quinta-feira, junho 01, 2006

por causa disso é que estás sempre triste?

para ensaiar um fecho ao "ciclo da humilhação", nada como ouvir a voz de quem entende disso como ninguém. a entrevista aconteceu em janeiro e rendeu reportagem da "carta capital" já reproduzida abaixo, no tópico "a ema gemeu no tronco do juremá". agora é hora da íntegra, ou quase isso (tentei eliminar repetições, mas respeitando rigorosamente as idéias, sem extirpar uma só das opiniões defendidas pelo craque musical), da entrevista com odair josé.


a esta altura, o senso habituê diria que é "assunto batido" - por conta do tributo "vou tirar você deste lugar" (bravamente coordenado por sandro belo e seu selo independente allegro discos, lá da goiás natal do zagueiro musical), odair josé tem estado onipresente na mídia, em todos os cantos da mídia, falada, escrita, televisada, telefonada, internetada.

batido ou não batido o assunto, eu lançaria um desafio pitoco, inter-relacionando-o com o tema da humilhação e suas variáveis: por que é que, mesmo com tanta mídia e tanto "hype" (urgh!, êita, palavrinha brega-kitsch-cafona, sô!), sempre que se fala "odair josé" tanta gente foge em carreira do debate, tanta gente sai assoviando com cara de "ei, esse negócio não é comigo, não"? por que a resistência a sequer escutar o que esse cara diz? por que é que pairam essas nuvens primas-irmãs por sobre o que falam esses caras, esses caras feito marcelo yuka, esses caras feito raul seixas, esses caras feito odair josé? por que, por que, por quê?

[modéstia às favas, agora que releio a transcrição para editar: a entrevista de odair é incrível, incrível, incrível. tento sinalizar alguns dos incontáveis pontos luminosos, termos de variedade & riqueza ímpares, assim, ok?]

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pedro alexandre sanches - posso começar pedindo para você fazer um resumo de sua história com a música, desde o começo, em goiás?

odair josé - é, pedro [sabe esses caras que tratam a gente pelo nome? pois é...], eu nasci numa cidade chamada morrinhos, a 120 quilômetros da capital de goiás - ali próximo as pessoas conhecem mais caldas novas. fiquei lá até os 11 anos, depois fui para goiânia. fiquei lá até os 16, foi quando fui para o rio de janeiro. na verdade eu, quando tinha 7 anos, pedi ao meu pai um violão. escrevi num papel e botei dentro do chinelo dele, que era a forma mais fácil de falar com ele e ele não esquecer. ele me deu um cavaquinho, achou que o cavaquinho era o tamanho de violão mais certo para o meu tamanho.

pas - será que ele estava prevendo um filho sambista?

oj - é, pois é... e tinha um senhor que saía todo dia de um lugar chamado açude e ia trabalhar no centro da cidade. ele passava de bicicleta na porta da minha casa, e eu sabia que ele tocava na banda de coreto da cidade. eu pedi a ele que me ensinasse a tocar o tal cavaquinho. de manhã cedo ele passava, me ensinava uma coisa, ficava tocando. de tarde ele parava, via se eu tinha aprendido ou não. e assim foram os meus primeiros passos com negócio de música. a partir daquele momento, não me lembro mais de ter parado de pensar em música. depois veio o violão, a gente foi tocando, cheguei a cantar em bandinha de goiânia, essas coisas. ná época já tinha muito negócio de beatles e rolling stones, fora também as músicas italianas, que eram muito fortes no brasil na época. dos 13 para os 14 anos, já comecei a compor alguma coisa. na verdade, nada foi aproveitado mais tarde, porque era muito fraquinho.

pas - você foi para o rio já com a intenção de ser cantor?

oj - sim, já com a intenção de mostrar meu trabalho. eu queria mexer com o negócio. fui porque, na verdade, estive num show do roberto carlos em goiânia, levado por artur rezende, empresário da época que levava os artistas lá e hoje está mais escrevendo colunas sociais. eu era crooner da banda que fazia o baile quando roberto ia tocar, e cheguei a conversar com roberto sobre a possibilidade de ele ouvir as minhas músicas. claro que o cara não ia parar ali para ouvir música, ele disse "não, me procura no rio. vai para o rio e me procura lá, ou então manda lá para mim". eu fiquei com aquilo na cabeça. tentei ir para o rio procurar não só o roberto carlos, como outros caminhos. cheguei em 1967, em 1970 gravei o primeiro disco pela cbs.

pas - que era a gravadora do roberto carlos, também. foi coincidência?

oj - é, na verdade a música "minhas coisas" saiu num lp chamado "as 14 mais" [de 1970], que era tipo um pau-de-sebo em que saíam várias faixas de artistas diferentes, inclusive o próprio roberto. eu tive a felicidade de ser escolhido para ser lançado naquele disco, que já era meio caminho andado, porque todo mundo comprava aquilo, era dos discos mais vendidos do país, justamente pelos ídolos que trazia.

pas - o volume da série "as 14 mais" em que você entrou incluía qual música do roberto?

oj - era "120... 130... 140..." [ele quer dizer "120... 150... 200 km por hora", baladona soul lançada por rc em 1970], em que ele declama e canta sobre a velocidade. também cantava uma outra lá que eu não sei qual é.

pas - houve ou não alguma intervenção dele para você chegar ali?

oj - não, o que acontece é que cheguei no rio, mas as coisas não são assim... fui com a certeza de que ia conseguir, mas não foi tão fácil assim. cheguei sem conhecer nada, tinha referência de endereços de gravadoras e do produtor rossini pinto, que foi quem me levou para gravar o disco. ele era o cara do momento na produção do rio de janeiro, como compositor também. naquele estilo musical rossini pinto era o papa, foi ele que me levou para a cbs. o roberto mesmo eu só fui ver um ano e pouco depois. era muito mais difícil ver roberto carlos no rio de janeiro que num show em goiânia.

pas - raul seixas, ainda desconhecido como artista, também era produtor da cbs. qual era sua relação com ele?

oj - é, você vê, a cbs passou por uma mudança nesa ocasião. o seu evandro ribeiro era o presidente e o jairo pires cuidava sozinho da parte artística da empresa. era um rapaz jovem, mas já cuidava de todo o cast da empresa junto com seu evandro. mas jairo saiu e foi para a polydor, e seu evandro, em vez de colocar uma pessoa no lugar dele, colocou vários produtores. foi quando entrou raul seixas, ainda como raulzito, e entraram também rossini pinto, renato barros, mauro motta e abdias, que fazia a parte nordestina e do norte. e cada produtor desses tinha direito a contratar cinco artistas. evidententemente aqueles que já estavam na empresa também continuaram, foi assim "você vai produzir jerry adriani, você fica com esse"... na época saiu até uma matéria acho que na revista "manchete", que não existe mais, com uma foto de todos os 25 artistas contratados e o roberto carlos no meio, "a cbs procura o novo roberto carlos".

pas - você e quem mais eram da cota do rossini pinto?

oj - da minha turma lá tinha um conjunto chamado os selvagens, que era integrado pelo michael sullivan, na época conhecido como ivanilton, e pelo dundum, que é o hyldon, o cara de "na rua, na chuva, na fazenda" [de 1975]. tinha também outras pessoas que não deram certo, que não foram em frente.

outra coisa engraçada é que as salas da empresa eram vazadas por cima, com divisões de madeira, então tudo que se falava numa sala se ouvia na outra. diziam até que aquele era um modelo americano, que era para quem mandava ter o controle do que estava acontecendo. então tudo se ouvia, todos os produtores sabiam tudo que estava rolando nas conversas. e era todo mundo muito amigo, todo mundo estava sempre se cruzando ali.

meu primeiro disco, o da capa branca, tem uma música do raul seixas que ninguém conhece, ele inclusive toca violão e guitarra na faixa. eu gravei a música "tudo acabado" [1970], de raulzito, e, já que ele estava lá, o rossini pediu que ele tocasse. as pessoas, já que gostam tanto de correr atrás das coisas de raul... essa é uma música que ninguém conhece. ele era muito legal, eu gostava muito de conversar com ele.

pas - era ele que produzia diana [mulher de odair à época], não?

oj - era, isso. ele produzia diana, jerry adriani, tony & frankye, sérgio sampaio.

pas - ainda falando do seu estado natal, goiás teve notoriedade no ano passado por ser o cenário do filme "2 filhos de francisco". você assistiu?

oj - não, ainda não. conheço zezé di camargo de quando ele tinha uma dupla sertaneja chamada zazá & zezé, lá em goiânia. depois a dupla acabou, parece que o zazá virou vereador, não acreditava muito no projeto, e o zezé veio para são paulo. fui fazer um show na campanha de um político lá e ele cantava antes. eu não vi o filme, não, mas sei mais ou menos a história de ouvir falar na televisão, é a batalha a partir do pai, não é?

pas - imaginei que o filme pudesse fazer você lembrar de coisas da sua própria história.

oj - do pouco que ouvi falar da história deles, a minha é um pouco diferente. pelo contrário, eu saí de casa fugido. anoiteci e não amanheci [ai, que tristeza, que lindeza...]. minha família não era muito a favor que eu fosse fazer aquilo. na minha época, era diferente, ir para o rio de janeiro ou para são paulo era uma coisa assustadora. zezé veio em 1991, as coisas mudaram muito nos últimos anos, as pessoas passaram a ter uma visão mais profissional dessa coisa de artista.

pas - sua geração abriu caminhos para os que viriam depois, nesse sentido?

oj - não sei se era mais fácil ou mais difícil, ou se hoje é mais difícil, mas se goiânia hoje deve ter 1,5 milhão de habitantes, na época devia ter 250 mil. você de repente ir parar no rio sozinho, sem ter onde morar... o dinheiro que levei, por exemplo, deu para ficar 20 dias num hotel ali na praça tiradentes. depois eu dormi na rua. fui dormir na praia. dormia no aeroporto santos dumont. depois descobri e fui morar em casas de estudantes. comia no calabouço. era muito sozinho, era muito difícil ter onde morar, onde se alimentar.

pas - essa situação do começo em geral é pouco comentada, mas muito comum na vida de muitos artistas, não?

oj - é, do ser humano mesmo, até em outros segmentos profissionais. quando eu morava na casa de estudantes tinha uma porção de gente nessa mesma situação, e nem todos queriam ser artistas.

pas - mas são poucas as histórias conhecidas, como a de belchior, que morava numa obra quando veio para são paulo.

oj - não é verdade? para mim foi até rápido demais, porque em dois anos de rio, praticamente, consegui gravar uma música e estar num lp como o "14 mais" e de repente estar sendo conhecido já no país todo. achei que foi até muito rápido. tem gente que batalha mais tempo.

pas - você chegou a trabalhar em outras coisas para sobreviver?

