quinta-feira, maio 04, 2006

it's that heat

[este texto é origem e parte integrante do texto que virá a seguir, "o homem da gravata florida". e vice-versa.]

enquanto os migrantes radicados nos estados unidos da américa se manifestam em busca de reconhecimento & respeito por parte dos senhores da terra, eu fico pensando em (e ouvindo) sergio mendes.

brasileiro "fugido" para a américa (alô, sol!) há um milhão de anos, o veteraníssimo (e desprezadíssimo) sergio mendes lançou há pouco tempo o álbum "timeless", uma das coisas mais interessantes e audaciosas que apareceram em forma de disco neste ano de 2006. o tema de mr. mendes, para variar, é profanar (agora também com hip hop & muito mais) aquele brazilian calor, that heat tropical de que fala o genial will.i.am, afilhado & padrinho de mr. mendes, na faixa "that heat".

[dá para ouvir trechinhos de todas as músicas de "timeless", aqui neste endereço oficial. aloha!]

há coisa à beça a dizer sobre sergio mendes e sobre os movimentos migratórios que o geraram. para começo de conversa, ficamos com o texto que publiquei, a convite do sempre inquieto ricardo alexandre, na edição 199 da revista "bizz", de março de 2006. podíamos agora ir ao debate, porque... dá um calooooooor!!!


Porta-voz da brisa nacional
Texto Pedro Alexandre Sanches

Exportado de Niterói para os EUA e dali para o mundo, Sergio Mendes tem sido um estrangeiro por excelência e um folclorista do Brasil por força das circunstâncias. Em 2006, alguma coisa parece estar fora da velha ordem, para o mundo e para Sergio Mendes. Timeless é o nome de seu novo CD, e poderia ser o apelido da linha imaginária que separa o veterano de 64 anos do jovem ambicioso que migrou para os EUA e, em 1966, forjou sucesso internacional com uma versão em português macarrônico de "Mas Que Nada", de Jorge Ben. Carmen Miranda às avessas, popularizava em dimensões planetárias a bossa nova, revalidando clichês sobre brazilian sounds, tipo banana is my business, mas acrescentando bossa negra e black music aos chavões e caricaturas habituais sobre o Terceiro Mundo e os trópicos.

"Mas Que Nada" é a música de abertura de Timeless, eterno retorno 40 anos depois. Mas eis o que está fora da ordem: no lugar dos antigos vocais macarrônicos, aparece agora um rap em inglês, na voz de will.i.am, líder do extraordinário grupo norte-americano de hip hop The Black Eyed Peas. Não é por acaso que will.i.am é o produtor e o responsável pelo lançamento do disco. São muitas as conexões indiretas entre o Brasil e os humores multiétnicos dos BEP, banda que harmoniza integrantes negros, brancos, uma loira e um americano de origem mexicana e feições de índio de faroeste.

Sergio Mendes é influência crucial para will.i.am, assim como os mestres do samba o são para Marcelo D2. Não é à toa que o rapper carioca e o rapper californiano já gravaram juntos no Brasil e que D2 improvisa rimas brasileiras em Timeless, numa releitura mistureba do "Samba da Bênção", de Baden Powell e Vinicius de Moraes.
As teias de relações vão se entrelaçando. D2 também aparece em "Fo'-Hop (Por Trás de Brás de Pina)", forró pós-moderno bordado na quina entre a tradição e a inovação, a partir de composição do violonista Guinga, e com participação especial dele.

Timeless cede guarida ao virtuosismo erudito-popular de Guinga e do Quarteto Maogani (em "Lamento", de Jobim), mas também ao virtuosismo popular-erudito de Stevie Wonder (que toca gaita no medley afro-samba de "Berimbau" e "Consolação", de Baden e Vinicius). Vai além: cede vez até ao virtuosismo pop de Justin Timberlake na bossa pop de criação coletiva "Loose Ends". O ex-*NSYNC integra o círculo r&b&hip hop de will.i.am, que comparece em peso: entre os vocalistas de Timeless estão Erykah Badu, Jill Scott, India.Arie, Q-Tip (A Tribe Called Quest), Black Thought (The Roots) etc.

Algumas canções são brasileiras (sim, até "Bananeira" diz presente), outras são norte-americanas, mas todas são americanas, em busca de uma integração como a que will.i.am e D2 procuram entre si e entre seus sons e os de patronos como Sergio Mendes e Michael Jackson, Tom Jobim e Cartola, Stevie Wonder e Baden Powell. É integração norte-sul, da América com a América, entre "ricos" e "pobres", samba-rap, Niterói falando para o mundo.

O núcleo nervoso de Timeless, nesse aspecto, é a faixa-título, camisa 10 do disco. Composta em dupla pela cantora r&b India.Arie e pelo mago-marqueteiro-branco-de-bossa-lounge mr. SM, recombina vocais como os de Stevie Wonder, camas sonoras como as da bossa e, polvilhando tudo, roda de samba de fundo de quintal dos estados unidos do Brasil.

Eis aí o que mudou desde que Carmen Miranda se disfarçava de cubana, Tom Jobim colocava fraque no samba e Sergio Miranda forrava de cores fortes o samba-soul de Jorge Ben. Em anos pós-Lula, as caricaturas perderam prestígio, o samba não é cafona e não é mais só Marcelo D2 que quer ser will.i.am – agora will.i.am também quer ser D2. O Brasil agora está na moda para lá de exotismos de aves tropicais, e nada mais justo que o calejado Sergio Mendes se autoconvoque porta-voz do novo sopro.

Não é à toa, também, que as cores predominantes na capa lindamente emotiva de Timeless sejam o verde e o amarelo. Bem-vindo de volta à pátria natal (chamada Brasil, também conhecida como mundo), mr. Mendes.