"subversivos", nós?
ãhn, como assim??? "subversivos"?, dentro da rede globo? subversivos?, na "folha", no "estado" e na editora abril? na warner, na sony e na universal? na universal do reino de deus, na católica e no candomblé? subversivos na fiesp, nos presídios de segurança máxima? no crime organizado, no crime desorganizado, no pcc, entre os daslumbrettes? na vila sésamo, no jardim de infância da sua filha, no sítio do picapau amarelo (subversiva, a emília do "reacionário" monteiro lobato)? no congresso nacional, no governo federal? no pfl, no pt, no psdb? em niuiorque, no mst, nos jardins de paris, no jardim filhos da terra? "subversivos" na sua própria família, dentro da sua casa, na frente do espelho, no gogó da ema?
quem aí, afinal, é "subversivo"?, quem aí advoga as causas de "reacionário"? tu és uma subversiva a serviço do "inimigo" convervador, ou és tu um reacionário a serviço da caixa 2 subversora?
qual é a origem de toda esta nossa brasileiríssima dubiedade (alô, sr. claudio lembo!), qual será o seu destino? que guerra civil é esta que mora dentro de nós, indivíduos que erigimos a superestrutura "corrupta" e "inepta" que gostamos tanto de ofender e vilipendiar? os agredidos SOMOS os agressores?
"carta capital" ainda quentinha nas ruas, nº 393, 17 de maio de 2006. vamos conversar sobre isso, à luz do 13 de maio?
[ah, antes que eu me esqueça do mais importante: a bênção, nelson rodrigues!!!]
SUBVERSIVOS GLOBAIS
Uma série de reedições de discos da Som Livre evoca as relações tensas entre a rede líder e seu elenco "progressista"
Por Pedro Alexandre Sanches
Os discos com as trilhas sonoras de Vila Sésamo (1974) e Sítio do Picapau Amarelo (1977) têm sido os mais procurados da série Som Livre Masters, que trouxe de volta à tona 25 títulos raros do acervo da gravadora da Rede Globo. Mas nem todos que as ouçam em 2006 se lembrarão de episódios contraditórios que se desenrolavam por trás delas. Se a Globo ainda enfrenta o estigma de ser vista como uma das sustentadoras centrais da ditadura militar então instalada no Brasil, o elenco de artistas, intelectuais, dramaturgos e outros profissionais que construíam o cotidiano da rede era formado em sua maioria por pessoas que diziam contestar fortemente a ditadura.
Eram, em sua maioria, indivíduos que se classificavam como progressistas, esquerdistas ou transgressores, quando não como propriamente comunistas ou subversivos. Acreditavam encarar o sufoco da repressão fazendo as ideologias que portavam vazarem pelas frestas da programação, até mesmo a infantil. Globo era o nome da contradição.
Na trilha sonora do Sítio do Picapau Amarelo, o diretor musical Dori Caymmi tirou do ostracismo, por exemplo, o engajado Sérgio Ricardo, que deixou vazar para o tema da boneca Emília o espírito de treva da época: Pobre de mim, Emília, me traga uma notícia boa (...) Por mais que o sol se esconda e cruzes se cravem no raiar do dia.
"Eu tinha tido uma necrose na perna, e Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, homem forte da Globo à época) salvou a sobrevivência da minha família, me botou de funcionário, comecei a receber um salário, tive toda a liberdade para chamar quem eu quis. Para a trilha do Sítio, chamei Sérgio Ricardo, Jards Macalé, Ivan Lins e Vitor Martins, João Bosco e Aldir Blanc, Geraldo Azevedo, um bando de subversivos", lembra Dori.
Era quase regra na Som Livre dos anos 70, como denota a série de CDs de agora, que reedita obras de "malucos" e/ou "subversivos" do porte de Alceu Valença (Molhado de Suor, 1974), Sidney Miller (Línguas de Fogo, idem), Novos Baianos (Vamos pro Mundo, idem) etc.