oj - não, no rio eu só trabalhei em música. toquei em todos os barzinhos e boatezinhas da praça 15, da praça mauá, da avenida rio branco. não trabalhei em outra coisa a não ser com música. tocava de noite e durante o dia corria atrás, enchia o saco dos caras das gravadoras, pegava no pé deles para poder gravar minhas músicas. olha, eu tinha uma vida difícil, porque às vezes não tinha o que comer. mas sabe que não foi tão aterrorizante assim, não? eu vivia exclusivamente para aquilo, acordava e ia atrás daquilo, perseguia determinados lugares e pessoas. todos os dias eu e outras pessoas ficávamos ali naquela marcação cerrada. mas não foi assim tão difícil, não.

pas - você já viu o cd-tributo? no texto de apresentação do paulo cesar de araújo [autor do livro "eu não sou cachorro, não", de 2002], ele cita roberto carlos como um influência óbvia para você, mas coloca, ao lado dele, noel rosa. o que você pensa disso?

oj - já vi, e ouvi, e achei muito bom. eu não sabia, ele me surpreendeu com o negócio do noel rosa. mas acho até que tem a ver mesmo, porque eu cantei muito em boates que tocavam noel rosa, ataulfo alves, lupicinio rodrigues... era esse negócio da vida noturna, tanto é que meu primeiro grande sucesso foi "vou tirar você desse lugar" [de 1972], em que eu falo de uma puta, de uma mulher da boate. também esse negócio do suburbano a que ele se refere, pensando bem, até que ele não está totalmente errado, não. de uma certa forma até tenho um pouco de noel rosa, sim, mas não nas raízes de samba, essas coisas. tanto é que nem sei se noel era um sambista ou era mais um bolerista mesmo.

pas - quanto a roberto carlos, é mais evidente que era um modelo para você, não?

oj - é, eu me identificava muito com o trabalho do roberto na época. acho que ele fez um trabalho muito forte com coisas populares. vivi muito a época dele, era muito forte. ele lançava um disco de 12 músicas e as 12 faziam sucesso. e esse negócio de dizer que era ruim? não era ruim, não, roberto fez um trabalho muito bom. roberto sempre foi um bom espelho, tanto é que o mercado do disco era muito pequeno antes dele, um mercado de 10 mil discos, e depois dele é que veio esse negócio de logo aumentar a vendagem para 50 mil, 100 mil discos. quando gravei "vou tirar você desse lugar", em 72, vendeu mais de 800 mil compactos. muita gente comprava o compacto sem ter vitrola para tocar. roberto foi quem criou esse tipo de coisa. a pessoa comprava o disco para ter o disco quando comprasse a vitrola.

eu vinha de uma escola musical..., não vou dizer assim fácil, porque fazer o fácil às vezes é mais difícil... esse negócio de dizer 'ah, a música é fácil', às vezes fazer o simples é mais difícil que fazer a música complicada. você bola uma porrada de acordes, complica uma letra e faz. a letra simples é mais difícil, porque ela tem que vir. mas para fazer um trabalho simples, como roberto carlos fez..., ele era o melhor exemplo mesmo, não tinha nem como não ser. acho até que negar isso é burrice, até mesmo de artistas e compositores que não seguiram a linha de roberto carlos. uma vez fui fazer um trabalho com caetano veloso e perguntei a ele o que achava de roberto carlos, ele ficou a noite inteira falando sobre roberto. ele achava roberto carlos o máximo. e tem muita gente aí que acho que tem o q.i. bem menor que o do caetano e diz que roberto carlos não está com essa bola toda. então eu tive uma influência muito forte, e acho que não só eu como vários compositores. a cultura musical brasileira teve uma influência muito forte do roberto. e era original? não, não era, mas era um cara que soube adequar vários estilos e criou o dele. ficou aquele negócio do romântico brasileiro.

pas - você falou sobre almoçar no calabouço, mas você estava lá na hora das maiores manifestações e confusões?

oj - estava, participei de muitos. era época do vladimir palmeira, ele era líder lá. até porque para comer no calabouço, que era uma casa de estudantes, você tinha que participar, que estudar. eu me matriculei na escola. de uma certa forma, a gente vivia tudo aquilo ali, achava que muita coisa estava errada, ia para a rua bater de frente com os caras. quando fecharam o calabouço, a gente ia para os outros restaurantes, comia, um cara de repente subia na mesa e dizia "aqui estão os estudantes do brasil, não vão pagar a conta porque o governo fechou o restaurante", essas coisas.

pas - você nunca foi um desses que subiam na mesa?

oj - não, porque não tinha o dom de subir na cadeira e falar, mas eu estava lá. é uma questão de liderança, né? mas participei bastante.

pas - chegou a conhecer o edson luís [estudante morto em 1968, num confronto com a repressão]?

oj - eu me lembro, não só dele como de outras pessoas. não foi só ele que entrou pelo cano, muitas pessoas ali eram vistas como... engraçado, depois que comecei a gravar disco, eu passava pelo aeroporto para viajar, logo no início, e via retratos de pessoas de que eu me lembrava do calabouço. "procura-se", era o cara com quem eu morava na casa de estudantes, que depois foram para aquelas guerrilhazinhas e tal. eu convivi com eles.

pas - o que você sentia ao ver as fotos?

oj - levava um susto, pensava "como é que pode?". tinha um cara de que esqueci o nome, cheio de sardinhas, morava na casa de estudantes em que morei mais tempo, na rua do lavradio, 43. outro dia passei por lá, aquelas ruas em volta dos arcos da lapa hoje são uma boemia, reestruturaram todos aqueles casarões, está muito bonito de noite. a casa de estudante em que morei virou um barzinho todo metido a besta, com charutaria e tudo.

na casa em que morávamos tinha a parte de baixo, onde tinha o poço de água para lavar roupa, e uma escada que dava para os dois andares de cima. essas casas de estudantes eram invadidas, aquela era de algum europeu que morreu e não tinha parentes, ficou ali. nessa casa, a escada de madeira do primeiro piso nós cortamos, e a gente subia por uma corda. era uma escada, mas uma escada de corda, que era para a polícia não entrar de sopetão.

pas - você estava fazendo curso secundário, ou o quê?

oj - cheguei ao rio na época das férias. minha carteira de estudante ainda era de goiás. meu documento de identidade também, depois fui tirar um outro. hoje esse documento é nacional, antigamente não era. eu dormia na praia, depois que o dinheiro acabou comecei a dormir na rua, na escadaria do teatro municial e tal. não foram muitos dias, uns 15 dias, fiquei dormindo na areia. aí descobri o aeroporto, eu dormia no banheiro. o cara que fazia limpeza sabia que eu dormia ali, era um banheiro bem grande, as partes de vaso tinham um espaço de quase um metro de parede. eu me encostava ali e dormia ali. e foi num dia desses voltando ao aeroporto que eu descobri o calabouço, que era bem ali onde hoje tem aquele trevo que dá acesso ao santos dumont. era um galpão, demoliram para fazer o trevo.

vi um cara falando, dizem que ele era neurótico de guerra, mas não era nem de guerra, porque ele não tinha idade para ter sido de guerra. mas ele ficou falando na porta, me chamou a atenção, e eu descobri que ali era um restaurante de estudantes. o cara que me recebeu é um cara que hoje é deputado federal, trabalhava junto com vladimir palmeira na direção dos estudantes. ele me deu uma provisória para eu me alimentar, e já me deu um negócio para eu ir para a casa de estudante, baseado no meu documento, desde que eu me matriculasse imediatamente. me matriculei, antigamente chamava científico, não sei a que corresponde atualmente. eu estudava à noite. não era bem à noite, era entre 16h e 20h. mas esse período foi de um ano e meio, dois anos. depois fecharam o calabouço. reabriram num outro lugar perto, demorou só seis meses, fecharam tudo de vez. a casa do lavradio, um dia a polícia chegou lá e tirou todo mundo, acabou com ela. eles foram acabando com tudo isso, os militares. e eu também já estava tocando, já estava ganhando meu próprio dinheiro, saí fora. eu até achava bonito aquele negócio dos estudantes. tinha muita gente picareta no meio, muita gente que estava ali e dava para perceber que era oportunismo.

pas - você considera que era politizado naquela época?

oj - eu não sei o que quer dizer politizado para as pessoas. até dizem que a gente não era politizado, que politizado era só quem metia o pau no governo. às vezes não é bem por aí. me lembro de que, quando o governo militar pegou o poder, eu gostava muito do joão goulart, tinha uma simpatia muito grande por ele. me lembro de que nosso governador lá em goiás, mauro borges teixeira, quando foi deposto, quem tirou ele do palácio foi o pai dele, que é o fundador da cidade. ele ficava em cima do palácio das esmeraldas dando banana para os aviões da força aérea que ficavam sobrevoando. já lá em goiânia, a gente ficava na praça dando uma força para ele. a gente achava que militar não tinha que intervir em coisa nenhuma. então eu tinha uma opinião formada sobre isso.

não acho que muita coisa que os militares, o castelo branco, por exemplo, se propunham a fazer fosse totalmente errado, mas ninguém é a favor de que você... fiquei fã do jânio quadros depois, quando foi prefeito de são paulo. mas ele, como presidente, eu não gostava dele. achava que toda aquela confusão foi criada por uma fraqueza dele. talvez não, de repente os militares iam pegar de qualquer jeito, porque já vinham tentando, até por voto direto, o marechal lott. eles queriam o poder, e os americanos queriam botar os militares no poder. então jânio renuncia, jango assume, botam tancredo neves como primeiro ministro em sistema parlamentarista, todo mundo já sabia que os militares iam tomar o poder. eu, como ser humano, não era favorável. quando mataram kennedy, achei aquilo... eu era fã dele, ele era um homem de bem, um cara de paz, como acho que bill clinton também era mais chegado.

então a gente tinha uma noção política do que estava acontecendo no mundo. não é bem assim como as pessoas dizem, não é porque o cara fez música simples que não está de olho no que está acontecendo. é claro que está.

pas - ficaram os estereótipos, de que o artista mais popular era o alienado e os de mpb, não, como se todos fossem encaixáveis nos mesmos estereótipos...

oj - é. a minha busca profissional não era participar de festivais, nem inscrever música em festival, como geraldo vandré fez, coisas maravilhosas. a minha coisa era outra. eu acho até que você conscientizar as pessoas de coisas através da música popular, como eu fiz muito e outros artistas desse segmento fizeram, às vezes tinha uma importância tão grande quanto a do outro. chico buarque é um gênio, mas ele não tinha que conscientizar ninguém. no público para que ele cantava, todo mundo já era conscientizado, já estava sabendo daquilo ali. às vezes é muito mais difícil falar para o cara que não está ligado nisso. e a gente falava. eu tive várias músicas que a censura proibiu por causa desses motivos.

pas - você começou a gravar em 1970, quando oficialmente a jovem guarda já havia terminado. qual foi sua relação com a jovem guarda, com aquele tipo de som, em comparação ao seu?

