terça-feira, julho 11, 2006

tarja preta: gog

genival oliveira gonçalves, vulgo gog, mora? "tarja preta" circula pelo mundo há tempos (foi lançado em 2004, evidentemente de modo independente), garbosamente à margem daquilo que se convencionou chamar de indústria musical, fonográfica, ou coisa que o valha (alô, mestre itamar "tarja preta" assumpção!).

simulando (ou melhor, subvertendo) uma embalagem de medicação da famigerada indústria farmacêutica, a capa de "tarja preta" ostenta uma advertência ("venda sob prescrição periférica") e uma informação ao consumidor ("contém 23 faixas extraídas da raiz musical brasileira"). está tudo indicado, ali, nesses três estatutos - o que se possa acrescentar é variação sobre o mesmo tema. variemos.


gog, que antes já havia promovido, entre seis outros discos, uma "cpi da favela" (2000, também independente), segue arrumando sua própria casa, de dentro para fora. o hip-hop, como o brasil, está em plena reforma, a todo vapor (reformam-se casas!, reformam-se vidas!), rumo a novos e ainda não testados estatutos. aos exemplos, em piluletas, pílulas e pilulonas.
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a faixa de abertura, "chamada a cobrar", é o que o nome indica. numa chamada telefônica a cobrar, dona sebastiana, mãe de genival, conversa a partir de brasília com o filho radicado em são paulo. "ai, genival, eu vou te pedir. vem, vem pra brasília, meu filho. vocês nasceram aqui em brasília, são daqui de brasília, são filhos natos de brasília", ela insiste-e-seduz, o doce sotaque do brasil de cima, norte-nordeste, produzindo música nos ouvidos alheios.

dona sebastiana reclama que genival levou embora seus velhos discos de vinil: "você não devolve, genival, pior é isso, você levou e não traz". amoroso, gog acalama "mamãe" (sim, ele a chama mamãe). a partir dos vinis confiscados de mãe para filho, entabulam um bate-papo sobre a música popular brasileira. genival promete devolver gerson combo, azimuth... sebastiana lista os lps de que mais sente falta: "o que eu queria é djavan, é linda a música dele, né? wanderléa, toni tornado, 'o bem-amado', cláudio santoro, altemar dutra... zé ramalho, genival!, tava esquecendo zé ramalho, zé ramalho tá faltando também. mutantes. vanusa. ah, gostei tanto de quando vanusa era casada com antonio marcos, que eles cantaram juntos".

genival lamenta a memória mal preservada da mpb, o modo precário como vários daqueles nomes citados pela mãe vivem e/ou viveram. fala do objetivo de preservação que leva os lps de dona sebastiana viajarem de brasília a são paulo - os vinis de mpb serão matriz para um disco (duplo) de hip-hop, "tarja preta". "é pra isso mesmo que eu guardo, é pra isso que eu quero. é pra vocês divulgarem tudo isso. quantas pessoas não sabem nada sobre um lenine desse?", filosofa mamãe.

gog explica à mãe a tática de guerrilha: exemplifica. cita o lindo samba-rock-balada "como?" (1973, de luis vagner), cantado por paulo diniz, e se põe a rimar e a dizer da saudade que também sente: "mãe, sem palavras, obrigado/ sou de brasília há três anos em são paulo/ trabalho gratificante e suado/ (...) várias vezes a saudade fez perder o sono". entra a voz suave de paulo diniz, "como vou deixar você/ se eu te amo?", e gog decifra: "é a senhora e brasília, como é que eu vou deixar vocês, se eu amo vocês, né?".