Outro exemplo é o da trilha de Vila Sésamo, criada pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Em pleno reinado de terror e repressão, eles produziam letras prosaicas que elogiavam, para um público de crianças, valores como tolerância, coragem, respeito à diferença (eu sou o Funga-Funga e sou um pouco diferente/ mas não entendo por que todo mundo me olha como se eu não fosse gente, cantava um dos "monstros" do seriado), independência e autonomia (use independência em tudo que escolher/ lute pelas coisas que você quiser/ mas para começar acredite em você) e assim por diante.
"É claro que fazíamos isso de modo proposital. Pensávamos no que gostaríamos de falar para nossos filhos", afirma Marcos Valle. À época, o programa adaptado do original norte-americano era tachado por segmentos da esquerda como "agente do imperialismo". "Hoje chega a ser engraçado isso. Se eu comparar a nossa intenção educacional com a de alguns trabalhos de hoje em dia, acho que as crianças da década de 70 saíram ganhando."
O uso da brecha foi constante na primeira fase das trilhas sonoras de novelas, várias das quais devem ser reeditadas ainda neste ano, numa próxima fornada da série Masters. A equipe criadora das trilhas, no início, abrigava músicos de espectro ideológico dos mais amplos, dos "malucos-beleza" Raul Seixas e Paulo Coelho (O Rebu) e Zé Rodrix (Corrida do Ouro) aos mais dóceis Roberto e Erasmo Carlos (O Bofe).
Para Boni, hoje afastado da rede, "a Globo era uma emissora tocada por profissionais de características liberais, todos eles, em todos os postos possíveis". Contando que era de esquerda "no tempo de estudante" e iniciara carreira como assistente do dramaturgo comunista Dias Gomes, futuro autor de novelas globais como O Bem-Amado (1973) e Saramandaia (1976), ele resume: "Éramos inimigos íntimos do regime".
Mas Boni admite que representantes da direita também trabalhavam ali. "Havia gente colocada dentro da Globo para fazer meio de campo. [O editorialista] Edgardo Ericksen era imposto lá dentro. A função dele seria teoricamente defender os interesses da Globo, mas na verdade defendia os interesses da ditadura", relata.
Dori Caymmi, que diz ser de esquerda até hoje, faz sua descrição do mesmo cenário: "O décimo andar da Globo era cheio de coronel, coronel isso, coronel aquilo. Era a direção-tabu, o departamento financeiro, pessoas ligadas ao governo militar, onde ficava também o dr. Roberto Marinho. Ali no olimpo, como o pessoal chamava, ficavam os deuses militares. Ali a gente nem chegava. O máximo a que nós, artistas, chegávamos era ao nono andar, onde estava o Boni".
"Todos os dirigentes do PCB integraram a Globo. A idéia era aparelhar, ocupar o espaço antes que os reacionários ocupassem", diz Zé Rodrix, "comunista, marxista e fundador do PT" que fez sucesso com o hino politizado Soy Latino-Americano (1976), de inspiração cubana, e apresentou o Globo de Ouro ao lado de Gretchen.
Parceiro de Rodrix, Gutemberg Guarabyra viveu experiência-limite ao dirigir o tumultuado VI Festival Internacional da Canção de 1971. Compositores como Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Marcos Valle e Paulinho da Viola retiraram em grupo suas músicas da competição, num protesto contra a censura a algumas das canções.
Por trás do levante estava também o próprio diretor. "Tratou-se de um movimento liderado por mim, de dentro, sem que a Globo soubesse. Era horrível a situação, pois eu tinha que continuar trabalhando na montagem do festival, enquanto, ao mesmo tempo, tratava de esvaziá-lo", lembra Guarabyra, "desmascarado" e demitido em seguida.
Outro caso drástico, também de 1971, foi o do programa musical Som Livre Exportação (que a seguir originaria o nome da nascente gravadora da Globo). Era comandado pelos Mutantes, por Elis Regina e por jovens músicos do MAU (Movimento Artístico Universitário), como Gonzaguinha, Ivan Lins, Aldir Blanc e Cesar Costa Filho, e roteirizado pelos notórios comunistas Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes.