oj - eu realmente gostava daquele som que a jovem guarda fazia. eu achava que renato barros, do renato & seus blue caps, fazia umas trnsposições dos beatles muito bem-feitas, muito competentes. aquela equipe da cbs, e outros fora, fizeram um trabalho muito bom. cheguei para fazer um trabalho parecido com aquele ali, mas existe uma coisa: aquilo já estava feito. os dois primeiros discos são assim, mas a faixa "vou morar com ela" [de 1971] já é diferente. inclusive tem o dom salvador tocando piano, não sei se você se lembra dele, um negrão que depois foi para os estados unidos e nunca mais voltou. ele tocava um piano de jazz, meio balançadão, meio africano.

eu sabia e queria fazer um trabalho de base diferente do que fazia o roberto carlos, que era o negócio da jovem guarda, porque isso já estava feito. não adiantava ficar fazendo uma coisa que já estava feita. e comecei a ouvir outros artistas fora do país, e achava que podia fazer uma coisa meio cat stevens, meio neil diamond, meio paul simon, meio richie havens, essas coisas assim. eu gostava desses sons de violões quebrados, essas coisas. os discos da cbs eram com renato barros, com lafayette e mauro motta se alternando no órgão, o pachequinho, que era o maestro da cbs, muito competente, por sinal. mas era dentro do que roberto carlos já tinha feito.

quando estourei "vou tirar você desse lugar", acabava de vender 800 mil discos, era um absurdo para a época. queriam que eu fizesse um disco na semana, rapidamente, para aproveitar a deixa do mercado. falei que fazia, mas propus a seu evandro, junto com rossini pinto, um projeto pronto que eu já tinha. seu evandro disse "não, você vai fazer exatamente como eu estou... [se interrompe] como a gente sempre fez. você pega o renato barros e o lafayette, vai para o estúdio e grava, essas músicas aqui que nós já escolhemos". só que meu contrato tinha acabado, e eu falei "não vou fazer".

foi quando saí e fui fazer esse projeto com jairo pires, na philips. toquei com josé roberto bertrami, o mamão e o alexandre malheiros, que depois vieram a virar o azymuth. eles se conheceram nesse meu disco, gravando comigo. eu queria fazer justamente um som diferente. se você pegar o som desse disco, a forma de tocar, e comparar com os da cbs, vai ver uma diferença muito grande.

até o "vou tirar você desse lugar", o som era padrão cbs, que era diferente do das outras gravadoras. era o som do seu evandro, que ficou conhecido como jovem guarda. mas quando fui com a letra do "vou tirar você desse lugar", o negócio da puta, rossini pinto quase morre. disse "não vai gravar isso coisa nenhuma". ele achava que aquela letra não tinha a nada ver, um menino de 22 anos de idade cantando negócio de puta. só que eu tinha vivido aquilo dentro da boate. eu tocava nos barzinhos, eu via aquilo, via as pessoas irem lá para tomar uma cachaça e se apaixonarem, ficarem loucas por aquelas mulheres. muitos, ou alguns, chegaram até a largar a família para ficar ali com elas. era uma realidade, e rossini não queria. já era uma mudança, porque eu descobri que não adiantava eu ficar falando daquilo que roberto carlos, erasmo carlos, jerry adriani e outros já tinham falado. eu tinha que falar de uma coisa nova, você tem que trazer uma coisa nova. e o "vou tirar você desse lugar" era uma letra nova.

descobri também que, por exemplo, roberto carlos cantava "eu te darei o céu, meu bem, e o meu amor também" ["eu te darei o céu", de 1966], era perfeito. só que as pessoas já estavam indo para o motel, para a cama. o namoro das pessoas já não era mais o namoro do portão, nem de olhar estrelas no céu. era também isso, mas na verdade as pessoas já estavam transando, o relacionamento do namoro já era sexo mesmo. as pessoas estavam praticando sexo antes do casamento, no namoro. não estavam mais se apaixonando apenas por pegar na mão, como se falava nas músicas, negócio de cordão, anel, beijo na boca. não, já estavam transando, e eu observei aquilo. e fui eu que comecei a fazer minhas letras nesse sentido.

pas - fazer isso também era uma forma de você se diferenciar do roberto?

oj - diferenciar e ser mais direto. por exemplo, tenho uma música depois do "vou tirar você desse lugar", que é "esta noite você vai ter que ser minha" [de 1972], que para a época foi um palavrão: "esta noite você vai ter que ser minha", quer dizer, você vai transar. era um absurdo. então achavam que as minhas músicas eram obscenas, sei lá. cansei de ouvir "pô, mas você não tem outro assunto?, só fala de cama". tem até uma música minha que paulo cesar de araújo achou num baú da universal, que é "em qualquer lugar", que a censura proibiu e não deixou sair, como outras. você escuta hoje, a letra não tem nada. para a época era um absurdo, porque não se falava em transar, nesse negócio de coxas, pernas, esse envolvimento do corpo. não podia falar. roberto carlos não falava. ele veio falar disso depois.

pas - ele depois seguiu a sua linha, não foi?

oj - ele depois foi forçado a falar. fala muito bem, fez músicas maravilhosas, como "café da manhã" [de 1978], "os botões da blusa ["os seus botões", de 1976]. depois ele desnudou a mulher maravilhosamente. mas ele não falava, ele era meio grilado.

pas - você acha que foi forçado? não foi porque ele quis, mas porque o mercado impôs?

oj - acho que o mercado obrigou ele a falar, né? as coisas vão se encaminhando. acho que isso foi legal. uma das minhas primeiras músicas, "minhas coisas", que está no nome do rossini pinto, mas é minha e dele, já é uma tragédia, já é meio tipo noel rosa, meio dolores duran. é a roupa, o casaco que ele emprestou para a pessoa, que se acostuma com a pessoa, a pessoa vai embora, aquele casaco fica... é aquela coisa dos objetos, às vezes você se separa de uma pessoa, tem gente que nem consegue morar mais dentro da mesma casa, porque lembra muito... então eu comecei a falar desse tipo de coisa. e tinha uma coisa que eu também gostava muito de fazer, que é como se fosse uma reportagem musical. eu até achava que era mais um repórter musical que um compositor. é você pegar um fato que está acontecendo com as pessoas no dia-a-dia e devolver em forma de música.

o negócio da pílula ["uma vida só (pare de tomar a pílula)", de 1973], por exemplo, por quê? porque o anticoncepcional, na época, era um tabu muito grande. se você estivesse conversando com pessoas e tocasse no assunto, perguntasse para a mulher de um amigo seu, "que anticoncepcional você toma?, porque o que a minha mulher está tomando está dando enjôo"... você era tido como uma pessoa super indelicada, "não convida mais ele não, o cara tem umas conversas bobas".

pas - isso aconteceu com você?

oj - é, "você está tomando aquele?, minha mulher toma, incha o peito", assustava. o cara achava que você estava indo na intimidade da mulher dele. era como se você estivesse perguntando qual era a cor da calcinha dela. essas coisas me grilavam muito. você ia na farmácia para comprar um anticoncepcional para sua mulher... eu fui várias vezes, eu mesmo até achando isso um absurdo... se tivesse uma atendende mulher e eu fosse comprar, eu ia para outra farmácia. e se a minha mulher chegasse numa farmácia e tivesse você como atendente, era não ia lhe pedir. era um tabu.

pas - mais tarde isso também aconteceu com a camisinha...

oj - com a camisinha, com esses dilatadores de vasos, os viagras e seus similares. o cara vai, se tiver uma mulher no balcão ele não pede [ri]. esse tipo de coisa eu observei. comentei isso da pílula com um amigo meu, ele perguntou por que eu não fazia uma música falando, falei "mas pílula é um negócio tão antimusical...". mas eu tinha vontade de falar, para popularizar a coisa. e acho até que o governo proibiu a música errada, até porque quando proibiu ela já era sucesso, já era primeiro lugar na parada. fazia sucesso com criança, a música não tinha nada, era um refrão e mais nada.

se o governo queria que as pessoas tomassem a pílula, a melhor coisa que tinham a fazer era deixar minha música tocar no rádio. as pessoas não sabiam nem o que era pílula, eu estava explicando o que era. o governo tinha uma campanha "tome anticoncepcional gratuito", "vá até o posto". o governo queria controlar esse negócio de o cara não ter dinheiro nem para comer e ter 300 filhos. não só no brasil, como em toda a américa latina, houve uma campanha muito forte, tanto é que a música foi proibida em toda a américa latina. eu lancei ela em castelhano em vários lugares, e onde cheguei o cara dizia "não pode tocar".

esse negócio da empregada doméstica, por exemplo, eu cheguei no programa de um radialista em são paulo, ele tinha mania de sindicato, luiz eduardo. fui para dar uma entrevista e ele estava lá. quando cheguei ele estava lendo um texto sobre a empregada, que a empregada servia para a iniciação sexual do filho do patrão, mas não servia para casar com o filho do patrão. servia para fazer comida, mas não servia para entrar pela porta da frente. eu achei aquilo interessante, perguntei de quem era o texto, ele disse que era dele. achei legal, pedi para usar para fazer uma música, fiz "deixe essa vergonha de lado" [de 1973]. o que ele estava dizendo é que a pessoa dormia lá nos fundos, tinha vergonha de ser empregada, porque existia todo esse preconceito. peguei e criei, evidentemente, em cima das coisas dele, um romantismo. ele estava metendo o pau, mas eu criei uma história de amor.

a empregada doméstica não era nem sindicalizada ainda. foi a partir daquele movimento da gente. era uma forma de você mexer também com a cabeça das pessoas, conscientizar as pessoas. nem sempre você, para fazer uma coisa politizada, precisa estar metendo pau no cara que está no poder. você pode falar sobre outras coisas e estar esclarecendo, também.

pas - mas, quando criou a música da pílula, imagino que você nem desconfiava que o governo ficaria bravo com aquilo. ou passava pela sua cabeça?

oj - não. eu já tinha tido um problema com eles da censura, umas três músicas antes, mas por causa de negócio de cama. eles achavam que eu estava abordando o assunto sexo de uma forma que eles não queriam. os caras eram muito caretas, na verdade. então o lance é aquele negócio da hipocrisia, né? o cara é hipócrita, é moralista dentro de casa e não sai de um cabaré para transar com as prostitutas lá. o povo, ou a sociedade, ou a comunidade, sei lá, é muito hipócrita. eu tive alguns problemas com a igreja católica, também. quando o joão gordo descobriu que eu tinha sido excomungado por um bispo, ficou todo feliz, "pô, eu não sou excomungado, que barato o cara ser excomungado!".

pas - você foi mesmo?

oj - o cara me excomungou. joão gordo me perguntou como me senti ao ser excomungado, eu disse que nem me lembro. ele: "pô, eu faço um monte de merda e ninguém me excomunga!". porque é hipocrisia. às vezes a religião é muito hipócrita. eu bati muito com isso. no negócio da pílula, não me passou pela cabeça que aquilo poderia nem sequer... tanto é que ela não foi censurada. mandaram a letra para lá e o cara aprovou. não tinha nada demais. depois é que veio aquele efeito todo, o sucesso muito rápido, e acharam que estava sendo contraditório com o que eles queriam. o governo queria que a pessoa tomasse, e uma música dizia "não tome".

