segunda-feira, abril 10, 2006

olha a reparação aí!, cê reparou?

bem, pela comichão que se espalha, já compreendi (até que surjam disposições em contrário): um jornalista pode entrar em férias, mas um indivíduo, esse não entra em férias nunca, jamais. dá coceira, fricote, o jornalista hiberna e o indivíduo insiste em continuar existindo...

aí mistura tudo, bagunça, confunde para esclarecer. e o indivíduo fala: "socorro, jornalista!, deixa eu ficar!".

e o jornalista vem em socorro, fazendo retrospectiva 2005/2006 para que o indivíduo não se flagre olhando para o espelho e se lamuriando: "escafedi!".

não, não escafedemos. estamos "pelaí", e também nas bancas, na "carta capital" 388, de 12 de abril de 2006, comentando o estranho encontro entre o mundinho da daslu e o mundão de cidade de deus. vai abaixo a brasiliana sobre o assunto, chamada "nem a bela nem a fera".

aproveitando a deixa, recupero mais abaixo também uma outra brasiliana, da edição 370, de 30 de novembro de 2005, essa chamada "orgulho a rigor". de uma até outra, 18 semanas se passaram, mas você perceberá que o assunto se manteve mais ou menos o mesmo - agora é daslu versus comunidade carente, antes era a população negra brasileira mais a finesse tucanófila da sala são paulo.

as inesperadas (inesperadas? por quem?) convergências parecem ser, de cara, manjadíssimo choque cultural. mas estão longe de ser só isso, são muito mais que mero choque cultural. são índices de tomada de atitude, resgate de consciência, reivindicação de direitos inalienáveis (embora historicamente alienados), tentativas de encontro e diálogo e expiação. é, num só termo, reparação social. é só o começo, muito ainda falta ser (e vai ser) feito. e é o indivíduo quem diz, carregando consigo o jornalista, aonde ele(s) for(em): estamos nesta!


1
Nem a bela nem a fera

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Na introdução do livro Falcão – Meninos do Tráfico, o rapper carioca MV Bill e o empresário dele, Celso Athayde, avisam que, para penetrar no mundo que eles pretendem relatar, temos de nos "despir de todo ódio que nutrimos" e "renunciar ao que nos foi ensinado sobre o Bem e o Mal". É o que tentaremos fazer também nesta noite de quarta-feira 5, a partir do instante em que MV Bill entrar nas instalações suntuosas da Daslu para um debate de lançamento oficial de Falcão na cidade de São Paulo.

O circo eletrônico está armado: parece haver mais jornalistas e fotógrafos que convidados. Entre estes, há bem mais mulheres do que homens. Entre essas, dezenas de "dasluzetes" fazem claque de aplausos para a dona do palacete e conversam à boca miúda enquanto o telão exibe uma versão curta do documentário Falcão, exibido três semanas atrás no Fantástico.

O Bem e o Mal podem estar bem definidos na mente de cada um dos presentes, mas os sustos começam quando os sapatos de bico fino e as roupas quase sempre pretas do imaginário Daslu recebem a visita do rapaz negro vestido de vermelho. Ele lança uma provocação logo de início: "Gostaria de frisar a multirracialidade presente aqui hoje". "Aqui" é a Daslu, branca por fora e por dentro.

O cara a cara é motivo de comoção, a tensão paira no ar. De um lado, está Eliana Tranchesi, a "bela" loira que ciceroneia o luxo paulistano, mas se debate na Justiça contra acusações de fraude fiscal, contrabando, falsidade ideológica, formação de quadrilha. Em sua frente, ergue-se MV Bill, a "fera" negra que luta para converter a sina de pária nascido na Cidade de Deus na figura de cidadão consciente que compõe música, escreve livro, dirige documentário, reivindica justiça social.

Acusações também se amontoam sobre ele: apologia ao crime em videoclipe, porte de arma num festival musical "classe A" promovido por uma marca de cigarro, omissão de socorro a vítimas de seqüestro. Esta última, pós-Fantástico, partiu do jornal carioca O Dia, que se indignou com o relato em livro da presença dos autores num cativeiro. "Em outro capítulo, narramos a morte do Sabugo, um menino que foi assassinado na nossa frente sem que pudéssemos impedir. Por isso não sou acusado. Gostaria ao menos de ser acusado de omissão por todas as mortes que já vi", Bill rebate.