Conta Ivan Lins, que se define "esquerdista entre aspas, sem visão partidária": "A idéia era levar um programa que, até o possível, usasse a tevê para manter acesa a chama da contestação estudantil. Havia uma conotação política por baixo, que esbarrou na censura logo imposta pelo governo, quando puseram um coronel lá dentro. Quando houve a gravação de um espetáculo ao vivo, reunimos 100 mil pessoas, e o governo abriu os olhos e orelhas de vez".
Ele prossegue: "Gonzaguinha tinha que cantar só as músicas de amor, estava totalmente amordaçado. A música O Amor É o Meu País me protegia, porque achavam que era patriótica. Fui obrigado a cantá-la numa gravação patrocinada pelo regime, as Olimpíadas do Exército. Elis, coitadinha, falou que não ia, 'não vai como?', não tinha por onde escapar, o presidente Médici babava sangue".
Combalida, a resistência seguiu pela fresta, como na música-tema de O Bem-Amado, em que Toquinho e Vinicius de Moraes escreviam que tamos trancados no paiol de pólvora/ paralisados no paiol de pólvora/ olhos vendados no paiol de pólvora/ (...) tevê a cores no paiol de pólvora.
Outro caso extremo aconteceu já no governo Geisel, em 1975, quando Roque Santeiro foi integralmente censurada, às vésperas de ir ao ar (só foi liberada e regravada em 1986). "Era adaptação de uma peça do Dias Gomes, O Berço do Herói, que era a história de um militar que fugiu de uma batalha, sumiu, foi dado como morto e transformado em herói. Na realidade, era um desertor, um covarde", lembra Boni. "Foi censurada porque eles grampearam o Dias, num telefonema em que dizia 'mudamos de nome, conseguimos passar, vamos fazer O Berço do Herói na tevê'."
Hoje um dissidente redigindo a novela Cidadão Brasileiro na Rede Record, o dramaturgo Lauro César Muniz, autor de Escalada (1975) e O Casarão (1976), defende a posição que ocupava: "Para aquele momento, éramos mais que progressistas e transgressores. Agíamos com plena consciência para minar e enfraquecer a ditadura. Apesar de censurados, tínhamos um público imenso, manipulado pela ditadura. Por que não tentar transmitir idéias libertárias, por mais tímidas e reduzidas?".
Muniz fala sobre a tática da fresta: "Conseguíamos burlar a vigilância com temas sutilmente libertários, como divórcio, feminismo, anti-racismo. Em Escalada, eu estava proibido de mencionar o nome de Juscelino Kubitschek, nem por apelido ou sigla. Encontrei um caminho fazendo um personagem assoviar Peixe Vivo, música-símbolo de JK".
Mensurar quanto das pequenas vitórias era assimilado pelo público consumidor é tarefa difícil, mas elas eram comemoradas e fundamentavam a crença interna dos "subversivos" em seus objetivos.
Boni repele que a atitude da Globo fosse de cooptação, e a dos artistas, de adesão. "Ninguém aderiu ao sistema. Nós sobrevivemos ao sistema. Dias Gomes nunca aderiu ao sistema, nem Otto Lara Resende, Vinicius de Moraes, Jorge Amado. O sr. Ferreira Gullar nem tinha onde cair morto, mas era um intelectual, foi para lá e jamais foi um adesista. O que íamos fazer? Entregar para a ditadura e ficar reclamando em casa? Preferimos a trincheira, sempre consideramos que éramos os libertadores, não os adesistas."
Os artistas também eram bombardeados por isso, como conta o bossa-novista Osmar Milito, compositor de trilhas e do primeiro disco de autor da Som Livre, ...E Deixa o Relógio Andar! (1971, também relançado agora): "Ruim era em relação a outros artistas. Pintava inveja, o cara era tachado de reacionário, 'burguesinho', 'globete'. Eu era 'o pianista da televisão', não era bem visto. Mas é um grande mercado, não se pode jogar para o alto".
O compositor, produtor e jornalista Nelson Motta foi um que atraiu a ira da colega global Dina Sfat, ao compor, com Marcos e Paulo Sérgio Valle, o tema triunfante do ano novo de 1972: Hoje é o novo dia/ de um novo tempo/ que começou nesses novos dias... Soava como adesão ao "novo tempo" da ditadura, o que Motta nega: "Me assustei, isso nem passava pela minha cabeça".