"brasília é linda, brasília é um amor", rebate a comadre sebastiana. "meu sonho é ficar em brasília, não quero mudar." "tá certo", concorda gog, enquanto paulo diniz completa ao fundo: "talvez esteja andando em linhas tortas...". o disco começa, a viagem pela raiz musical brasileira se inicia.
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em "a rima denuncia", interpenetram-se à voz de gog outras duas, uma do rock universitário, outra da mpb universitária: o tarja brasiliense renato russo canta "música urbana 2" com sua legião urbana, a tarja gaúcha elis regina vibra "terra de ninguém" (dos surfistas tarja carioca marcos valle & paulo sérgio valle). o 1986 de russo e o 1965 de regina se misturam a 2004/2006, e elis prenuncia (ou "posnuncia"?) as curvas do tempo: "mas o dia da igualdade tá chegando, seu doutor".
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"é o crime" estabelece o primeiro manifesto, entrelaçando noções sobre o que é "crime" de acordo com o "centro" e noções sobre o que é crime de acordo com a "periferia". "amante das causas das canções que me comovem", o narrador contrapõe, aos "criminosos da comunicação" (do outro lado da muralha social), "o crime da identidade própria" (o dele - é crime?).
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"talvez seja querer demais" seria combustível para o eterno chororô de críticas aos humores sombrios e violentos no ar do rap brasileiro. "esteja presente aos enterros, aos velórios", "vá ao iml assistir o corpo ser autopsiado", "esteja presente/ alguém sendo reanimado/ descargas elétricas, choques, familiar desesperado", "visite um centro de reabilitação de drogados/ crise de abstinência, tremor, maus tratos", enumera a letra, tematizando sem medos nem meios termos aquilo que, na vida, lateja, machuca e assusta.

seria sombrio e violento, não tivesse a intenção que tem: conversar cara a cara com um interlocutor que ensaia entrar para o mundo do crime. fala a um favelado, possivelmente, mas quem disse que o discurso não se ajusta a um candidato a deputado federal, a um aprendiz de jurista, a um empresário de colarinho branco?... "os ricos são tão pobres que não percebem a frieza/ a triste pobreza em que usufruem suas malditas riquezas", o narrador chama a elite pálida à consciência.

e ainda conclui: "quer entrar pro crime, vai/ mas antes respeite os argumentos deste ignorante". ignorante?, pois sim, quem seria mesmo o "ignorante" nesse diálogo?
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em quase nove minutos, a melancólica epopéia "...o amor venceu a guerra" começa citando "eduardo e mônica" (1986), da legião urbana, sem que se entenda de início ao certo o porquê. mas a história se desenrola, e aos poucos vai ficando evidente que se trata de um drama shakespeariano de amor vivido na periferia, na favela, na prisão, nos extremos: "aqui tortura tem o nome de depoimento/ adivinhe quem me visita fim de semana?/ quem eu amo sem ter levado pra cama, quem?". ela, a amada, é claro.

"eu?, apaixonado por uma moradora da favela?, não. além de petulante, vendedora de panela?, que é isso?", inconforma-se o amante amado que a amada amante xingara de "traficante".

a atmosfera pode parecer pesada, negativa, mas só se o ouvinte não compreender a espinha dorsal da intenção (anti)(pós)romântica do rapper. "é bem mais fácil falar da dor/ é bem mais fácil que falar do amor/ dá mais ibope", ele indica, referindo-se aos vícios de romantismo doentio dos corações, mas num recado que poderia -e deveria- ser espalhado à mídia e às classes mais "altas" da sociedade.

"é bem mais fácil guardar rancor/ é bem mais fácil que dizer que perdoou/ dá mais ibope/ chama atenção/ mas faz mal pro coração, né, não?", arremata o narrador, tentando pulverizar os males sorumbáticos que infestam a sociedade de terra batida e a sociedade de asfalto surrado.
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"eu e lenine (a ponte)", mais um título explícito, celebra o pavimento das inter-relações de classes, origens e geografias, inclusive aquela de lenine (e lula queiroga), "a ponte" tarja pernambucana de 1997, sampleada no rap. mas reconhece que atravessar as pontes que separam as periferias "pobres" de são paulo do centro "rico" rico de são paulo não é mole, não - é matéria concreta, abstrata, vivenciada muito mais de lá para cá (alô, empregadas domésticas, office-boys, garçons, trabalhadores do comércio central...) que de cá para lá.

"a ponte simboliza união/ no nosso caso, brasília e o sertão", diz gog a lenine, simulando um diálogo virtual entre a mpb de pedra e o rap de responsa.
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"tarja preta", a tensa faixa-título, vai direto ao ponto na prescrição periférica. em entrevista ao site real hip-hop, gog explicou o título, da faixa e do disco: "nos últimos anos medicamentos tarja preta foram freqüentes na prateira da casa dos meus pais. como filho acompanho isso de perto, cheguei a consumir também durante um pequeno período. meu pai acabou falecendo, e os tarja preta são presença forte na minha mente".

ora, direis, isso não é tema para música - não é?, não foi?, não tem sido sempre, mpb, rock, canção sertaneja & eletrônica afora? é, foi, tem sido. aqui é literal, sem tarjas censoras.