pas - na verdade, você estava sendo frontalmente contra o governo naquilo. você tinha consciência disso?

oj - não. mas acontece que tinha uma coisa engraçada aí. a forma como a letra diz estava esclarecendo as pessoas para que é que a pílula servia. acho que eles poderiam ter usado ela muito mais deixando livre do que castrando a música. na verdade não adiantou muito, ela existe até hoje.

pas - os militares viam oposição em todo canto, como se você estivesse afrontando eles. mas não foi essa a sua idéia, não é?

oj - é. tenho uma música chamada "a primeira noite de um homem", não tem nada a ver com o filme, que eu nem sequer assisti. era para ser faixa 1 de um lp meu, depois do disco da pílula, 1974, era a música de trabalho. uma vez que você mandava aquele rolão de fita para a indústria, não tinha como tirar nada. mas a partir desse episódio da pílula, antes de ir para o estúdio tinha que depender deles. não era mais a gente que escolhia as músicas. para fazer 12, tinha que ter um universo de 25, para saber o que a censura ia deixar gravar. essa "primeira noite de um homem" que proibiram, cheguei a ir a brasília conversar com as pessoas. estive, por intermédio de um senhor já falecido, aderbal guimarães, na sala do general golbery do couto e silva. ele tinha acesso, fiquei lá por volta de um minuto e meio, dois minutos. o cara se dispôs a ir comigo lá para ver se a gente conseguia liberar essa música. e me levou até o general. o guimarães queria saber "o que o menino pode mudar aqui". golbery nem olhou na minha cara. falou que não podia mudar nada, "o que está proibido é a idéia". falou isso para o guimarães, não para mim, que na minha cara ele nem olhou.

pas - o golbery em pessoa tinha lido a letra?

oj - não, não era isso. o departamento de censura vetou de todas as maneiras. o departamento jurídico da gravadora tinha recorrido, mas não conseguiu. o guimarães trabalhava com a gente, ficava muito com a gente, gostava desse negócio de artista. ele gostava muito do jairo pires, era muito amigo, então disse que podia tentar. então ele me levou lá, eu nem sabia para onde ele estava me levando. de repente eu vi que estava na frente do general.

pas - o que você sentiu frente a frente com golbery?

oj - não senti muita coisa, não. fui com guimarães andando, pensei comigo, "ih, guimarães está viajando na maionese, não vai acontecer nada". mas, de repente, nego conhece o cara, parece que estudou junto num colégio militar no rio, é amigo do passado dele... mostrou o papel, foi rapidinho. golbery olhou, ele sabia quem eu era, mas não estava interessado em saber. falou "o que está proibido é a idéia, e o resto, como vai?". acho um absurdo, você não pode ter idéias? eu questionei, foi por isso até que ele falou "então fica para a próxima, aderbal", foi com tudo. mas como é que pode?, a música falava da primeira vez que um cara tem o corpo da mulher para o sexo na cama - antes ele nunca tinha feito sexo -, do medo de errar, de fracassar, de não fazer direito, de não dar conta de fazer, de não agradar a mulher, essas coisas todas.

eu disse: "general, eu só queria entender uma coisa. o senhor disse que a minha idéia está proibida", ele olhando com uma luzinha acesa para o aderbal, "mas como é que a minha idéia está proibida?, uma proposta normal, um homem com uma mulher, e vocês autorizam o ney matogrosso, secos & molhados, com uma proposta totalmente andrógina" [opa!, tentou transferir para diante a opressão, a repressão?]. os secos & molhados tinham acabado de fazer um show entupido no maracanãzinho. não que eu tenha nada contra o ney, mas o que o ney faz é... eu falei, ele nem na minha cara olhou, "então tá, aderbal, um abraço, foi um prazer te ver, tchau", botou a gente para fora, tipo "tira essa cara daqui".

depois de um certo tempo ficou até difícil eu trabalhar. vim fazer o disco "o filho de josé e maria" [de 1977], acho que a igreja achou que eu estava sacaneando jesus cristo, aí, pronto, já excomungou. tem uma hora que você perde um pouco..., a pior censura que tem é quando você se autocensura. você vai escrever e já fica se autocensurando, "será que eu posso colocar isso?". aí fica difícil fazer qualquer coisa. mas depois passou.

pas - golbery era um dos homens mais importantes do país naquele momento, não é chocante pensar que ele interferia diretamente numa coisa corriqueira como a letra de uma canção?

oj - o cara foi pedir um favor a ele, para que ele interferisse. e ele não quis interferir.

pas - mas no mínimo ele gastou um tempo com isso...

oj - gastou um tempo, três minutos.

pas - não podemos pensar que aquilo tinha uma importância concreta, por ser um assunto que ia atingir muita gente, ter um alcance popular muito grande,?

oj - é, todo mundo devia saber que a música da pílula estava proibida. ele sabia, sabia quem era o odair josé. naquela ocasião, se se fizesse uma pesquisa das 20 pessoas mais conhecidas do brasil, eu estava entre as 20. então ele sabia de que se tratava. nem na minha cara olhou.

pas - os problemas de censura, com você, eram quase sempre relacionados a sexo. o que você pensava disso?

oj - achava que eles eram hipócritas, aquele negócio do cara que vai à igreja à missa das sete, reza, reza, reza, almoça com a mulher em casa e vai transar com a secretária de quem ele é amante. ou então o cara que finge que não sabe o que é o sexo. hoje, não, as coisas estão muito diferentes. mas na época sexo era um tabu, como se fazer sexo fosse um grande pecado. um tempo atrás, quando começou essa onda "na garrafinha", "o gargalo da garrafa", "agacha aqui" "levanta ali", aquelas músicas da bahia [opa!...], fiquei pensando que, pô, se aqueles generais estivessem vivos... [ri] os caras iam fazer a festa. minha música, perto disso aí, é história da xuxa.

pas - a axé music foi prova de que não adiantou nada proibir, que quando se abriram as porteiras o sexo voltou mais forte que nunca.

oj - é verdade.

pas - voltando atrás mais um pouco: você saiu da cbs justamente quando fez seu primeiro grande sucesso até então, "vou tirar você desse lugar". em seu livro, paulo cesar de araújo afirma que "vou tirar você desse lugar" era um pouco também você pensando que queria sair da cbs...

oj - o que aconteceu ali foi que fiz um contrato de dois anos, durante os quais fiz dois lps, participei de duas coletâneas "as 14 mais" e fiz dois compactos. o contrato acabou, e foi quando eu soube pelo rossini pinto que a empresa não estava muito satisfeita com os meus resultados, inclusive por eu ter gravado a última faixa das "14 mais" com o dom salvador, sacudindo o piano com jazz e africano. seu evandro achou aquilo um absurdo, que eu tinha era que ter gravado com lafayette, com órgão, que eu estava querendo modernizar uma coisa que não tinha nada a ver. então disseram que iam me dar mais uma oportunidade, para fazer mais um disquinho lá de favor. foi quando vim com a idéia do "vou tirar você desse lugar", e rossini falou "pô, já estão fazendo negócio de favor com você e você ainda vem com essa música de merda?". tanto é que botou "vou tirar você desse lugar" como lado 2 do compacto. o lado 1 era uma música dele.

aí o compacto saiu, eles não trabalharam a música, não me deram estrutura para trabalhar, e a música em dois meses estourou sozinha. porque os radialistas pegaram, acharam legal, começaram a tocar, e o povo comprou. quando seu evandro veio correndo para eu fazer um lp, aí a conversa mudou toda. eu não queria sair da cbs, mas queria que ele deixasse eu fazer o disco da forma que eu pensava. eu queria mudar a forma de gravação e de tocar, queria tocar com outros músicos, queria fazer o que ele não tinha gostado que eu fizesse no "vou tirar você desse lugar". aí ele disse que aquilo não faria. "então, se o senhor não faz, eu vou sair daqui", e saí.

pas - quando compôs "vou tirar você desse lugar", você já estava contrariado com as posturas da gravadora?

oj - o engraçado, quem conhece o rio vai saber do que estou falando, é que a cbs ficava na visconde de rio branco, 56, quase esquina da gomes freire. eu morava na rua do riachuelo, um pouco mais acima, uns cinco quarteirões acima. quando rossini me disse "você vai fazer mais um compacto e depois, se não der certo, tchau e bênção, você também já fez merda", aquelas conversas, eu saí andando dali, e da porta da cbs até minha casa eu fiz "vou tirar você desse lugar". fiz "olha, da primeira vez que eu estive aqui...". cheguei em casa e gravei num gravadorzinho. engraçado, parece que é coisa mandada. rossini disse "você vai fazer mais um compacto, não vai ter mais lp, não vai renovar contrato, porque seu evandro...". saí dali, fiz, depois voltei para mostrar para ele, "então, já que vai ter mais um compacto, ó a música que eu fiz". e ele, "nem pensar, isso é horrível". depois, como ele era meu amigo, convenci ele a deixar gravar. mas a música foi feita após eu saber que eu não mais interessava à empresa. engraçado isso, né?

pas - e já estava fazendo uma coisa fora dos padrões daquela empresa que não estava valorizando você...

oj - eu saquei, parece que algo me dizia que eu tinha que fazer uma coisa fantástica para poder a empresa me querer. e eu achava que "vou tirar você desse lugar" era uma coisa fantástica. veio naquele momento a idéia, até então eu não tinha mexido com nada.

pas - a história hoje pode parecer curiosa, mas era cruel também, não? eles usavam mesmo esse linguajar de "o que você faz é uma merda", "nada do que você faz dá certo"?

oj - mas porque ficaram putos e chateados por achar que eu não respeitar, na música das "14 mais", "vou morar com ela", o segmento de trabalho que a empresa tinha no mercado. eles acharam que eu modifiquei, "como?, o cara faz um trabalho copiando roberto carlos e agora vem com esse negócio?, então não interessa mais". mas também não sei se foi bem assim que a coisa foi colocada, porque rossini pinto também tinha essa forma de dizer as coisas, sempre foi muito assim tipo "tá uma merda", "você pisou na bola". ele era mesmo assim, as pessoas nem falavam dessa forma, mas ele já dizia assim. era aquele negócio, ou sacudia a pessoa ou então derrubava [ri] a pessoa de uma vez. era um jeito dele.

pas - você devia até estar acostumado com esse jeito?...

oj - é, eu já estava acostumado, conhecia ele fazia dois anos. e de repente essa música, feita 34 anos atrás, é uma música que ainda existe. canto em todos os shows, ela está sempre sendo regravada. agora está o paulo miklos cantando ela no tributo, caetano veloso já cantou ela comigo, lindomar castilho regravou.

pas - antes do episódio da pílula, essa música especificamente não causou escândalo?

oj - não, passou normal.