Ele lembra o trânsito que fazia entre os setores artístico e jornalístico das Organizações Globo: "Em 1973, fui trabalhar n'O Globo, que era um jornal velho, horroroso, escroto, domínio absoluto da ditadura. Evandro Carlos de Andrade virou diretor e deu uma limpada, chamou gente. Achei que era importante eu ser uma janela liberal dentro de um canhão conservador".
Em depoimento ao livro Eles Mudaram a Imprensa (FGV, 2003), Evandro Carlos de Andrade descreveu a relação entre Roberto Marinho e "seus comunistas": "O dr. Roberto me chamou e disse: 'Olha, estou recebendo muitas queixas de que a redação está cheia de comunistas'. Respondi: 'Dr. Roberto, está mesmo. Agora é o seguinte, prefiro trabalhar com comunista do que com udenista. (...) Porque comunista sabe o que pode fazer, não se mete a besta, é profissional, faz aquilo só e sabe que não pode ir além. Já udenista acha que está no poder e começa a querer fazer coisa que não pode'. Ele disse: 'Você tem toda a razão'".
Dori Caymmi vai além nessa linha: "Todo inimigo que tinha, o dr. Roberto contratava e marginalizava. Pegava caras que eram críticos no campo literário e jornalístico e os colocava para fazer roteiros em linha de show, comédia". Enquanto Dori ainda insistia na brecha com o Sítio, as tensões dos anos anteriores aos poucos se dissipavam no hedonismo da discothèque, da boate Frenetic Dancin' Days, de Nelson Motta (que em 1978 viraria novela homônima de Gilberto Braga).
"Vi muito comunista dançando na night, derretendo na pista do Dancin' Days. Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Glauber Rocha, Luiz Carlos Barreto, Bruno Barreto. Não sei se os mais esquerdistas nos tachavam de alienados. A mim, só pediam ingresso", afirma Motta.
A essa altura, a politização perdia terreno rapidamente para o escapismo, o que pode ser ouvido na coleção pelo álbum de discothèque de 1977, de um Tim Maia resgatado havia pouco da fase "viajandona" da Cultura Racional. Você quer viver legal? (...)/ pense menos", assim ele começava o LP, prefaciando um discurso que dali em diante prevaleceria por décadas.
quem aí, afinal, é "subversivo"?, quem aí advoga as causas de "reacionário"? tu és uma subversiva a serviço do "inimigo" convervador, ou és tu um reacionário a serviço da caixa 2 subversora?
qual é a origem de toda esta nossa brasileiríssima dubiedade (alô, sr. claudio lembo!), qual será o seu destino? que guerra civil é esta que mora dentro de nós, indivíduos que erigimos a superestrutura "corrupta" e "inepta" que gostamos tanto de ofender e vilipendiar? os agredidos SOMOS os agressores?
"carta capital" ainda quentinha nas ruas, nº 393, 17 de maio de 2006. vamos conversar sobre isso, à luz do 13 de maio?
[ah, antes que eu me esqueça do mais importante: a bênção, nelson rodrigues!!!]
SUBVERSIVOS GLOBAIS
Uma série de reedições de discos da Som Livre evoca as relações tensas entre a rede líder e seu elenco "progressista"
Por Pedro Alexandre Sanches
Os discos com as trilhas sonoras de Vila Sésamo (1974) e Sítio do Picapau Amarelo (1977) têm sido os mais procurados da série Som Livre Masters, que trouxe de volta à tona 25 títulos raros do acervo da gravadora da Rede Globo. Mas nem todos que as ouçam em 2006 se lembrarão de episódios contraditórios que se desenrolavam por trás delas. Se a Globo ainda enfrenta o estigma de ser vista como uma das sustentadoras centrais da ditadura militar então instalada no Brasil, o elenco de artistas, intelectuais, dramaturgos e outros profissionais que construíam o cotidiano da rede era formado em sua maioria por pessoas que diziam contestar fortemente a ditadura.