Eliana tenta se encontrar com Bill no discurso de apresentação, em que louva "a preocupação deles de promover o debate em todos os segmentos da sociedade". "Não adianta culpar o governo, ou só uma parte da sociedade. Chega de culpar", pede a empresária, que afirma não ser uma recém-convertida às causas sociais: "Nossos projetos sociais não são coisa nova, a coisa nova é a presença dos jornalistas".

Os jornalistas, nessa noite, parecem sem ação, assim como as socialites, os assessores de imprensa, as funcionárias com uniforme de copeiras que seguram microfones para o debate, os poucos militantes do movimento hip-hop enxertados no templo do luxo. Até que o debate seja entregue à participação do "povo".

Ergue-se uma voz pertencente à tradição do "bem", na figura de Armando Paes, "empresário do ramo de entretenimento". Em tom exaltado, ele afirma que "os daqui também são reféns do tráfico, não são só aqueles meninos", e encerra com pergunta de tom acusatório: "Você teve autorização dos traficantes para filmar?".

"É lógico que sim", responde Bill, que mantém mansas a voz e a expressão. "Se for para colocar culpados, temos que voltar aos que nasceram na África, vieram para cá escravizados e depois de libertados não tiveram direito a nada, até hoje. Esses acabam vendo vocês como algozes, generalizam como vocês também generalizam. Não é pensar nos meninos do tráfico como coitadinhos. Pensar na vida deles é pensar na minha e na de vocês também", inverte.

O outro debatedor, Aliado G, do grupo paulista Faces da Morte, toma a palavra: "A cocaína da favela vem para cá de avião, e ninguém é dono de avião e navio na favela. Podem ter certeza de que pessoas que fazem compra na Daslu também patrocinam isso".
O ambiente fica carregado, o empresário tenta retomar a palavra. Na lateral do saguão, um jovem branco de mochila nas costas começa a bater boca com ele, aponta para o relógio Rolex reluzindo em seu pulso. Consciente do foco de tensão, Bill esfria propositalmente a discussão. O empresário ainda esbraveja, mas sem microfone.

O clima arrefece, mais cadeiras ficam vazias, o assunto deriva. A trégua é curta. Uma mulher branca de porte elegante intervém: "Estamos aqui no templo do consumismo. Eu sou uma das pessoas que participam, mas é preciso que eu diga que isso aqui também é violência. Este lugar, para mim, é de violência. Alguém falou 'nós somos vítimas do tráfico', é preciso que se diga que nós que estamos aqui também somos responsáveis pelo tráfico". Armando Paes retruca do canto, sem microfone: "Eu não sou!".

Ela continua: "O tênis da hora que o menino da favela quer é mostrado na tevê. Ele tem que matar para ter um daquele, e nem é da Daslu. Para ter um tênis da Daslu ele vai ter que matar muito mais gente". O murmúrio desanda em balbúrdia de aplausos, discussões paralelas exaltadas e gritos de protesto.

Depois se descobre que a mulher é a socióloga Lúcia Pinheiro, dirigente da Fundação Projeto Travessia, talvez investida só brevemente do papel de "dasluzete". O depoimento detona outra participação, de Rosana Maria dos Santos, líder comunitária da favela Coliseu, localizada atrás do palácio Daslu. Ao mesmo tempo, Rosana defende Bill e Eliana, principalmente Eliana, que se refere à líder negra como "minha melhor amiga": "Bill e Eliana foram as primeiras pessoas a entrar naquela favela sem seguranças. Eliana me disse que se tivesse que limpar a própria casa, não seria tão limpa quanto a minha". A claque "dasluzete" ovaciona, de uma tacada só, a líder comunitária e a líder palaciana.

Mais uma vez, Bill amaina os ânimos exaltados. Termina aplaudido e vai enfrentar a longa fila de autógrafos que recombina saltos loiros de bico e cabelos negros rastafári.

