quinta-feira, junho 29, 2006

pílulas (anti)concepcionais: parada gay

pensou que eu ia deixar para lá, é? (até eu cheguei a pensar que ia, mas não deixei.)
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"notícia" é artigo perecível? dez dias depois de acontecida já morreu, apodreceu, caducou? ou vale ainda?
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vale!
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pois é. depois de acontecida a parada da diversidade sexual de são paulo, dez dias atrás, os sisudos órgãos de imprensa cobriram constrangidos, desconfiados (e preconceituosos) como sempre.
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tentando quantificá-la (para não ter de qualificá-la?), os órgãos rígidos da imprensa oscilaram na metragem da parada.
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para uns, fomos 2,5 milhões nas avenidas centrais de são paul. para outros, fomos "apenas" 2 milhões. apenas.
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as previsões (dos próprios organizadores sempre entranhados em disputas e fogos amigos internos) eram de que decrescêssemos - devido a quê? à desorganização dos (des)organizadores? à torcida contra (ops!, vodu!) dos (ex-)organizadores? à apatia dos passeadores? a quê?
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pois crescemos. crescemos ("apenas") 20%, de acordo com a imprensa conservadora.
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de acordo com ela, a imprensa conservadora, éramos 1,8 milhão em 2005 e fomos 2 milhões ou 2,5 milhões edm 2006.
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às vezes, para um mesmo órgão flácido da imprensa zonza versão 2006, éramos ora 2 milhões, ora 2,5 milhões - algo assim como se 500 mil gays, lésbicas, transgêneros, bissexuais, heterossexuais e os inúmeros intermediários entre eles sumissem e reaparecessem feito pisca-pisca, tragados sem mais nem menos por um gigantesco armário invisível, depois devolvidos, então abismados novamente.
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os órgãos se baseavam, para oscilar, nos dados da polícia militar, aquela mesma que passa por apuros nas mãos do pcc, aquela mesma que cravou, bem resoluta (e sob a credulidade religiosa da mesma imprensa), 3 milhões de pessoas na simpática marcha evangélica que dois dias antes percorreu (quase) as mesmas avenidas.
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e o tema-lema da parada não-evangélica era homofobia é crime, sacou?, prestou atenção?
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mais fácil quantificar que ter de qualificar a (própria) homofobia, né, dona etelvina, né, seu baltazar?
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mas, então, voltando aos números oscilatórios do triunvirato polícia-prefeitura-imprensa, foi algo como se as avenidas centrais da cidade central (do brasil) houvessem sido tomadas por algo entre 5 milhões e 5,5 milhões (a oscilação fica por conta das minorias sexuais em pisca-pisca - evangélicos são estáticos, mesmo que também cresçam sem parar).
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5(,5) milhões de "vândalos" nas ruas? é quase um levante, uma revolta, uma rebelião, uma revolução, pois não?
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pois, creia-me, sr. marciano bélico recém-pousado no sudeste da américa do sul: nos nossos levantes não houve sequer um tumulto, uma pancadaria, uma bala perdida, uma facada, um tiroteio, um pisoteio, uma explosão de violência. os gnus revoltosos são essencialmente pacíficos, que coisa mais maluca, hein?
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porque, você sabe, quando se sai para passear em prol dos direitos sexuais, o clima lá fora pode até ser de carnaval, festejo, festa e "festa" (alô, movimento dos sem-teto do centro!!! - alô, você!!!, cê já foi ao cinema assistir "dia de festa"?).
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lá fora pode até ser, mas, aqui por dentro de cada um dos 2(,5) milhões de manifestantes, o horizonte é bem outro, não importa o solzão que esteja fazendo lá fora.
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por dentro, troveja tumulto, tensão, vergonha, apreensão, turbulência, perturbação, medo, incerteza, culpa..., uma infinidade de adjetivos-vodus. é uma onda e tanto para segurar por dentro - como não temer ser apedrejado em público, se há tanta pedra repousando insidiosas sob o solzão de quase-inverno das avenidas e cidades centrais e colaterais?
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e ainda por cima sob esse tema tão sério, pomposo, imponente e importante, de que "homofobia é crime"?
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é difícil. dói. vários ficam melancólicos. muitos bebem demais (alô, lula-ronaldo-bussunda-zézorze-larryroitman!). alguns se drogam. casais nervosos se desentendem em plena avenida. outros, bipolares, entorpecem a melancolia em euforia (e/ou vice-versa).
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é porque é difícil, e dói, e dá medo - medo, sobretudo, de que tanta turbulência interna e íntima transborde e se dissemine por perturbações maiores, coletivas, que depois venham a servir como pedras a serem atiradas no coco de quem ousou se manifestar pelos direitos, pelas diferenças e pelas liberdades sexuais (ressaltando: direitos sexuais, diferenças sexuais, liberdades sexuais).
