sexta-feira, maio 05, 2006

o homem da gravata florida

[este texto é continuação e parte integrante do texto anterior, "it's that heat". e vice-versa.]

num certo sentido, sergio mendes foi inventado por jorge ben. foi ao levar para os estados unidos da américa sua versão nômade para o samba esquema novo "mas que nada", de jorge, que sergio mendes impôs-se perante os ouvidos do planeta. de quebra, a versão gringa macarrônica atraiu atenções extra-brasileiras para o próprio jorge ben, que a bordo do sucesso de sua invenção involuntária, também viajou aos eua, depois de volta ao brasil com o aval dos senhores da terrona, depois de volta aos eua e ao mundo. num certo sentido, jorge ben foi inventado por sergio mendes.

pensando em (e ouvindo) sergio mendes, também me ponho a pensar em (e a ouvir) jorge ben. nenhuma novidade nisso, ouvir jorge ben é coisa que a fome & a sensatez não me deixam parar de fazer, nunca, nunca, nunquinha. mas, conversa vai, conversa vem, me lembro também de um texto que publiquei, a convite do organizador alexandre petillo, no livro "noite passada um disco salvou minha vida - 70 álbuns para a ilha deserta" (geração editorial, 2005).

é um livro que reúne gente variadíssima em depoimentos pessoais & intransferíveis sobre "o disco que eu levaria para uma ilha deserta" (segundo alguns), ou "o disco que salvou a minha vida" (de acordo com outros). como entendi as instruções do petillo mais na segunda linha, de "qual foi o disco que salvou sua vida?", assim escrevi sobre "a tábua de esmeralda" (1974), de jorge ben, um dos discos que mudaram minha vida (o texto abaixo tenta explicar).

[atalho: este texto traz a discussão sobre música para terrenos bem mais subjetivos & pessoais que os habituais, como será fácil perceber. mas não é minha intenção, de modo algum, desviar o foco ou enfraquecer as discussões críticas/estéticas abertas no tópico anterior (ele continua ativo aqui no andar de baixo, vamos continuar freqüentando por mais um tempinho?). por favor, continuemos discutindo sergio mendes, e sergio ricardo, e jorge ben, e black eyed peas, e quem mais chegar! mas e se - por que não?! - colocarmos na panela também o "homo emotivus" do século novo? ou será que "homem não chora", como chorava sérgio ricardo em 1967, em "beto bom de bola"? um homem também chora, menina morena?...]

JORGE BEN, "A TÁBUA DE ESMERALDA"
por Pedro Alexandre Sanches

Minha vid se divide em "antes de Jorge Ben" e "depois de Jorge Ben". Entre quando eu não sabia da existência de "A Tábua de Esmeralda", seu disco de 1974, e depois de conhecê-lo.

Como nas histórias de amor mais apimentadas, houve pitadas de ódio em meu caso com a música do Ben. Quando era crianla, eu tinha raiva da TV Globo - amor e ódio, evidentemente. Mais especificamente, morria de raiva e de amor pelo "Globo de Ouro". Era um programa semanal de parada de sucessos, uma competição entre os medalhões da música nacional. O primeiro lugar invariavelmente ficava com Roberto Carlos, a farsa era tão evidente. Mais atrás aparecia de tudo, mas Tim Maia estava sempre lá, e Jorge Ben também aparecia com certa freqüência. Eu odiava os três. Muito. Três chatos de galocha.

Pura ironia. Na minha vida adulta, os três passariam a ocupar lugares centrais de referência nos meus amores musicais - agora já sem muita sombra de ódio. E o primeiro desses adventos foi Jorge Ben.

Era 1989, eu tinha 20, 21 anos e morava na minha cidade natal, Maringá, Paraná. Meu acesso à música sempre fora o vendido pela Globo, o que estava mudando de mansinho conforme eu ia abandonando devagar a adolescência. Não havia muitas opções nas lojas maringaenses a não ser aquelas da Som Livre, da Globo e de seus satélites. Começavam a aparecer uns sebos de discos, ainda bem precários, desorganizados.

Eu acho que estava apaixonado.

Não, não acho. Eu estava.

Um dia bati de frente, numa das longas e prazerosas viagens aos sebos, com um disco de Jorge Ben. Ainda não era "A Tábua", era uma coletânea feiosa, série "Personalidade", zero de personalidade. Eu odiava o Jorge Ben. Olhei a capa e, pronto, comprei. Por que não sei, talvez porque estava apaixonado, talvez porque chegara a hora de testar meus ódios, amores e temores. Mas comprei.

E aí choveu dentro da minha cabeça.

Sem saber (só depois de muito tempo comecei a compreender), eu descobri um monte de segredos nas primeiras audições das melhores músicas do Jorge Ben na fase 1969-1974 (a coletânea era tétrica, mas seu conteúdo era irreparável). Um desses segredos revelados foi o fato de que a música popular brasileira é eminentemente melancólica. Eu já tentava fugir da melancolia ouvindo e amando Rita Lee, para mim o mais adorável de todos os falsos alegres da MPB. Mas eu era um melancólico por excelência. Apenas fantasiava aquele banzo na tristeza implícita de Rita Lee, em vez de me afogar no desespero explícito de Elis Regina.

