começando?, ou vamos nos contentar em repetir ininterruptamente a mesma velha história de sempre, seja sobre alçapão de ditadura ou sobre chão compacto de democracia? chega de interrogações, por um instante: não vamos, não vamos, não vamos!]

camenietzki emerge do choro aguerrido, cortante. "a sociedade precisa dos artistas, não pode maltratá-los através de um burocrata perverso", arremata/arrebata [estaria por acaso depositando na conta/caixa 2 da tal "sociedade" os maus tratos a que se permite a sociedade musical (ou, por favor, substitua "sociedade musical" pela sociedade formada por sua própria profissão, deve dar na mesma), por omissão, medo, ignorância, inércia, cumplicidade? bem, pode até estar ainda repetindo aquele velho hánito, mas faz isso já partindo para a ação, em plena ação, de fora do armário, não mais "protegido" dentro do armário da inação.] "nós alimentamos uma casta de ladrões, uma máfia gigantesca", clica, referindo-se à omb, ou, provavelmente, não apenas à omb [e eis a chave: "nós alimentamos", "nós" alimentamos, nós alimentamos. e depois reclamamos da vida e das injustiças que nos impõem de fora para dentro, nós, ceguetas de "muita" "valentia", feito bebês à espera de talquinho ou passarinhos no ninho chorando pela próxima minhoquinha que virá pela ação magnânima da própria natureza. basta, passarinho quer voar..., as asinhas balançar..., o rabicho remexer...]

já admitindo uma possível candidatura sua para a gestão de uma sonhada nova omb ("a esta altura já estão me candidatando. mas tem que haver alternância de poder. me proponho a ajudar, mas por um tempo"), ataca mais uma vez: "ele [wilson sandoli] odeia a música e odeia os músicos, senão não estaria fazendo nada disso". [atenção, eis aí: se camenietzki estiver certo, quem "cuida" dos músicos é justamente aquele que "odeia a música" e "odeia os músicos". caso profundo e perturbador para se pensar, não? e você, quem "cuida" de você?]

em tempo, sem itálicos nem colchetes: eduardo camenietzki explicou, ao fim da entrevista, que o discurso que fez no "fora de ordem" começava com a seguinte frase: "não verão as minhas lágrimas". "não chorei lá, mas fi chorar aqui", revogou-se ao telefone, falando a um repórter que não vira suas lágrimas, só ouvira, quase as vira. a música brasileira, e não só ela, parece andar novamente à flor da pele. (e quando eu digo "música", quero dizer o ofício que você faz aí no seu cantinho, seja ele qual for, cê tá me entendendo?) isso é prenúncio para uma nova chuva de criatividade caindo logo mais, com a suavidade de um manso tufão, quer apostar? ademais, camenietzki (se) prometeu que, sim, vai consumar a encomenda de sonhos de seu ídolo oboísta - aí está a chave, reaparecendo a todo instante, em todo buraco de fechadura, em cada fresta ensolarada.