Ao final, Eliana puxa Bill para uma sessão de fotos posadas no terraço: ele sentado, constrangido, ela atrás, sorridente, envolvendo-lhe os ombros. "Sorriso, Bill!", comanda o fotógrafo. "Tô sorrindo, pô. Este é o meu sorriso."

Para a última viagem de elevador, não restaram mais "dasluzetes" – só Bill e sua equipe de "manos", poucos fotógrafos teimosos. O alívio é geral, quase um "ufa". Fotógrafos sentam-se no sofá (sim, os elevadores da Daslu têm sofás), clicam-se uns aos outros. Um mano provoca MV Bill: "E agora, como você vai explicar tudo isso pros manos?" "Não me bota mais essa culpa, não", ele repete o que já fizera a noite toda.

Diante da porta já fechada da Daslu, CartaCapital faz a última pergunta, antes que Bill parta: como se sentiu fotografando ao lado de Eliana? "É embaraçoso. Eu, que já tenho foto ao lado de bandido, marginal, prostituta, mendigo... Agora uma milionária... Tô fodido", brinca, e embaralha de vez o que conhecíamos como "mal" e "bem".


2
Orgulho a rigor

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

"Ele falou!" A expressão surda de assombro riscou o ar na platéia da Sala São Paulo, enquanto no alto do palco o ator e músico Toni Tornado lutava para dominar o pranto. Tornado acabara de receber um Troféu Raça Negra pelo conjunto de sua obra, que o levara a observar que até então nunca havia recebido um prêmio, em 74 anos de vida, antes de parar, silenciar, começar a chorar, esperar, voltar a falar.

"Todos sabem que trabalho numa emissora eminentemente branca, e que consigo sobreviver no meio disso tudo. Mas vocês não têm idéia do que é ser negro trabalhando naquele lugar", desengasgou. Referia-se à Rede Globo, sem nominá-la, mas dotando de precisa expressividade a expressão "aquele lugar" em que, como afirmou, sempre desempenhou papel de "mordomo, escravo e lixeiro".

Espontaneamente, colocaram-se em pé para ovacioná-lo os cerca de 1.200 presentes em trajes a rigor à solenidade que demarcava também o domingo 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares e Dia da Consciência Negra. Ou melhor, quase todos se puseram de pé: formava-se um bolsão em meio à platéia, de pessoas que se conservavam sentadas e não aplaudiam o desabafo do histórico cantor "black power" de BR-3.

Não eram apenas majoritariamente brancos os poucos que quedaram paralisados. Eram membros ativos da elite política do Brasil, entre eles o governador Geraldo Alckmin, o presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, a ex-prefeita Marta Suplicy e vários integrantes de uma corte tucana que incluía Paulo Renato Souza, José Aristodemo Pinotti, Zulaiê Cobra, Gabriel Chalita.

De bolsão majoritariamente branco eram também os jornalistas de cerca de cem órgãos de imprensa do País que cobriam o evento e se dedicaram, nos dias seguintes, a silenciar sobre o desabafo de Tornado e quase tudo o mais que ali acontecera. A premiação de personalidades negras ficou célebre, sim, ao longo da semana, mas devido ao soco que o cantor, apresentador e empresário Netinho de Paula desferiu no humorista Rodrigo Scarpa, que incomoda celebridades ao interpretar o "Repórter Vesgo" no programa Pânico na TV e se fazia acompanhar, na ocasião, de um ator branco pintado de negro, o "Mano Quietinho".

Netinho, que naquele mesmo dia colocara no ar a TV da Gente, primeira emissora televisiva brasileira a se dedicar prioritariamente à populalção negra (CartaCapital nº 360), se descontrolou à entrada da Sala São Paulo, diante da pergunta do humorista sobre se ele iria "abrir o seu canal para todo mundo". Scarpa reagiu ao soco registrando um boletim de ocorrência.

Mais tarde, recebendo troféu equivalente ao de Toni Tornado, Netinho deixou as lágrimas rolarem e discursou oscilando entre palavras de triunfo, mágoa e belicismo. "Fiquei muito triste quando pedi apoio a algumas pessoas famosas para fazer a TV da Gente e elas achavam que era um sonho tolo, que ia ser em vão. Por essa luta e por outras não vou admitir que nenhum palhaço faça chacota da gente e do jeito que a gente se veste. Enfiei o braço mesmo, dei um soco", concluiu, provocando mais aplausos efusivos, agora no terreno-limite perigoso do apoio à violência.