pas - mas todo mundo entendeu do que tratava?

oj - entendeu, que era uma pessoa que tinha ido a um puteiro tomar uma cachaça, se apaixonou por uma moça ali da vida fácil e quis tirá-la daquele ambiente para morar com ela. mas sempre acreditei, mesmo, que se você casar com uma pessoa, vamos dizer assim, uma prostitua, se ela, por opção dela, resolver ficar com o cara, se não for uma coisa que o cara está comprando ou tentando convencê-la... se ela estiver convencida daquilo, será a mulher mais honesta do mundo. será mais difícil uma mulher dessa trair o cara do que uma que ele casou no altar. por quê? porque a do altar não conhece nada, vai ter suas curiosidades, saber como é o pedro, como é o joão, como é o fulano. a prostituta, não, ela já sabe. se ela for ter um envolvimento convicto do que está acontecendo, será uma mulher maravilhosa. baseado nisso também é que eu fiz a canção.

pas - imagino que foi essa música, com o sucesso que fez, que atraiu a philips a querer contratá-lo. e você chegou numa gravadora que tinha todo o elenco mais festejado da história da mpb, até hoje.

oj - é, depois de "vou tirar você desse lugar" todas as gravadoras queriam. você é o que mais vendeu no mercado, você está por cima da carne seca. eu estava, aí tive como escolher, e optei por ir trabalhar na philips. foi muito legal, a equipe era muito forte.

pas - mas como você se sentia diante desses artistas que hoje são mitos, como elis regina, caetano veloso, chico buarque, mutantes...?

oj - convivia com eles lá, na mesma empresa. batia com eles pelos corredores, pelos estúdios. eram pessoas muito educadas, muito simpáticas. nunca senti ninguém me olhando por cima. até porque, naquela ocasião, eles não vendiam discos, você sabe disso. a venda, tanto de elis regina, caetano veloso, gilberto gil, esse pessoal todo, era irrisória. a venda deles era 10 mil, sei lá quanto. a gente vendia 300 mil cópias. então era a gente vendia disco. tem até uma entrevista do presidente da empresa na época, andré midani, em que ele diz que a philips-phonogram, que era o grupo, era quinto lugar no mercado e de repente virou líder, passou todo mundo. e ele diz: "virei líder de mercado com odair josé, com evaldo braga, com tim maia, e não com caetano veloso e companhia". depois foi que essas pessoas vieram a vender discos, até então eles não eram grandes vendedores.

pas - mudando a pergunta, então: vocês não olhavam eles por cima, por vender tão mais que eles?

oj - não, acho que ninguém olhava ninguém por cima e nem por baixo. acho que a gente era igual. a gente sabia que a gente era quem vendia e eles sabiam que eles eram quem dava prestígio para a empresa [ri].

pas - é como se fosse uma sociedade, cada um entrando com uma parte?

oj - embora isso nunca tenha sido comentado, mas era. era uma parceria. acho que era isso que andré queria quando levou odair josé, evaldo braga, o próprio raul seixas. raul foi para lá e já começou a vender disco logo de início. tim maia vendia disco. mas esse outro pessoal não vendia. já na cbs como produtor, raul era vendedor de disco. como compositor, ele sabia fazer coisa popular. tem muita música do raul que as pessoas não sabem que é dele, que vendeu horrores na voz de cantores populares.

pas - para você era natural? ou ter que vender muitos discos e ser o cara que ia dar muito lucro para a gravadora era uma pressão?

oj - sempre vi o meu trabalho como trabalho. sempre achei que só faz sucesso aquilo que é bem feito e quem corre atrás. você tem que fazer a coisa direito, na confecção da gravação e depois, no correr atrás do disco, ajudado pela empresa. o sucesso não é uma dádiva, não é "eu sou bom", "eu sou melhor do que o outro". não, sucesso é um trabalho que por acaso ficou mais competente que o outro. e a competência vem do esforço pessoal. não é porque você tem os olhos verdes ou porque você canta demais ou porque você é melhor do que o outro compondo. conheço um monte de gente que estava comigo nas portas das gravadoras, tinha mais talento que eu e nada aconteceu. porque não eram competentes na forma de buscar o espaço deles, estavam sempre na hora errada falando com a pessoa errada. e, às vezes, essas pessoas, por achar que eram muito competentes... é como dizem, dizem que mulher bonita demais ou cara bonito demais fisicamente às vezes é ruim de cama, né? porque a pessoa pensa "não, já sou tão bonito, por que tenho que me esforçar?". é a mesma idéia.

é tudo uma parceria. agora mesmo estou lançando um disco e acho que ele pode vir a dar certo por causa disso. a deck disc está atrás, quer correr atrás, acredita no projeto, então pode ser que dê certo. acho que o disco está bem gravado, é um cd com 12 faixas inéditas, produzidas por jairo pires, depois de muitos anos [chama-se "só pode ser amor", e saiu em março]. fazia três anos que eu não fazia nada inédito. está bem feito, ninguém brincou no estúdio. porque às vezes o cara brinca, "ah, vamos fazer isso de qualquer jeito".

pas - "pare de tomar a pílula" ficou censurada quanto tempo?

oj - ficou até o [joão baptista] figueiredo, muito embora no governo figueiredo umas coisas que estavam censuradas já não fossem tão... a "pílula", quando foi proibida, foi proibida mesmo. uma vez, numa cidade do espírito santo, eu estava cantando num ginásio, e as pessoas queriam porque queriam que eu cantasse a "pílula". fazia mais ou menos um mês que eu tinha sido comunicado que ela não podia ser cantada. olhei e pensei, "pô, o que custa?, estou aqui no interior do espírito santo", toquei... quando saí, tinha um pessoal da polícia atrás, me levaram até a delegacia da cidade para me relembrar que eu tinha consciência de que aquilo não podia ter sido feito, "por que foi que fez?". mandaram eu assinar uns documentos lá, assinei, para não fazer. fiz isso mais outras vezes, e todas as vezes que fiz fui comunicado que não fizesse novamente isso.

pas - ou seja, você enfrentava a censura?

oj - eu achava que tinha que fazer, que eu tinha que cantar mesmo. sempre que pude, eu cantei. uma vez vim fazer um programa na tv globo de são paulo, quando cheguei ao estúdio para fazer o programa, era ao vivo, acho que era silvio santos. tinha dois censores lá esperando eu chegar, para me lembrar que eles estavam ali e que estavam ali porque eu não podia cantar aquilo.

pas - chacrinha fez campanha contra a "pílula", defendeu que ela devia mesmo ser censurada, não foi?

oj - não, o caso do chacrinha foi diferente. o estouro de "vou tirar você desse lugar" foi quando fui levado para a televisão. já tinha cantado na tv e tal, mas quando você está com a música mais tocada do rádio e tem o disco mais vendido, então você está em todos os musicais da televisão. e o seu abelardo tinha dois programas na globo, que eram "a discoteca do chacrinha" e "a buzina do chacrinha". um era só com profissionais de disco, às quartas, e o outro era de domingo, com profissionais de disco e calouros. eu estava sempre nos dois, muita televisão. e o chacrinha saiu da tv globo e foi para a tv tupi. então toda aquela ligação que ele tinha com a rede globo e com roberto marinho foi cortada. como radialista, tinha programa na rádio globo e passou a ter na rádio tupi. com a saída do chacrinha, a globo contratou algumas pessoas, e eu fui uma dessas pessoas contratadas.

fui contratado para ser um cantor exclusivo da tv globo por dois anos. então eu tinha quatro obrigações mensais de cantar na tv globo, nos musicais deles, que foi quando começaram com "globo de ouro", "fantástico", não sei mais o quê. então, se fui contratado, eu não podia mais cantar no chacrinha. e chacrinha não entendia muito aquilo, "ah, quer dizer que quando precisou vivia no meu programa, agora não precisa mais e não vem aqui". então ele fez uma campanha, por acaso foi na onda da "pílula", que era a bola da vez. mas chacrinha estava contra era o artista que não podia cantar no programa dele nos diários associados.

até que um dia eu pedi ao boni, para que eu pudesse ir ao programa do chacrinha nos diários associados. liberaram que eu fosse uma vez, mas que eu não pedisse de novo porque não seria atendido. mas a bronca do velho era essa, não era porque "pílula".

pas - aí ele acalmou?

oj - passou a falar comigo de novo. ele metia o pau, mas era por causa disso. odair josé não pode vir aos programas? então ele também não vai tocar o disco dele aqui. ele tinha colunas nos jornais, que nem era ele mesmo que escrevia, mas "vamos meter o pau". ele não aceitava.

pas - o livro "eu não sou cachorro, não" diz que você chegou a ir embora, a ir morar na inglaterra, nessa época em que a barra ficou mais pesada. como foi?

oj - deixa eu explicar. não foi nem por causa de barra pesada. a inglaterra sempre foi um sonho para mim, desde morrinhos. tinha um mascate lá, um sírio-libanês que todo mundo chamava de turco - no interior todo mundo é turco, nem sabem que os turcos e o resto deles lá não se dão. esse turco se tornou padrinho do meu irmão mais novo, donizete, que hoje, inclusive, é jornalista e mora nos estados unidos. esse cara aparecia lá com umas revistas, eu era pequenininho e ele me deu uma que tinha uns castelos, e eu sempre fiquei com aquilo na cabeça, londres, londres, rei, castelo... no que tive uma grana, fui conhecer londres. já tinha ido a festivais na venezuela e em porto rico, já tinha viajado pela américa latina, e quando pintou uma grana falei "vou para londres". arrumei um apartamento, aluguei. eu também tinha tido uns problemas pessoais, de relacionamento, e fui para londres.

teve até uma vez que um cara da censura chegou a fazer uma carta para a philips sugerindo que a empresa não gravasse mais comigo, porque eu não era uma pessoa bem-vista por eles, porque eu, com meu trabalho, descaracterizava os bons costumes da família brasileira. então, ó, "se eu fosse vocês, não gravava com esse cara, esse cara não é legal". houve, realmente, um negócio assim, mas a empresa achou aquilo rídículo. até achou legal, ah, os caras não querem que grave com ele, que bom, agora vamos gravar mais disco ainda. naquela empresa, também, só tinha nego contestador, então achavam isso um barato. e era paulo coelho que fazia a assessoria de imprensa, totalmente da pá virada. e tinha nelson motta, artur da távola, só tinha biruta. de certa forma, a gente tinha receio. mas não chegava a ser caso de sair do país, até porque nessa época já não tinha mais esse problema. acho que esse problema de sair do país foi um pouco antes. aí, durante um ano, passei mais tempo lá do que aqui. mas depois passou essa fase.

pas - que outros problemas houve com a censura?

oj - a música "as noites que você passou comigo" também foi proibida. tive que mudar a letra.

pas - a partir da música "deixe essa vergonha de lado", criaram uma alcunha para você, "o terror das empregadas". ouvindo a letra hoje, é difícil entender o porquê desse "apelido". não era pejorativo?