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mas aí, então, eis a multidão.
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2 milhões, 2,5 milhões, não importa quantos milhões: somos milhões. milhões de diferentes porque são iguais, milhões de iguais porque são diferentes.
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nesse dia, ao menos nesse dia, não há homenzarrão machão que passe de carrão e tenha a manha de gritar as piadinhas amarelas que arrota com valentia nos outros 364 dias do ano, nem moçoila fóbica que ensaie careta de nojo diante da cena (ó, quão inconcebível a cena!) de "dois homens se beijando".
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nesse dia a multidão é soberana - e tem todas as cores, sexos, formas, bandeiras; todas, todas, todas. nesse dia as minorias se unificam numa única, utópica e provisória maioria.
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células turbulentas da multidão, cada um dos 2(,5) milhões de (mani)festantes provavelmente guarde para si o compromisso íntimo de não dar à sociedade o argumento que ela sempre portou e ainda adoraria poder portar (alô, laranja mecânica! bodes expiatórios, uni-vos!): o argumento-falácia de que as minorias são perigosas, desviantes, nocivas, perversas, blá, blá, blá.
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o bode expiatório.
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o agente laranja.
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a palmatória do mundo blindado da minoria branca-macha-adulta-rica-sempre-no-comando.
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bem, nem sempre, né? alô, 2006.
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mas eis que do medo (prudência? responsabilidade?) interno de uma multidão de bodes expiatórios, se faz a paz.
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porque, na grandeza deste instante, o inferno não são mais os outros. na beleza dessa hora, meu inferno sou eu mesmo - cada um dos 2(,5) milhões de eus que (in)conformam a multidão pacífica.
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nesse instante suspenso no ar, se EU não zelar pela paz da parada, aqui comigo mesmo, ela pode degringolar - EU sou responsável por ela, 2(,5) milhões de eus somos. e ela não vai degringolar, porque ela é (ainda) o único dia do ano que eu(s) tenho para transformar meu desejo de ser (pro)positivo(a) em multidão.
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eis a multidão. pacífica.
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dela (da multidão pacífica, não custa nem um centavo sublinhar), brotam as flores por entre as quais flanam as borboletas do asfalto em que (o ano inteiro) tu vais.
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flores, flores, flores. de carne, não de plástico. enquanto a coca-cola agride a multidão com outdoors fóbicos/racistas que avisam que você não tem chance na vida se for um pimentão em meio a moranguinhos, uma berinjela entre sedosos pêssegos (alô, coca-cola!, como diria david beckham: hugo!, uergh!, afasta de mim o teu cálice de fel!).
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mas as flores, não as coca-colas.
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do alto do trio elétrico politizado (alô, professora axé music!), a genial drag queen (leia-se atriz, ator, agitador/a cultural, intelectual) silvetty montila nos passa o recibo da sua bronca, da bronca que será uma das senhas do pacifismo: não vaiem os políticos, queridinhos.
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não vaiem os políticos, dona silvetty? como assim???, se os bodes políticos foram feitos para se vaiar?
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não os vaiem, queridinhos, porque os políticos (& os ativistas gays discurseiros) que estão aqui em cima dando a cara a tapa da sociedade fóbica são (são?) exatamente queles que ralaram durante o ano para garantir a diversão pansexual dos 2(,5) milhões de pansexuais - os mesmos pansexuais que, durante o ano inteiro, não moveram uma palha sequer para garantir a realização da parada afinal conquistada por aqueles (& outros) que estão sendo vaiados neste instante e serão vaiados no ano que vem se a parada for removida da avenida (de) paulista.
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quem vai mover uma palha nos próximos 354 dias, para que a parada não seja removida da avenida? quem vai chorar feito filhote desmamado de gnu quando o infortúnio estiver consumado?
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mas, ok, dona silvetty, tomamos calados a bronca - a senhora está coberta de razão. mas devolvemos a bronca como flores em asfalto quente - não ajudamos a construí-la (a parada), no bastidor; mas dentro dela (a parada), no asfalto, garantiremos a fantasia (de carmen cigana miranda) e o volume (embaixo do jeans) e o maior espetáculo (pacifista) da terra.
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aplainado o terreno por dona silvetty, o político tucano pode discursar à vontade, ainda que tremendo feito vara verde. "vocês estão de parabéns, vocês merecem, vocês são legais", pronuncia, tremendo a boca pálida a cada vez que tem de pronunciar a palavra escapatória "vocês". alguém gritará "veado!" ao pânico homófobo-demófobo [hoje, o povo é gay!] do político tucano apavorado pela idéia de estar (já estando) dentro, incluso, pertencendo. obrigado, político pessedebê, você já está dentro.
