quinta-feira, julho 06, 2006

marizeca?

quando e onde tudo (ou nada?) se mistura, o moço (& as moças, & os moços) e a moça (& os moços, & as moças) invadem a (antiiiiiga) "carta capital"
nº 386, de 29 de março de 2006.

vai saber... [alô, gaúcha(o)s!], lalaiá laiá...

DUAS VOZES EM LIBERDADE
Marisa Monte e Zeca Baleiro provocam o cenário com dois discos cada

Por Pedro Alexandre Sanches

Os brasileiros que não vivem em Marte souberam, no decorrer das três últimas semanas, que Marisa Monte lançou dois discos ao mesmo tempo: um mais pop, chamado Infinito Particular, e outro coalhado de sambas e batizado Universo ao Meu Redor. Sob o interesse que a trajetória virtuosa da cantora e compositora carioca de 38 anos tem atraído naturalmente, ela se plantou feito posseira em todos os meios de comunicação do País, em papel, imagem, som, internet, o que for.

Mais custoso, nesse mesmo período, foi descobrir por consulta à mídia que outro artista da mesma geração, Zeca Baleiro, também estava lançando dois discos simultaneamente. Mais que isso, ele estava inaugurando uma gravadora de propriedade própria, Saravá Discos, integrando e atualizando um movimento que Marisa fizera há seis anos, quando fundou o selo próprio Phonomotor, até hoje distribuído pela multinacional EMI.

A desproporção no interesse que seguiu cada uma das duas notícias não é difícil de compreender. O cantor e compositor maranhense de 39 anos não conta com o empenho comercial de multinacional, tampouco os CDs de estréia da Saravá gozam de apelo mercadológico comparável ao da volta de Marisa após quatro anos de silêncio.

Um deles, Cruel, é uma coleção de 14 canções inéditas do músico capixaba Sérgio Sampaio, que eclodiu em 1973 com o hino de rebeldia implícita contra o governo militar Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua e se emaranhou em descaminhos até a morte precoce em 1994, aos 47 anos. Zeca dirigiu o aperfeiçoamento de um material precário na origem, mas não aparece como músico no CD.

O outro é Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé – De Ariana para Dionísio, em que cantoras como Angela Maria, Maria Bethânia, Angela Ro Ro e Zélia Duncan interpretam versos de Hilda Hilst (1930-2004). Sob a aprovação e o incentivo da rebelde escritora paulista, Zeca criou melodias medievais para recobrir os poemas e recrutou as intérpretes, mas, de novo, não atuou como músico no denso álbum resultante.

Enquanto Zeca Baleiro acalenta os ditos "malditos", Marisa se deleita sobre serenas canções autorais com os parceiros "tribalistas" Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, e outras de Paulinho da Viola, Novos Baianos, David Byrne, Adriana Calcanhotto etc. etc.

Se a princípio quase tudo parece incongruência entre ambos, há, entretanto, uma semelhança de fundo: Marisa e Zeca se aparentam no gerenciamento profissional, independente, discreto e sustentável da música que criam e/ou ajudam a criar. "Bom senso" e "pés no chão" são termos recorrentes nas entrevistas de ambos a CartaCapital.

É o que diz Marisa, ao comentar o frisson que provoca entre colegas, imprensa, fãs e detratores a cada vez que volta à tona: "Minha história é tão paralela a isso tudo, é tão mais pé no chão, bom senso. Não sou um motor em constante movimento. Acabei sendo vista como uma artista que cuida de tudo, participa de todas as esferas. Mas não sou a única, não sou exceção. Passa uma coisa que não acho legal para mim, de poderosa".

Zeca é prova de que ela não é a única. Se Marisa já ultrapassou a barreira hoje quase utópica de 1 milhão de cópias, ele acumula vendagens médias de 100 mil cópias a cada álbum. Diz que o CD mais recente, Baladas do Asfalto & Outros Blues (2005), anda pelas 30 mil peças vendidas (os discos da Saravá saem com 3 mil exemplares cada): "A popularidade não se reflete mais em venda de discos. A dinâmica é suor, mesmo. Funciona porque a gente é maluco, obstinado, alterna momentos de idílio e bancarrota".

Evoca o mesmo bom senso, em contexto diverso, ao comparar o mito das gerações heróicas da MPB dos anos 60 e 70 e o modo como se auto-administra hoje: "Hoje é mais pé no chão, essa gente viveu um apogeu de muita fantasia. Tem gente que vive a vida como se fosse uma carreira, com um foco doentio, egóico".

O discurso é de quem demorou para se fazer notado (lançou aos 31 anos o primeiro de seis CDs de ferina poesia simbolista) e viveu no anonimato experiências extremas a que artistas da geração de Jimi Hendrix se atiraram do alto do palco. "Com 31 anos, eu já tinha passado por poucas e boas, já tinha quase morrido de overdose", cita, talvez justificando a atração pelos desajustados Hilda Hilst e Sérgio Sampaio.

Faz essas referências ao comentar o dado aparentemente paradoxal de se sustentar ancorado pelos shows que faz, mesmo tendo desacelerado essa rotina. "A morte estúpida da Cássia Eller me fez recuar. Também já senti umas palpitações, como ela eu fazia cem shows por ano. Nos últimos três anos, fiz a poeira baixar. Como lutei para morrer com 27 anos e não consegui, começo a pensar na perspectiva de envelhecer. É preciso saber viver", conclui, citando o duradouro Roberto Carlos.