Eram, em sua maioria, indivíduos que se classificavam como progressistas, esquerdistas ou transgressores, quando não como propriamente comunistas ou subversivos. Acreditavam encarar o sufoco da repressão fazendo as ideologias que portavam vazarem pelas frestas da programação, até mesmo a infantil. Globo era o nome da contradição.
Na trilha sonora do Sítio do Picapau Amarelo, o diretor musical Dori Caymmi tirou do ostracismo, por exemplo, o engajado Sérgio Ricardo, que deixou vazar para o tema da boneca Emília o espírito de treva da época: Pobre de mim, Emília, me traga uma notícia boa (...) Por mais que o sol se esconda e cruzes se cravem no raiar do dia.
"Eu tinha tido uma necrose na perna, e Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, homem forte da Globo à época) salvou a sobrevivência da minha família, me botou de funcionário, comecei a receber um salário, tive toda a liberdade para chamar quem eu quis. Para a trilha do Sítio, chamei Sérgio Ricardo, Jards Macalé, Ivan Lins e Vitor Martins, João Bosco e Aldir Blanc, Geraldo Azevedo, um bando de subversivos", lembra Dori.
Era quase regra na Som Livre dos anos 70, como denota a série de CDs de agora, que reedita obras de "malucos" e/ou "subversivos" do porte de Alceu Valença (Molhado de Suor, 1974), Sidney Miller (Línguas de Fogo, idem), Novos Baianos (Vamos pro Mundo, idem) etc.
Outro exemplo é o da trilha de Vila Sésamo, criada pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Em pleno reinado de terror e repressão, eles produziam letras prosaicas que elogiavam, para um público de crianças, valores como tolerância, coragem, respeito à diferença (eu sou o Funga-Funga e sou um pouco diferente/ mas não entendo por que todo mundo me olha como se eu não fosse gente, cantava um dos "monstros" do seriado), independência e autonomia (use independência em tudo que escolher/ lute pelas coisas que você quiser/ mas para começar acredite em você) e assim por diante.
"É claro que fazíamos isso de modo proposital. Pensávamos no que gostaríamos de falar para nossos filhos", afirma Marcos Valle. À época, o programa adaptado do original norte-americano era tachado por segmentos da esquerda como "agente do imperialismo". "Hoje chega a ser engraçado isso. Se eu comparar a nossa intenção educacional com a de alguns trabalhos de hoje em dia, acho que as crianças da década de 70 saíram ganhando."
O uso da brecha foi constante na primeira fase das trilhas sonoras de novelas, várias das quais devem ser reeditadas ainda neste ano, numa próxima fornada da série Masters. A equipe criadora das trilhas, no início, abrigava músicos de espectro ideológico dos mais amplos, dos "malucos-beleza" Raul Seixas e Paulo Coelho (O Rebu) e Zé Rodrix (Corrida do Ouro) aos mais dóceis Roberto e Erasmo Carlos (O Bofe).
Para Boni, hoje afastado da rede, "a Globo era uma emissora tocada por profissionais de características liberais, todos eles, em todos os postos possíveis". Contando que era de esquerda "no tempo de estudante" e iniciara carreira como assistente do dramaturgo comunista Dias Gomes, futuro autor de novelas globais como O Bem-Amado (1973) e Saramandaia (1976), ele resume: "Éramos inimigos íntimos do regime".
Mas Boni admite que representantes da direita também trabalhavam ali. "Havia gente colocada dentro da Globo para fazer meio de campo. [O editorialista] Edgardo Ericksen era imposto lá dentro. A função dele seria teoricamente defender os interesses da Globo, mas na verdade defendia os interesses da ditadura", relata.
Dori Caymmi, que diz ser de esquerda até hoje, faz sua descrição do mesmo cenário: "O décimo andar da Globo era cheio de coronel, coronel isso, coronel aquilo. Era a direção-tabu, o departamento financeiro, pessoas ligadas ao governo militar, onde ficava também o dr. Roberto Marinho. Ali no olimpo, como o pessoal chamava, ficavam os deuses militares. Ali a gente nem chegava. O máximo a que nós, artistas, chegávamos era ao nono andar, onde estava o Boni".