Em comunicado divulgado na quarta-feira, Netinho pediu desculpas em público: "Embora arrependido dos excessos que cometi, que são injustificáveis, esclareço que minha reação se deveu às atitudes agressivas e preconceituosas do Repórter Vesgo, usando piadas maliciosas e palavreado grosseiro, que atingiram a minha honra e a dignidade da raça à qual tenho o orgulho de pertencer".

Despido do personagem, Scarpa se posicionou a CartaCapital, na quinta-feira: "Como pessoa, espero que Netinho peça desculpas pessoalmente a mim, e posso perdoá-lo. Mas como cidadão tenho que dizer que violência não é solução para nada e que agressão é crime".

Involuntariamente, Netinho e a equipe do Pânico (e da RedeTV!, atualmente pressionada pelo Ministério Público e por grupos de defesa dos direitos humanos, por supostos abusos praticados contra minorias sociais) protagonizavam episódio que redundaria na diminuição do Troféu Raça Negra a um lamentável episódio de agressão de um branco por um negro.

Lá dentro, o relicário de acontecimentos era 505 anos mais complexo, como atestam vários exemplos.

Um coral negro entoou uma versão transgressora do Hino Nacional Brasileiro, com referências ao soul, ao gospel e ao samba.

Foi assinado, pela Secretaria de Patrimônio da União, um termo de cessão de prédio à avenida Cásper Líbero, 88, no centro da cidade de São Paulo ("um dos maiores quilombos urbanos do Brasil", como definira o ator Antônio Pitanga). Será a sede definitiva da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares (CartaCapital nº 342), que agrupa 87% de alunos negros. José Vicente, o reitor da escola e presidente da ONG Afrobras, que promoveu desde 2000 três edições do Raça Negra, foi o condutor da parte política da cerimônia, que também contemplou juristas e empresários de mídia e educação.

Pelo critério de homenagear pessoas que contribuem para a causa negra, troféus foram distribuídos a personalidades tão diversificadas quanto Ruth de Souza e Hélio de la Peña, Hélio Santos e Glória Maria, Daianne dos Santos e Neusa Borges... "Existem outros prêmios musicais para que nem convidado sou. Este é um sinal de que o Brasil está mudando", tateou o pagodeiro romântico Alexandre Pires.

Pelo critério da diversidade, era possível assistir a cenas musicais surpreendentes. Sambista purista e branca, Beth Carvalho levou troféu de destaque ("sou mais preta que muito negro", explicou mais tarde) e se entregou ao funk, dançando lado a lado com a sambista negra e não tão purista Alcione. O mote do funk Olhos Coloridos operava a façanha de unir numa só voz Rappin' Hood, Seu Jorge, Zezé Motta, Wilson Simoninha, Sandra de Sá, Emílio Santiago, Toni Garrido, Paula Lima, Luiz Melodia, Toni Tornado e, mais ressabiados, Netinho e Alexandre Pires: "Todo brasileiro tem sangue crioulo".

"Foi meu pai que me ensinou a me valorizar como mulher negra e nordestina", disse Alcione, ecoando palavras e lágrimas do ator Lázaro Ramos, que entregou ao pai o troféu que recebeu ("você fez tudo certo, cara!").

Para sintetizar tanta complexidade, lá estava o cantor Jamelão, em plena atividade do alto de 92 anos e de frases assim: "Não sei por que um troféu, eu não fiz nada até agora. Mas ainda posso fazer. Vão me desculpar, mas o racismo ainda persiste. Desculpem a minha franqueza, mas liberdade ao negro, essa é a minha meta e a de vocês".

Já no coquetel, Jamelão resistia arredio ao contato do repórter branco: "Em boca fechada não entra mosca". Mas lá permaneceu pela madrugada, de pé, observando atentamente um tipo de festa a rigor que não existia quando ele ainda não entrara na centésima década de vida.