oj - isso foi coisa da rita lee e do paulo coelho. quando eles fizeram aquilo da [cantarola "arrombou a festa", de 1976] "música popular brasileira", eles falam "o odair josé é o terror das empregadas/ distribuindo pílulas, arranjando namoradas". faziam uma gozação em cima de cada artista.

pas - você ficou bravo com a gozação?

oj - não, tô nem aí. teve gente que parece que ameaçou até processar rita lee e paulo coelho, eu achei aquilo muito divertido, a música muito bem feita. do roberto carlos falavam que "parou na contramão", faziam uma crítica. de maria bethânia era "pega o carcará e come". na verdade, eles estavma metendo o pau na música popular brasileira. e eu sou citado como o terror das empregadas na música [ri], aí neguinho já usou a frase deles. as pessoas passaram a usar, até, como você falou, num negócio não sei se pejorativo. a própria imprensa usou isso, "odair josé, o terror das empregadas". o povo em si, "o cantor das empregadas", sim, o que para mim está de bom tamanho.

pas - falar "o terror das empregadas" não era um modo de manifestar um preconceito? você estava contando uma história terrível, de preconceito contra uma moça que tinha vergonha de ser o que era.

oj - pode ser um preconceito. mas sabe o que acontece também? às vezes a pessoa tem preconceito contra aquilo que nem sabe o que é. vejo muita gente meter pau nalguns compositores por aí que nunca sentou para ouvir, nem sabe o que o cara faz na verdade, de que forma foi feito. quem escreve tem o direito e o dever de dar a opinião dele, mas não tem por que querer que quem está lendo pense como ele. às vezes o cara que escreve quer que as pessoas pensem como ele, "acho que o odair josé não é bom, e vocês devem também achar isso." não é assim. e o brasileiro é assim, tem preconceito daquilo e não sabe por que é que tem.

pas - isso é autoritário até, não?

oj - é, não tem nada a ver. o negócio do "cantor das empregadas", do "cantor das putas", é um pouco isso. mas não ligo para isso, não.

pas - mas nisso a sua música sofria preconceito junto, e você também...

oj - olha, na época, quando fiz, nem vi esse preconceito, porque o disco vendia muito, os shows eram entupidos, a gente ganhava muito dinheiro, fazia muito sucesso. não me lembro de ter sido tolhido, de o disco não poder ir a tal lugar, não me lembro de nada que tenha acontecido. mas, de uns dez anos para cá é que percebo melhor as pessoas dizerem que "isso aqui é brega", "isso é malfeito", não sei o quê. nem a palavra "brega" existia, isso é mais recente. esse negócio do preconceito... aliás, não é nem preconceito, é conceito... não tenho conceito nem preconceito sobre as coisas, eu tenho pós-conceito. eu posso não gostar de uma coisa, depois que eu tomar conhecimento daquela coisa. preconceito, não, você tem antes, odair josé vai lançar um disco e você já diz "não, não gosto desse cara". antes de o cara fazer, você já está dizendo que não gosta. não, depois que eu ouvir ou ler é que vou falar. mas, não, tem gente que é "não vi, não ouvi e já acho uma merda".

pas - sua posição é de que, antes de conhecer, deve-se permanecer quieto, sem omitir opinião?

oj - acho melhor. você pode até não gostar, "qualquer coisa que esse cara fizer, pelo que ele já fez, não me agrada". mas daí a dizer que é uma merda tem uma distância muito grande. você não ouviu ainda.

pas - sandro belo, o produtor do tributo "vou tirar você desse lugar", faz uma brincadeira com isso, se referindo às pessoas que gostam, mas têm vergonha de dizer que gostam. você é testemunha disso?

oj - meu trabalho nunca foi das pessoas que se colocam como intelectuais, e eu nem talvez estivesse preparado para fazer um trabalho para esse tipo de gente. meu trabalho não é programado para ser inteligente ou para vender disco. faço o que acho que está dentro da minha capacidade. daí, se vai atingir o pedreiro ou o médico, é uma distância muito grande.

hoje eu percebo que é muito mais fácil para mim cantar para quem está com a vida estabelecida. existe uma coisa engraçada: cantar para quem está com a vida resolvida, para o cara que é classe média. a gente trabalha para quem é classe média, não é nem mais para menininha fanzoca. não sou mais o cantor da fanzoca. o cantor de é o cara que está aí recentemente, é o felipe dylon. a gente já teve essa fase. você não pode ficar 35 anos sendo o cantor de todo mundo, isso não existe. então tenho percebido que tenho cantado mais para o cara que é o gerente do banco, que tem o comércio dele, que está com a vida mais resolvida. acho que estou mais nessa fase. agora a intelectualidade das pessoas, o que é que o cara acha, eu não sei. sei que a gente canta em lugares ótimos e percebe que é para pessoas até esclarecidas. não tenho muito feito sucesso, engraçado isso, entre pessoas não muito esclarecidas. tenho ido muito pouco, não me contratam muito para esse tipo de festas, e nas vezes que vou não sinto que arraso, não.

pas - o que mudou, para acontecer essa inversão?

oj - parece que as pessoas querem uma coisa que não tenha muito que pensar para entender. se você faz uma letra que a pessoa tem que parar para pensar o que é que esse cara está falando, não agrada muito. quem agrada é o cara que vai lá, que mexe com o corpo... tem hoje esse lado no brasil, do homem que rebola, o cara do harmonia do samba, o cara do pagode... esse povo agrada muito mais quem não quer parar para pensar. então eu percebo que em determinados ambientes eu vou e as pessoas não querem muito pensar, "esse cara tem umas músicas chatas".

pas - o disco "o filho de josé e maria" lhe deu muita dor de cabeça, por ser uma versão moderna da história de jesus cristo?

oj - esse deu. "o filho de josé e maria", na verdade, é a história de uma pessoa. disseram que era uma ópera-rock, eu nunca falei isso, mas terminou ficando como uma ópera-rock. é um disco em que aconteceu tudo errado. saiu um disco só, e era para ser dois, só que o outro saiu separado, depois [como "coisas simples", em 1978], com algumas músicas mudadas. foram escritas 22 canções que, na ordem, eram a vida de uma pessoa do seu nascimento até sua morte, passando pelo reconhecimento pessoal, seu conhecimento total. mas não precisa ser exatamente jesus cristo. não me lembro de letra nenhuma que fale em jesus cristo, o que existe é uma música que fala do filho de josé e maria, que nego acha que são "o" josé e "a" maria.

pas - mas você mesmo pensava no josé e na maria de jesus, não?

oj - exatamente, mas pensava no sentido de que a igreja bate muito numa tese... até para batizar um filho você tem que ser casado na igreja. não sei em que cartório josé e maria foram casados. deve ter lá em israel ou na palestina um cartório. é a hipocrisia a que eu me referia antes. a religião é muito hipócrita. a primeira vez que estive em roma, que entrei lá nas igrejas do vaticano, voltei para o brasil apavorado. e com raiva da igreja, porque cada castiçal daqueles mataria a fome de uma porrada de gente. muito embora ninguém tenha culpa da incompetência de governos e outras coisas, mas a igreja... é muito poder, é muita hipocrisia aquilo. é "faça o que estou mandando, faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". jesus é a mesma coisa. não sei, se jesus voltasse à terra como o filho de deus, quem iria ter mais problema com ele seriam as igrejas. os católicos, evangélicos, muçulmanos, eles iam ter muito problema com o próprio filho de deus.

esse disco veio muito também de uma idéia do gibran khalil gibran, do livro "o profeta". é um cara que está numa ilha e a pessoa chega, "profeta, me fala dos filhos", "profeta, me fala do amor", do dinheiro, da traição. e ele fala, enquanto espera o navio que perdeu. e cada música de "o filho de josé e maria" é também, no meu modo de ver, um conceito sobre um determinado momento da vida do ser humano. é composto e tocado de uma maneira bem diferente da que eu vinha fazendo. tanto é que saí da philips, porque a philips não queria fazer.

pas - por quê?

oj - porque achava que não era comercial, que não ia dar certo. e a rca me contratou, me dando grana, estrutura enorme, porque achava que eu ia fazer um disco e vender como vendia. e quebraram a cara, porque fiz um disco que não vendeu nada. esse disco foi um fracasso comercial. mas é, na minha opinião, um dos melhores trabalhos que fiz.

pas - você atribui esse fracasso comercial à temática dele?

oj - é, a temática dele é totalmente errada para o odair josé. as pessoas não aceitaram.

pas - ao mesmo tempo, é tão provocativo quanto tudo que você tinha feito antes.

oj - tanto é que... eu fui fazer esse negócio no teatro, fui trabalhar com guilherme araújo [empresário dos tropicalistas], ele virou meu empresário. as pessoas acharam que eu só tinha feito esse disco porque queria cantar em teatro, porque estava fugindo daquela coisa popular. não era nada disso, era porque esse tipo de coisa tinha que ser feita no teatro, as pessoas tinham que sentar para assistir. não era para assistir sem prestar atenção, assistir por assistir. foi por isso que fiz. mas não foi legal. foi um fracasso, e não só comercialmente, foi em todos os sentidos.

pas - você foi até excomungado por causa dele...

oj - até excomungado pela igreja eu fui. uma ala da crítica não gostou, porque achou que eu estava querendo fazer disco para agradar. e não foi nada disso. a única pessoa que achou que devia ser feito fui eu. todo mundo que ouvi disse "não faça, isso vai ser um erro". nunca ouvi uma pessoa dizendo "muito bom, faça". todos disseram que era um erro, mas eu fiz. e realmente, para esse negócio do artista que vende disco, que vai fazer o 13º da empresa com todo disco que lança, ele foi um corte.

pas - dá para dizer que mudou a sua história?

oj - mudou. para pior ou para qualquer lugar, mas que mudou, mudou. ele não tinha intenção de ser, mas foi um corte, um machadão mesmo. chegou e cortou, acabou aqui. talvez tenha sido, até tem cara que acredita que foi praga de deus, porque eu estava brincando com a verdade da igreja.

pas - em algum momento você chegou a acreditar nisso?

oj - sei lá, a gente nunca sabe [ri].

pas - há coisas muito delicadas ali, você parece inclusive insinuar que jesus cristo era homossexual.

oj - mas coloco não aquele jesus específico lá, e sim o jesus de todos os dias.

pas - ele era homossexual?

oj - em determinado momento, o personagem não tem certeza de que lado ele está. ele não sabe se é bicha, se é um taradão, se é um doidão, se é um filósofo... mas são os estágios da personalidade dele. e não é exatamente jesus cristo. é o filho de josé e maria. o meu pai, por exemplo, se chamava josé. não tem nada a ver. minha mãe não se chamava maria, ela se chamava antônia. mas a idéia é também trazer um pouco... o negócio do jesus cristo da bíblia, que eu leio, não é bem a história que as igrejas passam para a gente. eles mesmos não seguem. eu jamais estaria fazendo uma brincadeira, a história é "o filho de josé e maria" porque todos nós somos filhos de deus, a história não é essa? simbolicamente, somos irmãos de jesus cristo, só que as igrejas, todas elas, seja qual for, mostram deus de uma forma que eu não concordo. esse disco fala um pouco disso, até para questionar.

