sábado, julho 29, 2006

d'estamira

estamira é uma multidão.

ela trabalha, em colônia-comunidade-comunismo, num lixão carioca de verdejante nome: jardim gramacho. personagem principal do documentário "estamira", de marcos prado, dá asas de urubu à própria imaginação e se larga a falar do mundo, no mundo. ela é louca-doida-maluca, pensará quem ouvi-la. pois sim, não é disso que se trata, não.

estamira é esquizofrênica. vive num estado de alucinação, pensará você, ou de hiper-realidade, dirá ela (e eu digo também): "eu, estamira, sou a visão de cada um. ninguém pode viver sem mim". é pelo controle remoto que toda e qualquer conexão se resolve, explica. estamira está plugada no mundo, na sociedade, em nós, em nossos nós.

estamira odeia deus, declarou guerra a jesus cristo, e ninguém pode viver sem ela.

é a asa que se desprendeu da sociedade, estando bem dentro dela mesma, no coração da sociedade, no lixão de jardim gramacho - estamira vive nos jardins, na barra, na óscar freire, no leblon, no nebulon [você conhece vários "loucos"-"psicóticos"-"esquizofrênicos", não (re)conhece?]. nesta mira, estamira declara aquela guerra a deus que muitos anseiam declarar, mas não têm coragem.

corajosa de romper a barreira do espaço-tempo-som, vive eufórica e revoltada contra um deus "estrupador", contra um jesus cristo que é o "trocadilo" em pessoa, contra a quadrilha de médicos "dopantes" "copiadores" que a tentam deter, contra poderosos "espertos ao contrário", contra o próprio filho fanático-rezador-temeroso-do-demo-instalado-no-corpo-da-mãe: "alguém larga de morrer por rezar tanto?".

é que, acima de tudo, dona estamira, sessentona, declarou guerra total aos homens, ao masculino formulador desta sociedade que a atirou ao lixão.

estamira jamais pronuncia a palavra "mulher". para ela, o sexo feminino é "homem formato par" (que, acrescento, pode conter em seu ventre uma outra mulher, ou então... um homem). o sexo masculino, para ela, é "homem formato ímpar", o "um" poderoso, a personificação da solidão, condição mesma em que ela vive em meio à multidão do lixão, lixão no qual a sociedade-ela-própria-estamira a (se) atirou.

prostituída pelo avô na quase-infância, em guerra permanente com amados maridos, estuprada por homens ao longo da vida, (auto)atirada aos lixões, estamira odeia deus, jesus cristo, o filho que quer atirá-la no aterro psiquiátrico, os homens todos - todos do sexo masculino.

ainda assim, é companheira, no lixão, do olhar embevecido de seu joão, preto como ela, olhar apaixonado como o dela.

quando estamira esbraveja diante da câmera num dia de natal, joão lhe dá ouvidos, silencioso, embevecido. "não adianta", estamira esbraveja, para logo emendar-remendar, cantarolando: "não adianta nem tentar me esquecer...". seu joão rebate de pronto, cantarolando idem: "se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer...". o amor, ah, o amor.

"detalhes", "as curvas da estrada de santos", roberto carlos. estamira odeia os homens, mas não odeia, entre eles, roberto carlos, nem erasmo carlos (nem wanderléa). "colombina, onde você vai?/ eu vou dançar o iê-iê-iê", cantarola, compositora, de asas abertas no lixão-albergue-abrigo-asilo-acolhida, sabendo de cor e salteado que o carnaval É o iê-iê-iê e que o samba É roberto carlos (& erasmo & wanderléa). todo menino é um rei, mas quá...

rainha estamira não está em guerra com o masculino. está em guerra é com a violência masculina insatala na sociedade-estamira da qual ela, periférica, é o núcleo, é o centro, é o ventre, é o cerne, é o início & o fim do caminho.

gente viva, para ela, é o homem visível: depois da morte, a invisibilidade (essa mesma que ela vivencia dia-a-dia no jardim gramacho). dos filhos todos que teve, uma nasceu invisível, segundo conta. e essa, ela conta, "é a que mais me ajuda".

contra um painel agressivo de avós, pais, co-irmãos e filhos violentíssimos, o núcleo feminino da família de estamira se une no fio das gerações, numa corrente silenciosa (ainda que verborrágica). contra os violentos violentadores mudos do sexo masculino, as nunca pronunciadas mulheres de estamira se coligam verticalmente na solda da loucura, ou, espertas ao contrário, da resistência amorosa a ela: avó, mãe, estamira, filhas, netas.

a filha caçula, adotada por outra família, vai e volta e vai e volta, e lamenta, transbordando amor pelos olhos: a mãe de sangue criou os demais filhos no lixão, porque não poderia ter criado ela também? a mágoa reside como cimento das gerações, mas é exercida na cumplicidade de uma cabeça encostada à outra, mãe e filha, irmãs.

a cabeça é o controle remoto, dali para acolá, de lá para cá, também de cá para lá.

ao lado dos homens brutais, repousam as damas vitimizadas, ardidas de violência externa(&interna) e ardentes de muito se fazerem de vítimas inescapáveis da desigualdade entre os sexos.

estamira, esquizofrênica, rejeita no grito a condição de vítima. também nisso, descola-se da sociedade-estamira, rumo ao lixão-estamira-mulher&homem - do mesmo modo como roberto carlos, obsessivo-compulsivo, refuta a condição de macho violento e se cola à sociedade-roberto-carlos feito o apático-amoroso-roberto-carlos-homem&mulher.

doida, você diria. mas em plena guerra interna, na faina diária de depurar o lixão da sociedade e reivindicar, pelo esbravejo, a lida missionária, contra deus-homem-feitor-ladrão, a favor da declaração da paz mundial híbrida feminina-masculina (ou preta-branca, ou pobre-rica, e assim por tantos diantes), em favor da reconciliação, em guerra (interna) pela paz (externa).

é essa mulher (quem é essa mulher?) que a sociedade-nós tarjamos de dentro como "louca", rechaçando-a e fugindo dela como o demo da cruz - porque estamos todos cegos, porque brigamos de tapa&beijo com nosso próprio espelho.

[ouça o(a) louco(a) que mora dentro de você, ninguém é mais loquaz que ela(e).]

estamira (que diz que nunca chora, mas chorou no dia em que lula foi eleito, segundo nos relata ana paula sousa, em reportagem à "carta capital" 403) somos nós.

d'estamira somos uma multidão.