Com Jorge Ben, descobri pela primeira vez que a alegria existia, sem fantasias.

Nem era sem fantasias, de fato. "A Tábua de Esmeralda" fui garimpar em São Paulo, ainda maringaense, na primeira viagem exploratória aos sebos alucinantes, eróticos, que comecei a descobrir quando, por amor, comecei a testar a aventura de ir embora de Maringá. Ao descobrir a "Esmeralda" conheci, por exemplo, a fantasia de "O Homem da Gravata Florida". O homem da gravata florida deslizava pelo mundo com um jardim suspenso dependurado no pescoço, sua gravata era sensacional, cheia de detalhes. Uma combinação de cores de perfeição tropical. Era música, mas virava imagem, viagem sensorial. Eu via a gravata florida de Paracelso, o alquimista medieval que inspirou Jorge nessa canção - em 1974, Tim Maia havia virado fanático da seita Racional, Roberto Carlos havia se transmutado em fanático religioso de "Jesus Cristo", "A Montanha" e "O Homem" e Jorge Ben pairava sobre todos, convicto de que os alquimistas estão chegando, os alquimistas.

Mas as flores, elas todas se apaixonavam por aquele homem florido, encantador, homem feminino que não feria o seu lado masculino. O homem era simpático e feliz, com aquela gravata florida de Paracelso qualquer homem viraria príncipe.

A gravata era uma fantasia, evidentemente. Hoje suspeito que havia tristeza e melancolia por trás daquele homem, daquele Jorge. Mas é que melancolia havia em todo mundo, é o que sempre há. O que acontecia, nesse nosso caso, era que em Ben a alegria lutava uma briga de amor e ódio contra a tristeza. E a alegria ganhava, triunfalmente, distribuindo flores formosas e cheirosas ao perdedor. A alegria era possível, era viável, era um bom mote, uma excelente razão de ser.

Me apaixonei, pela segunda vez seguida e concomitante, dessa vez pela música de Jorge Ben. O cara que antes me parecia um chato se revelou de repente o mais genial que até hoje eu ouvi cantar e tocar violão e compor e propagar alegria.

Daí por diante havia todo um universo novo a descobrir, dezenas de discos daquele cara dando sopa nos sebos. "A Tábua de Esmeralda" foi o primeiro (sem contar coletâneas) e de longe o mais impressionante. Tinha tanta coisa nele.

"Os Alquimistas Estão Chegando os Alquimistas", surrealismo sideral sobre homens discretos e silenciosos que não querem qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido, de temperamento sórdido, de temperamento sórdido. Era melodia para não acabar nunca mais, ritmo para não acabar nunca mais, amor quando gira o mundo e alguém chega ao fundo.

"O Namorado da Viúva", samba-soul dos mais sacudidos, transformava o amor profano da viúva pelo malandro na acomodação das sílabas ao tamanho perfeito da melodia: "Namo-mo-ra-rado da viúva", senão não cabia.

A alegria se comprimia e se condensava na melodia, com ele seríamos servis a nossos quadris, e que tudo o mais fosse para o inferno. "Menina Mulher da Pele Preta" fazia sério e célere manifesto anti-racista, numa época de tragédia para qualquer movimentação de minoria num Brasil que estava transtornado numa ferrada ditadura doente. "Eu Vou Torcer" era a mais desbragada declaração de amor à felicidade: "Eu vou torcer pela paz/ pela alegria, pelo amor/ pelas moças bonitas eu vou torcer, eu vou". Até "pelo meu amigo que sofre do coração" ele ia torcer, nossa, que flechada num coração sofrido. O coração adoentado devia ser do "Brother", o cara que Jorge reverenciava em black power, em inglês macarrônico colada na africanidade sambista de "Zumbi", nossa, nossa, nossa. Brasileiro, forasteiro, guerrilheiro, estrangeiro, gozador. Orra, meu.

"Cinco Minutos", por fim, era triste, para quem achasse que Jorge não sabia ser triste. Ben havia pedido à namorada que esperasse só mais cinco minutos, ela não o atendeu. Foi-se, e Jorge ainda a cantava, como chorando, num blues, num soul, num chorinho sambado, advocacia da música para extirpar a dor nas lágrimas que a voz vertia. A tristeza existia, sim, mas só como mero veículo de travessia para a estrada que ia dar na alegria (se a da felicidade passasse por labirintos e levasse a atalhos perigosos, arriscados, difíceis de encontrar).

Eu ouvia e chorava, chorava, chorava, chorava, chorava. De alegria, quase de felicidade. Aquele homem da gravata florida que cantava do outro lado do LP queria que eu fosse feliz, no mínimo alegre. E eu ia ser.