"Todos os dirigentes do PCB integraram a Globo. A idéia era aparelhar, ocupar o espaço antes que os reacionários ocupassem", diz Zé Rodrix, "comunista, marxista e fundador do PT" que fez sucesso com o hino politizado Soy Latino-Americano (1976), de inspiração cubana, e apresentou o Globo de Ouro ao lado de Gretchen.
Parceiro de Rodrix, Gutemberg Guarabyra viveu experiência-limite ao dirigir o tumultuado VI Festival Internacional da Canção de 1971. Compositores como Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Marcos Valle e Paulinho da Viola retiraram em grupo suas músicas da competição, num protesto contra a censura a algumas das canções.
Por trás do levante estava também o próprio diretor. "Tratou-se de um movimento liderado por mim, de dentro, sem que a Globo soubesse. Era horrível a situação, pois eu tinha que continuar trabalhando na montagem do festival, enquanto, ao mesmo tempo, tratava de esvaziá-lo", lembra Guarabyra, "desmascarado" e demitido em seguida.
Outro caso drástico, também de 1971, foi o do programa musical Som Livre Exportação (que a seguir originaria o nome da nascente gravadora da Globo). Era comandado pelos Mutantes, por Elis Regina e por jovens músicos do MAU (Movimento Artístico Universitário), como Gonzaguinha, Ivan Lins, Aldir Blanc e Cesar Costa Filho, e roteirizado pelos notórios comunistas Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes.
Conta Ivan Lins, que se define "esquerdista entre aspas, sem visão partidária": "A idéia era levar um programa que, até o possível, usasse a tevê para manter acesa a chama da contestação estudantil. Havia uma conotação política por baixo, que esbarrou na censura logo imposta pelo governo, quando puseram um coronel lá dentro. Quando houve a gravação de um espetáculo ao vivo, reunimos 100 mil pessoas, e o governo abriu os olhos e orelhas de vez".
Ele prossegue: "Gonzaguinha tinha que cantar só as músicas de amor, estava totalmente amordaçado. A música O Amor É o Meu País me protegia, porque achavam que era patriótica. Fui obrigado a cantá-la numa gravação patrocinada pelo regime, as Olimpíadas do Exército. Elis, coitadinha, falou que não ia, 'não vai como?', não tinha por onde escapar, o presidente Médici babava sangue".
Combalida, a resistência seguiu pela fresta, como na música-tema de O Bem-Amado, em que Toquinho e Vinicius de Moraes escreviam que tamos trancados no paiol de pólvora/ paralisados no paiol de pólvora/ olhos vendados no paiol de pólvora/ (...) tevê a cores no paiol de pólvora.
Outro caso extremo aconteceu já no governo Geisel, em 1975, quando Roque Santeiro foi integralmente censurada, às vésperas de ir ao ar (só foi liberada e regravada em 1986). "Era adaptação de uma peça do Dias Gomes, O Berço do Herói, que era a história de um militar que fugiu de uma batalha, sumiu, foi dado como morto e transformado em herói. Na realidade, era um desertor, um covarde", lembra Boni. "Foi censurada porque eles grampearam o Dias, num telefonema em que dizia 'mudamos de nome, conseguimos passar, vamos fazer O Berço do Herói na tevê'."
Hoje um dissidente redigindo a novela Cidadão Brasileiro na Rede Record, o dramaturgo Lauro César Muniz, autor de Escalada (1975) e O Casarão (1976), defende a posição que ocupava: "Para aquele momento, éramos mais que progressistas e transgressores. Agíamos com plena consciência para minar e enfraquecer a ditadura. Apesar de censurados, tínhamos um público imenso, manipulado pela ditadura. Por que não tentar transmitir idéias libertárias, por mais tímidas e reduzidas?".
Muniz fala sobre a tática da fresta: "Conseguíamos burlar a vigilância com temas sutilmente libertários, como divórcio, feminismo, anti-racismo. Em Escalada, eu estava proibido de mencionar o nome de Juscelino Kubitschek, nem por apelido ou sigla. Encontrei um caminho fazendo um personagem assoviar Peixe Vivo, música-símbolo de JK".