Marisa vivencia de modo diverso o lema "é preciso saber viver": recolhe-se por longos períodos após cada rodada de superexposição, evita quase sempre as câmeras de tevê e várias vezes os gravadores da imprensa, cala sobre a vida íntima.

"Você é muito cobrado, em meio a todas as impressões que a imagem pública provoca. O que eu digo em música já é tão íntimo, é o que eu tenho de mais íntimo para oferecer. Está tudo ali", afirma, citando a letra de Infinito Particular, que convoca o ouvinte à participação em versos como faça sua parte/ eu sou daqui, eu não sou de Marte/ vem, cara, me repara/ não vê?, tá na cara, sou porta-bandeira de mim.

Sim, considera-se exigente com o público que cativa, assim como é consigo própria: "Exijo que meu ouvinte tenha olhar crítico, opinião. Acho que exijo do meu público, ou estaria cantando a mesma música há 20 anos".

"A gente gosta do que conhece, a gente gosta da gente mesmo. Acho que uma pessoa gosta do meu show quando assistiu e se sentiu aceita, quando se gostou", equipara-se, talvez embutindo nessa reflexão elementos de auto-estima como o de que os novos "talvez sejam os dois discos mais femininos que já fiz", inclusive adicionando um prisma feminino ao universo quase sempre masculino do samba.

A volta de Marisa vem apoiada na promoção agressiva da EMI e em estratégias controversas de controle. Fãs se mobilizam via internet em protesto contra um inexplicado dispositivo instalado nos CDs, que impede o consumidor de transferir as músicas que comprou para seu computador ou iPod (consultada, a EMI se exime de qualquer explicação).

Afirma-se "exausta" com a agenda carregada de entrevistas, mesmo que parta dela a imposição de que todas se concentrem em poucos dias. "Tudo tem de acontecer na mesma semana, a notícia é perecível. Quero acompanhar, atender todo mundo. É Brasil, é exterior. Acaba sendo ruim para todo mundo."

Diz isso já tendo experimentado o silêncio completo, à época do lançamento em trio de Tribalistas (2002), mesmo assim amplamente bem-sucedido. "Foi importante, libertário, estou alforriada. Hoje sei que faço (entrevistas) por opção", afirma, acrescentando que nem por isso pretende se abster da fala pública como um João Gilberto ou um Chico Buarque.

À margem das agendas, Zeca comenta com certa autocrítica o trabalho autoral mais recente: "É o disco em que talvez eu mais tenha aberto mão do controle da produção. Tem uma sonoridade leve, radiofônica, que eu jamais permitira, se estivesse mais à frente".

O discurso de Marisa sublinha desinteresse mercadológico: "Se vender menos, tudo bem, se vender mais, tudo bem, se não vender nada, tudo bem também. Sucesso é uma coisa, êxito comercial é outra. A realização vem na hora de fazer".

Do lado masculino, Zeca também evoca o "êxito": "Não tenho mais pressa, se é que tive algum dia. Me interessa tanto a faceta pop como a glória da maldição. Esses discos agregam coisas importantíssimas à minha breve história. Por ter sido realizados, são em si o êxito". Mesmo sem pressa, co-produziu um disco do pouco conhecido músico paraense Nilson Chaves (Maniva, 2005) e acalenta para o selo Saravá projetos de um disco infantil, um do "maldito" Walter Franco, outro póstumo do sambista maranhense Lopes Bogéa.

Sobre política, Zeca declara bancar projetos marginais "sem patrocínio, caixa 2, mensalão". Marisa prefere a discrição, diz que "hoje abundam na imprensa milhões de opiniões levianas", deixa pistas discretas em forma de música, como em Levante, dos três Tribalistas com Seu Jorge: Vejo os jornais/ não sei que lá, não sei de nada/ tudo normal/ nas marginais e nas fachadas/ (...) mas pra sacudir levante.

Ele assinou o manifesto dos trabalhadores de música contra a Ordem dos Músicos do Brasil, gerida pelo mesmo grupo há 40 anos. Ela diz que nem sabe o que está acontecendo: "Tenho carteirinha da OMB, fiz provas, pago anuidade. Sei que eles têm serviço médico e dentário, acho que é mais para músicos que não podem ter, para outro tipo de músico. Não sou muito ligada, até porque não faz diferença na minha vida prática".

Ela canta, no "disco de samba", que trabalho em samba e não posso reclamar e que todo dia/ vivo pensando em casar/ juntar as rimas como um pobre popular; mas sonha também, no "disco pop", com um belíssimo e idílico Vilarejo: Toda gente cabe lá/ Palestina, Shangri-lá.

Ele por ora anda cantando menos, mas evoca o espanto que sentiu diante de um garçom que o abordou no Hotel Glória, no Rio, com a seguinte interrogação: "O senhor é o Zeca Baleiro? Pode me informar se aquele disco da Hilda Hilst já saiu?". Ainda não havia saído, mas ele retribuiu o apreço do garçom brasileiro que não vive em Marte e sabe tudo de Hilda Hilst: ao voltar ao hotel meses depois, levou de presente um exemplar das odes musicadas de amor não correspondido De Ariana para Dionísio.