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o prefeito pefelista também chega constrangido, segundo conta quem o viu. mas chegará, chega, comparece, participa. obrigado, prefeito pefelê, você já está dentro.
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dentro estão, também, milhões de (ex-)excluídos que ainda têm de pagar pecadilhos ao som-jaula robótico desumanóide da música eletrônica, para conseguir chacoalhar carnaval.
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dentro está o comunicador leão lobo, que, ressentido, lembra do pioneirismo dos que pavimentaram aquilo tudo ali, na época em que famílias escorraçavam seus filhos homossexuais - e, depois de morto um filho escorraçado, usurpavam de seu parceiro a herança deixada. há dores entre as flores do asfalto.
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dentro está o travesti politizado, militante, organizado (alô, dastrans!, alô, daspu!), que documenta a troca histórica que sua geração testemunhou, da navalha e do gilete embaixo da língua pelo direito conquistado de pedir (e obter) proteção ao policial, diante de qualquer tipo violência.
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(homofobia é crime, lembrou?)
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(quem quiser ser prostituto(a) será, mas quem não quiser, doravante, poderá não ser, um viva para os mais básicos entre os direitos.)
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dentro está o mar de gente que ocupa consolada as duas pistas da rua da consolação, deixando espaço para nenhuma agulha mais, nenhum cisco de olho - imagens que eu nunca havia visto na vida, inédita de tão compactas que foram no sábado 17 de junho de 2006.
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dentro está o boom de casais de homens, neste ano provavelmente mais grudados, carinhosos e coesos do que jamais estiveram. ressabiados feito pintassilgos, mais e mais deles parecem mais e mais trilhar caminhos que nos anos passados já trilharam casais de heterossexuais, de mulheres, de travestis, de misturadas minorias étnicas etc. etc. etc.
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dentro está a procriação da espécie ainda, mesmo que a polissexualidade seja mesmo, como advogou santa rita (lee) de sampa, instrumento de controle populacional. porque, incrível, as pílulas anticoncepcionais (alô, camisinha!) que circulam pela parada são a anticoncepção exercida fazendo sexo (e não o evitando, como ainda pregam arcaicas igrejas), pelo exercício das sexualidades e das relações sexuais - e até, eventualmente, do direito à concepção, que pertence a todas as orientações sexuais, não apenas à heterossexual.
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dentro, estão, sangüíneas, as lindas famílias negras-índias-ciganas-árabes-etc., com seus pais, filhos, primos, tios, irmãos etc. estão, sangüíneos, as lindas (e muitas) mães e os lindos (e poucos, ainda) pais de filho(a)s gays, lésbicas, trans etc.
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dentro estão, lado a lado, as lindas famílias extra-sangüíneas de amigos para toda a vida - amigos gays, lésbicas, heterossexuais, travestis, transexuais, migrantes (transitórios & perenes) de todos os estados e cidades do brasil, tantos outros que você mesmo(a) pode inventar agorinha, usando para tanto apenas sua (ilimitada) imaginação.
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estão, sangüíneos e extra-sangüíneos, os filhos e as filhas gays, as mães e os pais homossexuais, e todos os entornos. tímidos. crescendo, a cada ano.
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dentro estão crianças, sangüíneas e não-sangüíneas. cachorros, não-sangüíneos e (quase) sangüíneos. sangüíneos, sim e não. sangrentos e sanguinolentos, nunca.
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dentro está supla, filho da madrinha marta (suplicy) e do padrinho eduardo (suplicy), cantando "arrasa, bi!" no mesmo trio rock-elétrico que também abriga o hoje ator de filmes pornôs alexandre frota. dentro da parada diversificada, estão os direitos bissexuais, pansexuais, pornossexuais, heterossexuais (que nós, da diversidade, não excluímos - nós incluímos; e, também por isso, eis a paz entre os povos).
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dentro está a paz que marcelo yuka e maria rita querem, não a paz que eles não querem.
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dentro está a evidência, ainda não dimensionada e nem sequer reconhecida pela indústria informativa que manipula(va?) a história do brasil, de que, juntos e misturados (alô, mv bill!), estamos reescrevendo a história do brasil, estamos revolucionando a história das individualidades no brasil, estamos refundando (a história d)o brasil, e (d)o mundo.
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ainda desvalorizados e enjeitados, mas cheios de amor para dar (e receber).
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parabéns, pois, a todos nós que estivemos, estaremos, estamos, somos, seremos - e não venham nestas horas nos chamar de manada de gnus. grous coroados de dourado (pai!, afasta de mim aquela coroa de espinhos!), de manada não temos nada, nestas horas em que as flores brotam dos asfaltos. porque querem brotar. porque já se cansaram de viver sementes encerradas debaixo da terra.
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porque choveu, e faz frio, e o sol nasce todo dia. para todos.