em algumas canções mostro um cara revoltado, em outras um menino perdido, que foi abandonado. de certa forma, nós somos abandonados na vida. o próprio jesus também foi, bateram no cara, pregaram numa cruz, fizeram horror com o cara. acho até engraçado ir na igreja, não gosto muito da idéia do jesus cristo pregado na cruz. acho aquilo ali uma derrota incrível, já que eles querem mostrar ressurreição. prefiro a igreja sem ele na cruz. mas, por outro lado, também, algumas páginas do evangelho eles excluem. existe muita conveniência, umas páginas ali que vão pular, não vão falar. existe é muita hipocrisia.

pas - antes você já havia tocado em várias dessas hipocrisias, nesse momento mais outras, como a questão da homossexualidade. por que você resolveu abordar isso?

oj - não sei, eu não lembro se houve um propósito específico. sei que fui compondo, meti na cabeça que ia fazer isso e fiquei um ano fazendo. não saía de casa. ficava mexendo no piano, mesmo sem saber tocar. fiquei procurando fazer uma coisa que eu achasse que fosse diferente, e que tivesse qualidade, não só na forma de tocar, mas também na forma de dizer. não vou dizer que está errado o cara que faz todo ano um disco igual, de repente até é certo para o mercado - o cara que todo ano repete a mesma fórmula vende disco todo ano. é o negócio do refrigerante, se a coca-cola já existe nós não vamos mudar o sabor, deixa como está, as pessoas já se acostumaram. mas eu, não, já acho que o artista tem o direito e até um pouco a obrigação de de vez em quando arriscar. e foi o que eu também tentei fazer como músico: uma coisa nova. volto a dizer, uma coisa que ninguém na época concordou. só eu quis fazer mesmo, assumi o risco de dar errado, e deu errado.

pas - mas deu errado por algum critério determinado, não por todos.

oj - de uns tempos para cá, eu já cansei de ouvir altos elogios a esse trabalho, que não ouvi na época, "ô, bicho, aquele seu disco é fantástico", mas agora. na época todo mundo achou uma merda. agora mesmo, no disco do tributo, a banda shakemakers regravou "nunca mais", que é uma faixa daquele disco. achei muito legal.

pas - por outro lado, havia músicas mais polêmicas daquele disco que poderiam ter sido retomadas no tributo. mesmo os meninos mais novos parecem ter um certo medo de "filho de josé e maria", não é?

oj - tem uma música chamada "não me venda grilos", que é muito boa. "o sonho terminou" é muito boa. regravaram "nunca mais", que é a faixa talvez mais comercial do disco.

pas - depois da história da pílula, você foi um dos caras que fez campanha pelo divórcio no brasil, em música.

oj - tenho uma música que fez um sucesso danado, chamada "na minha opinião" [subtítulo "eu te quero, te adoro, te gosto", no disco "odair", de 1975; o mesmo lp inclui a faixa "viagem", de versos como "venha comigo/ na minha viagem/ não se preocupe, eu tenho as passagens", que fala de modo bastante explícita sobre o uso de alucinógenos - mas sobre essa eu esqueci de fazer perguntas...]. digo na letra que o importante para as pessoas serem felizes não é um documento de cartório, não é uma aliança. é uma cumplicidade entre um homem e uma mulher, sei lá, entre um casal. já é uma coisa que a sociedade de modo geral não concorda muito. as pessoas acham que a pessoa para ser casada e feliz tem que ter um documento. não sei, não entendi até hoje para que é válido o documento, se é para a pessoa ter segurança. a igreja católica não reconhece o cara que é divorciado. a igreja não aceita, mas na bíblia está escrito que se você não der a alforria... se você se separa da sua mulher e não dá a ela uma carta de liberação, você vai estar levando ela a estar no pecado. a própria bíblia de que as religiões falam tanto diz para fazer uma coisa e eles têm o comportamento contrário.

pas - é um dos trechos que você diz que a igreja católica pula.

oj - pula, diz "você já é casado, você não pode". mas o próprio deus que você segue disse que tinha que ter! quer dizer, você segue a palavra de deus no que lhe interessa, no que lhe é conveniente. depois, quando fiz a música falando especificamente do divórcio, foi quando nelson carneiro estava numa batalha danada para conseguir e o divórcio tinha acabado de sair. aproveitei [ri] e gravei um compacto [em 1978] com "agora sou livre (o divórcio)" de um lado e no outro "o crime da barra", que me criou um problema danado no rio de janeiro. um achava que "o crime da barra" era a cláudia lessin rodrigues, outro achava que era uma mulher maluca que estava presa porque mataram umas pessoas e desovaram os corpos na barra. acharam que eu estava falando do crime, queriam uma indenização por isso. e eu nem estava falando de coisa nenhuma, mas de um monte de crimes que acontecem todas as noites em qualquer lugar, de pessoas que saem para a balada e não voltam.

pas - nisso a lei do divórcio já tinha sido aprovada?

oj - já, tinha acabado de ser aprovada.

pas - essa então não teve problema de censura?

oj - essa, não.

pas - é verdade que você foi uma das primeiras pessoas a obterem o divórcio no brasil?

oj - fui o quarto, segundo o advogado paulo lins e silva. eu já era separado [da cantora diana] fazia muitos anos, era desquitado fazia uns três ou quatro anos. era desquitado, me desquitei e depois voltei a morar com ela numa outra época, por causa de uma menina que nasceu. aí o paulo lins, quando saiu o divórcio, me ligou e perguntou se eu tinha interesse em ser divorciado. eu falei "tenho, de repente eu posso querer casar de novo. posso?". "pode." me cobrou umas taxas, e eu fui o quarto divorciado do país. achei um barato. você é livre. porque às vezes você erra, por um tempo está feliz, depois não está mais. e a igreja é contra isso. mas na bíblia, o próprio jesus fala que, se vai se separar dela, você dá para ela uma carta, acho que é a palavra divórcio mesmo que usa, porque senão ela fica no pecado.

tenho uma música chamada "cristo, quem é você?" [de 1972], que fiz para um disco chamado "orações profanas", que andré midani produziu com vários artistas, como chico buarque, milton nascimento... ela fez sucesso, a igreja também não gosta muito, porque eu questiono, "cristo, quem é você?", "como, você não sabe quem é ele?". muito embora a igreja diga que tudo se explica, não dá para entender como uma criança de quatro anos leva tiro, bala perdida, essas coisas assim. a canção diz isso: a pessoa fica desprovida de uma casa para morar, de alimento... a igreja não gosta desse questionamento, se o cara está ali morrendo à míngua, deixa quieto, que é a vontade de deus. não acho que deus vai querer que ninguém... paulo césar de araújo falava sobre isso, quando foi me entrevistar para o livro: ele acha que se mede a cultura de um povo conforme a quantidade da . por isso é que deus é uma coisa mais inventada para justificar algumas falhas e desculpas da gente. "ah, não, deixa que isso deus resolve", "ah, o senhor não me ajudou". tudo se recorre a deus. mas acho que a gente tem que questionar mesmo. eu já fui mais questionador, hoje, não, hoje eu estou meio pacatão.

os muçulmanos eu não entendo muito, já me programei muitas vezes para ler o alcorão e nunca li. o cara pega um avião e queima o prédio dizendo que é por causa de alá, de deus. não acho, acho que essas coisas têm que ser questionadas, você tem que questionar. a igreja católica, se você pensar bem, ela tem sua hipocrisia, mas ainda é a mais leve. abre a janela, mas deixa uma cortina. você não vê tudo. e por que a religião torna-se importante? porque é uma forma de frear as pessoas. tem muita gente que leva a sério, minha mulher mesmo nem gosta desses negócios que falo. ela acha que deus é um negócio que você não pode falar, nem tocar, tem que deixar quieto.

então imagine um disco desse, o que o pessoal não achou na época. um amigo meu, na rádio rio de janeiro, quando o disco saiu me levaram lá para dar uma entrevista. o cara tocou uma, tocou duas, tocou três, tocou quatro... geralmente, o máximo que ele tocava numa entrevista eram duas faixas, pensei "pô, o cara está impressionado com o meu trabalho". aí ele falou para mim: "toca todas, porque é a única vez que vou tocar. não toco nunca mais, porque esse teu disco é uma merda, uma afronta a uma porção de coisas, à sua própria carreira. vou te ajudar não tocando ele". esse disco só me trouxe problema.

pas - isso balançou você?

oj - não tenho esse tipo de... o que me balança é que tenho alguns discos meus que são muito malfeitos. acho que não fui cuidadoso o bastante neles. agora estou lançando o disco de número 31, e acho que tenho aí uns cinco ou seis discos... não me preocupo se fez sucesso ou não fez, não me render grana não me atinge, não me balança. o que me balança é quando tenho consciência de que fiz um disco ruim. fiz um disco na emi-odeon, eu estava gravando num estúdio e o gonzaguinha estava gravando no outro. por acaso, tínhamos o maestro jotinha tocando tanto no meu como no dele. passou um tempo, um dia cruzei com ele num bar no rio, ele perguntou "e seu disco, como foi?". eu disse "aquele disco não foi legal, foi uma merda, aliás eu não devia nem ter feito". o disco que ele tinha feito era o que tem "o lindo lago do amor" ["grávido", de 1984], o meu era um outro lá [se for o de 1984, chama-se "eu, você e o sofá"]. ele disse: "ué, mas se você tem essa opinião do disco, por que fez? como aceitou ir para o estúdio sabendo que não estava fazendo uma coisa direita? então você não respeitou nem a você mesmo". e é verdade, e aí o disco não dá certo. poderia até ter dado certo, porque às vezes a coisa é malfeita e dá certo. mas é esse tipo de coisa que me incomoda.

pas - o que você achou de "eu não sou cachorro, não"? pessoas passaram a ouvir você de modo diferente após o livro, mas e para você, o que ele mudou?

oj - olha, foi muito bem-vindo. eu não conhecia paulo cesar, estive com ele poucas vezes. mas ele me surpreendeu. quando me procurou, como procurou outras pessoas, conversei com ele, mas não esperava que paulo tivesse tanta competência no livro dele. não é por que de uma certa forma enche a bola da gente. ele fala bastante do meu trabalho, muito embora sem tomar partido, mas levanta muita coisa ali de que eu nem me lembrava. fez uma pesquisa muito bem-feita. ali não tem histórias inventadas, ele foi lá e pesquisou. foi muito bem escrito, ele está de parabéns. poderia, acho eu, até ter tido um público maior. poderia ser mais bem-sucedido pela capacidade do autor.

pas - e sobre o tributo "vou tirar você desse lugar"?