Mensurar quanto das pequenas vitórias era assimilado pelo público consumidor é tarefa difícil, mas elas eram comemoradas e fundamentavam a crença interna dos "subversivos" em seus objetivos.
Boni repele que a atitude da Globo fosse de cooptação, e a dos artistas, de adesão. "Ninguém aderiu ao sistema. Nós sobrevivemos ao sistema. Dias Gomes nunca aderiu ao sistema, nem Otto Lara Resende, Vinicius de Moraes, Jorge Amado. O sr. Ferreira Gullar nem tinha onde cair morto, mas era um intelectual, foi para lá e jamais foi um adesista. O que íamos fazer? Entregar para a ditadura e ficar reclamando em casa? Preferimos a trincheira, sempre consideramos que éramos os libertadores, não os adesistas."
Os artistas também eram bombardeados por isso, como conta o bossa-novista Osmar Milito, compositor de trilhas e do primeiro disco de autor da Som Livre, ...E Deixa o Relógio Andar! (1971, também relançado agora): "Ruim era em relação a outros artistas. Pintava inveja, o cara era tachado de reacionário, 'burguesinho', 'globete'. Eu era 'o pianista da televisão', não era bem visto. Mas é um grande mercado, não se pode jogar para o alto".
O compositor, produtor e jornalista Nelson Motta foi um que atraiu a ira da colega global Dina Sfat, ao compor, com Marcos e Paulo Sérgio Valle, o tema triunfante do ano novo de 1972: Hoje é o novo dia/ de um novo tempo/ que começou nesses novos dias... Soava como adesão ao "novo tempo" da ditadura, o que Motta nega: "Me assustei, isso nem passava pela minha cabeça".
Ele lembra o trânsito que fazia entre os setores artístico e jornalístico das Organizações Globo: "Em 1973, fui trabalhar n'O Globo, que era um jornal velho, horroroso, escroto, domínio absoluto da ditadura. Evandro Carlos de Andrade virou diretor e deu uma limpada, chamou gente. Achei que era importante eu ser uma janela liberal dentro de um canhão conservador".
Em depoimento ao livro Eles Mudaram a Imprensa (FGV, 2003), Evandro Carlos de Andrade descreveu a relação entre Roberto Marinho e "seus comunistas": "O dr. Roberto me chamou e disse: 'Olha, estou recebendo muitas queixas de que a redação está cheia de comunistas'. Respondi: 'Dr. Roberto, está mesmo. Agora é o seguinte, prefiro trabalhar com comunista do que com udenista. (...) Porque comunista sabe o que pode fazer, não se mete a besta, é profissional, faz aquilo só e sabe que não pode ir além. Já udenista acha que está no poder e começa a querer fazer coisa que não pode'. Ele disse: 'Você tem toda a razão'".
Dori Caymmi vai além nessa linha: "Todo inimigo que tinha, o dr. Roberto contratava e marginalizava. Pegava caras que eram críticos no campo literário e jornalístico e os colocava para fazer roteiros em linha de show, comédia". Enquanto Dori ainda insistia na brecha com o Sítio, as tensões dos anos anteriores aos poucos se dissipavam no hedonismo da discothèque, da boate Frenetic Dancin' Days, de Nelson Motta (que em 1978 viraria novela homônima de Gilberto Braga).
"Vi muito comunista dançando na night, derretendo na pista do Dancin' Days. Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Glauber Rocha, Luiz Carlos Barreto, Bruno Barreto. Não sei se os mais esquerdistas nos tachavam de alienados. A mim, só pediam ingresso", afirma Motta.
A essa altura, a politização perdia terreno rapidamente para o escapismo, o que pode ser ouvido na coleção pelo álbum de discothèque de 1977, de um Tim Maia resgatado havia pouco da fase "viajandona" da Cultura Racional. Você quer viver legal? (...)/ pense menos", assim ele começava o LP, prefaciando um discurso que dali em diante prevaleceria por décadas.
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