"a palavra que define o estilo da favela contagia, contamina quem tá dentro dela/ o efeito é forte, o efeito é forte, o efeito é forte, o efeito é forte", diz o refrão, cê sabe, né?
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um pouco de descontração testa "g.o.g. no jogo", a faixa seguinte. o sampler é de são jorge ben, o pai de todos os rappers: a vital "ponta de lança africano (umbabarauma)" (1976), para animar a festa, a luta & a lida - raiz musical brasileira com tarja preta, mora?
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"dias de fúria", grave vozeirão nervoso - a raiz musical brasileira também é ratos de porão, garotos podres, cólera, olho seco, a punkadaria paulista toda. tarja preta não veta entrada para o rock, nem para a testa pálida dos punks.
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"pra mim foi difícil/ foi preciso me libertar/ e derrotar o senhor do fracasso", emenda "o incendiário", encarando de frente um fantasma pálido que, sim, os ignorantes das elites quejandas de cá também conhecem muito bem. não é fácil.
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hora de suavizar mais uma vez, por intermédio da maciez do samba. "dinheiro na mão" incorpora "pecado capital" (1975), de mestre paulinho da viola. aí você ouve ali pelo meio do rap que "dinheiro na mão é vendaval, é vendaval/ na vida de um sonhador, de um sonhador" e lembra que, epa, nem o samba doce de paulinho era assim tão suave, tão inofensivo. tarja preta.
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lado a lado com paulinho da viola, raul seixas vem dizer presente, o reclame do rock selando alianças com a loa do samba, em "parei pra pensar" (qual a melhor maneira de parar para pensar, senão com raul?). os primeiros acordes de "maluco beleza" (1977) se repetem à exaustiva canseira por oito minutos, enquanto gog discursa reavivando memórias de seu trampo no rap nacional, desde 1983.

ao final de tanta reminiscência, surge a voz passional (alô, elis regina!) de vanusa, tarja loura, "folhas do tempo" (1981): "hoje eu preciso de um mundo melhor pra viver/ hoje eu preciso entender esse rio, esse pranto que corre"... o coração de dona sebastiana pulsa mais forte, não foram em vão os vinis guardados com amor pela mãe brasiliense.
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termina o cd 1, "comprimido 1". começa o cd 2, "comprimido 2".
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"próxima parte" faz prosa concreta com a letra "p", pobres pretos para cá, playboys petrificados para lá: "por que, presidente? pra patricinha princesinha, prestígio, patrocínios, progresso, patrimônios, propriedades, palacetes, porcelanas, pérolas, perfumes, plásticas, pumas, paetê. por que, prossegue? pro plebeu predestinado, pranto, perfurações, pêsames, pulseira pro pulso, pinga, poeira, pedradas, pagar prestação por prestação, parceiros paralíticos, paraplégicos, prostituição". percebe?

acima das hostilidades de classe, chama à fala os próprios parceiros periféricos: "por que pele preta, postura parda?". percebe?
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visitando de novo a candura, "periferia ao vivo" usa por base o iê-iê-iê romântico "ternura", lançado em 1965 por wanderléa (ah, o coração de mãe de dona sebastiana...). o tema - a vida na periferia - é menos terno que a ternurinha da jovem guarda: "só direitos pra eles e deveres pra nós/ muita fartura pra eles, migalhas pra nós".
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"comédia no crime" tampouco é inofensivo: um desagradável barra-pesada da marginália faz ameaças de violência física e morte ao narrador. ao fundo, a malemolência se estabelece nas cuícas do samba gingado tarja branca-e-preta do trio azimuth, no "melô da cuíca" (1975). estabelece-se quase um samba-funk, gog luta por (se) descontrair - não é fácil, ele já havia avisado.
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em "quebra-cabeça", o tributo à raiz brasileira atinge a grandeza afirmativa da auto-homenagem: o próprio hip-hop é o foco, com citações cruzadas a racionais mc's, mv bill etc. é difícil, mas nunca impossível.
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"três corações": a melancolia se impõe novamente, com depoimentos gravados de pessoas de carne e osso, lavadores de carro, catadoras de papel, feirantes, o povo enfim que faz na metrópole a ponte cotidiana entre o subúrbio e a rua - aqueles mesmos que inspiram rezas de "segura" distância por parte dos desalmados (alô, soul music!) daqui de baixo.