oj - fiquei assim de princípio lisonjeado. e agora, vendo pronto, acho que houve uma direção muito competente na condução dos trabalhos. ouvi ele cheio, pronto, e acho que ficou muito bom. pegaram o trabalho do odair jose, mas de um modo que me surpreendeu, porque eles não pegaram só as músicas que o povo canta. o pato fu, por exemplo, pegou "uma lágrima" [de 1969], que foi minha primeira gravação, uma música muito linda. de repente tem aí algumas leituras como a de zeca baleiro em "eu, você e a praça" [de 1973], a banda columbia cantando "eu queria ser john lennon" [de 1972], e assim por diante. o resultado a mim me agradou muito. para minha carreira vai ser muito bom, já está sendo. tanto o livro do paulo como esse tributo só vêm a me ajudar.

pas - você sente pessoas perdendo o preconceito que tinham pelo fato de essas pessoas estarem colocando seu trabalho de uma outra maneira?

oj - no caso do livro, sim. está certo que quem tem um conceito formado vai ter o conceito formado sempre, como eu soube que o chico buarque, quando leu o livro, disse "esse cara deve estar brincando". diz que foi o que ele comentou [ri]. mas o livro é muito bem escrito. e, no tributo, sandro belo foi muito feliz. se houver um trabalho em cima desse disco, pode trazer grandes resultados. só vai valorizar meu trabalho. aliás, já valorizou. sandro está pensando em trazer isso tudo para um dvd, reunindo todo mundo, eu até participando. acho que pode vir a ser uma boa idéia.

pas - eu gostaria de ouvir uma avaliação sua sobre o governo lula.

oj - é muito difícil você avaliar uma coisa da qual não tem conhecimento de convivência, lá dentro. é muito difícil falar mal daquilo de que você não tem conhecimento de fato. não é que se esperava mais do governo lula, eu acho que se esperava um governo diferente. eu, pelo menos, esperava. mas diferente como? não sei. a gente pensava que o lula fosse fazer um governo diferente, mas de repente não deu para fazer diferente, e de repente o certo era fazer da forma que está fazendo. mas, para dizer sobre essas coisas todas de corrupção, de desvio de grana, que está provado que é um absurdo, isso aí não, porque esses desvios existem sempre em tudo quanto é governo. no brasil sempre teve, infelizmente. não deveria ter no pt? ideologicamente não deveria, né? mas é aquele negócio, uma coisa é você estar fora da casa, outra coisa é estar lá dentro. se era melhor ou pior eu não sei, eu não esperava um governo do pt da forma que está terminando este ano de 2006.

pas - o diferente seria como?

oj - ah, sei lá, por tudo que o pt sempre falou, por tudo que se viu lula e esse povo falando, eu acho que de uma certa forma eles se adaptaram muito rapidinho à mesmice que já estava. acho que mudou seis por meia dúzia, mudou nada. existem umas coisas que a gente não pode dizer que está errado porque não trabalho lá, não sei como foi feito, mas se você vê a dinheirama que foi desviada em prol de se criar um projeto de 20 anos de governo, de continuidade do poder, é um projeto muito pesado para o povo brasileiro. está certo que o lula não ia consertar as estradas do brasil, consertar em quatro anos aquilo que não consertou em 40, mas quando você viaja, de repente o cara sai recapeando tudo em três meses, isso não pode também ser feito dessa forma.

enfim, acho que o povo, de um modo geral, esperava um pt diferente. acho que quem gostou muito do governo do pt é quem não votou no pt. a fiesp e os banqueiros, por exemplo, acho que gostaram. mas o povo em si, aquele povo para quem o pt sempre fez campanha, de uma certa forma..., não vou dizer que não gostou, mas ficou assim meio que assustado, "ué, o papai noel veio de amarelo?". ficou diferente, ficou um pt meio diferente.

pas - só para esclarecer, você votou no lula ou não?

oj - não votei. mas não votei em ninguém, porque justifiquei o voto.

pas - o livro, o tributo, toda essa revalorização, enfim, de um cara que tem um trabalho sempre voltado para o povo não teria uma ligação simbólica com o fato de lula estar na presidência? simbolicamente, esse fato não permite que alguns preconceitos sejam perdidos e, por exemplo, com você esteja acontecendo essa revalorização?

oj - é, não, tudo bem, pode ser que realmente tenha a ver, muito embora eu nunca tenha sido muito de achar que seja bem assim, o odair josé de repente estar sendo reconhecido e seu trabalho estar sendo olhado de forma diferente e isso ser visto assim como um operário estar na presidência da república. porque, você veja bem, o operário estar na presidência é um trabalho que está se fazendo. o trabalho do odair josé é um trabalho que foi feito e que as pessoas estão, de uma certa forma, dizendo "vamos ver direito aqui", "de repente não é bem como a gente pensava". agora, posso estar errado, mas acho que o governo, na esfera federal, perdeu uma boa oportunidade de fazer um trabalho melhor. acho que eles tinham causas, coisas melhores para prestarem atenção. de repente, um fernando henrique cardoso fez coisas que tenham tido e venham a ter mais utilidade para o pobre que o próprio pt. e, com respeito ao meu trabalho, acho muito legal que as pessoas estejam pelo menos abertas a... agora tem uma coisa, também, o tributo é com os meninos que estão tocando aí. o trabalho do odair está de um jeito que as pessoas nunca imaginaram que pudesse ser. eu mesmo nunca imaginei, tem releituras ali que, talvez, valorizaram a música ou trouxeram a música para uma outra levada que de repente possa até fazer as pessoas terem uma outra opinião.

pas - essas releituras trazem sua música para territórios que antigamente o aceitavam menos?

oj - é, acho legal, tem coisas ali, o grupo leela por exemplo fez uma coisa muito legal, jamais pensei que aquela música ["e ninguém liga pra mim", de 1973] pudesse virar aquilo. se esse trabalho realmente começar a ser mostrado e a sair para as pessoas ouvirem mesmo, acho que, não só pelo odair josé, pode ser muito bom. e também para mim, por tabela.

pas - você teria favoritas entre as versões novas?

oj - não [ri]... gostei muito da gravação do pato fu, por causa da música. acho muito difícil para quem gravou "cadê você?" [de 1973, regravada pela banda sufrágio] ou a "pílula" [relida por arthur de faria & seu conjunto], porque já são muito batidas.

pas - você mudou muitas vezes de gravadora, isso é porque você era um cara briguento, encrenqueiro?

oj - já fui assim. ou era do meu jeito ou não era. porque na verdade, sabe, bicho?, quando você faz sucesso, o sucesso é praticamente de todo mundo, da empresa e tudo. mas quando você fracassa, o fracasso é só seu. se um disco não dá certo, ah, a gravadora não vai nunca participar do fracasso. "isso é culpa dele, que fez tudo errado." então, já que vai ser tudo errado, então que eu faça realmente do meu jeito. no disco novo mesmo, de muita coisa eu nem participei tanto, mas é por quê? por que não estou interessado? estou. é porque acho que na mão deles muitas coisas vão sair melhores do que se eu ficar dando palpite lá. optei por ser meio expediente só, vai ver de repente fica diferente. e como um cara disse uma vez, que o john lennon era o beatle meio expediente, assim é meu disco no momento. deixa eles botarem as idéias deles, o principal já está lá e não tem como ser mudado. depois, se no estúdio você fica brigando por uma coisa, você termina demorando muito.

pas - pergunto do "encrenqueiro" também, com certa vergonha, porque o livro do paulo césar menciona suas brigas com diana como uma coisa meio violenta. vocês dois eram famosos, isso chegou a causar escândalo?

oj - não era nem tanto assim como falavam. houve uma vez que criou muita repercussão na imprensa, porque houve uma garrafada na cabeça que ela me deu, e eu tinha que fazer um corpo delito e aquilo saiu em tudo quanto foi revista e jornal. era um relacionamento muito exposto, porque a gente estava muito na mídia. quando você está muito exposto tem que ter muito cuidado, vejo aí pessoas jovens desmanchando, relacionamento acabando, já passei por isso, tem que tomar muito cuidado. hoje estou com 57 anos, não é 23 ou 25. comigo aconteceu muito isso. e a gente às vezes não tem como brecar isso.

pas - diana se afastou da música?

oj - estou casado há 22 anos, estou separado dela há mais de 25 anos. ela deve estar cantando por aí, sim. a pessoa parar, nunca pára. mas eu estou mais calmo, estou bem marcha lenta. eu gosto.

pas - músicas do final dos anos 70, como "divórcio" e "forma de sentir" [1978], já não tiveram mais muito problema com censura, não é?

oj - "forma de sentir" chegou a dar, mas foi liberada. é uma letra que não é minha, é do josé messias, aquele mesmo lá da televisão, que sempre fez umas letras bem engraçadas. foi depois que gravei a música que percebi o que é que ele estava querendo dizer. ele me pegou, porque fala de duas mulheres, né?, do relacionamento de duas mulheres, do cara transando com duas mulheres ao mesmo tempo [bem, não parece ser bem assim, veja só: "sei que és entendido e vai entender/ que eu entendo e aceito/ a tua forma de amor/ ame, assuma e consuma/ o teu verdadeiro/ sentido do sentir/ e nem penses/ que eu vou proibir" é o que ele canta, antes de terminar citando "é proibido proibir", de caetano].

no meu disco novo só tem duas músicas minhas, uma delas se chama "pensão alimentícia". é o cara dizendo que pagar pensão não é novidade, que ele sabe que ela só pensa nele por causa da pensão, que ele só tem importância para ela nesse sentido. mas ele acha que a pensão ainda pode, de certa forma, trazê-lo para a cabeça dela. é interessante.

pas - você acha que a sociedade se tornou mais liberal desde que você começou a fazer música? os assuntos todos de que você tratou causariam escândalo hoje em dia?

oj - não. eu estava ouvindo no luciano huck aquela minha música que ficou censurada, "em qualquer lugar", que só foi lançada agora, no cd do livro do paulo cesar. ele colocou de fundo lá no programa dele. não tem nada ali, nada [de fato, as insinuações mais "fortes" da canção se referem a amar "dentro do meu carro/ parado no jardim/ debaixo do chuveiro/ (...) em nosso leito"]. pensar que aquilo foi proibido, não pôde sair...

@

faixa-bônus [pode ser na voz do próprio odair, do disco "assim sou eu...", de 1972, ou na versão 2006 da banda paraense suzana flag]:

vida que não pára
(odair josé)

vida que não pára
máquina que voa
quanta gente andando à toa

coração de ferro
mente de metal
nasceu no espaço sideral

(refrão 1)
conte comigo
sou seu amigo
pode confiar em mim
não tenha medo
não faça segredo
pois a vida não é assim

(refrão 2)
você que pensa que o mundo é quadrado
você que pensa que o amor não existe
você que acha que anda tudo errado
por causa disso é que está sempre triste


gente bem de vida
povo da favela
casa que não tem janela

mundo sem prazer
noites de agonia
quem levou minha alegria?