"eles falam que o crime organizado tá na favela, mas não, tá é na política", opina um (sub)cidadão. "periferia tem seu lado bom", sentencia o narrador tarja preta.
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"rua sem nome, barraco sem número" ostenta uma base funkeada, mas o título explicita que o tema não dá refresco nem facilita a vida de ninguém, pois não?
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"a ambição falou" detona bush e hussein, e o tema de fundo é aquele da telenovela "o bem-amado", de 1973, santuário coronelesco do atraso atávico de odoricos paraguassus, zecas diabos e antonios carlos magalhães [esse último resta citado por gog - com ojeriza, é lógico - noutra faixa do álbum duplo]. "pra ele o poder valia muito mais que a razão", sintetiza o coral som livre (alô, dona globo!), fazendo voz às linhas compostas por toquinho & vinicius de moraes, quase 506 anos atrás.
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sob a lírica kitsch e a épica renitente da unidade latino-americana, "sonhos latinos" reúne uma multidão de artistas setentistas que sonharam aquela utopia (utopia?) na voz feminina que entoa o refrão-símbolo tropicalista de "soy loco por ti, américa" (1968), de gilberto gil e capinan. tarja preta de tropical melancolia, gog também é louco de amores por ti, américa latina.
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eis a "lei de gerson", e você pensa que lá vem mais ode brejeira à lei do "bom malandro", do "racista cordial", do "espertalhão" que tenta sempre levar vantagem em tudo. mas não. o gerson em questão é gerson king combo, patrimônio tombado do funk brasileiro. a homenagem se estende ao toni tornado de "podes crer, amizade" (1972) [dona sebastiana suspira...], e o funk de raiz se faz raiz brasileira; tarja preta, preta, pretíssima.
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seguem-se mais duas faixas tensas ("em alta tensão" e "américa sem reféns"), e acabou - acabou? acabou, mas ainda tem. abra-se o encarte-bula do "tarja preta" de gog, as contra-indicações não existem e os efeitos ideológicos-musicais são os mais saborosos e eloqüentes. pílulas de bula, para concluir:

"gog (original rap nacional) pertence aos grupos de linha consciente do hip-hop, tendo ação resgatadora, estando indicado nos casos de baixa auto-estima e distúrbios causados por séculos de bombardeio cérebro-cultural agudo."

"gog (original rap nacional) não está indicado para pessoas que se vêem como superiores aos demais, com surtos de prepotência e portadores de guetofobia, podendo causar danos irreparáveis aos sonhos de eterna dominação dos mesmos."

"gog (original rap nacional) não deve ser ouvido paralelo ao consumo de bebidas alcoólicas, televisão e outras drogas lícitas ou ilícitas."

"mantenha sempre ao alcance das crianças." [gênio, gênio.]

"em ouvintes idosos ou debilitados todas as faixas podem ser ouvidas devido a ausência de palavrões, embora as narrações sejam explícitas."

"a audição por mulheres grávidas deve ser feita com auxílio de fone-de-ouvido que serve de conector, e que se acopla ao cordão umbilical levando informações diretamente ao feto."

"gog (original rap nacional) é prontamente absorvido quando administrado por via auditiva."

"gog (original rap nacional) é um princípio ativo extraído da experiência familiar, convivência com as verdadeiras amizades, associados à leitura e ao alto teor revolucionário do descendente nordestino genival oliveira gonçalves."

"orienta-se avaliar periodicamente a evolução sócio-ativo-cultural do ouvinte em tratamento com gog (original rap nacional)."

"a audição de gog (original rap nacional) não causa dependência [gênio, gênio, gênio]. o ouvinte após a audição terá discernimento completo para tomar suas próprias decisões [gênio, gênio!]."
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enfim, pois sim. esse rap é tarja preta, remédio forte (alô, wado, bojo e maria alcina!). cê tá entendendo tudinho, né?