segunda-feira, agosto 07, 2006

todo artista tem que ir aonde o povo está?

simone cantava feito cigarra; milton nascimento dava a cara a tapas & beijos nos bailes da vida; a alma de gilberto gil e da platéia cheirava a palco & folia; roberto carlos aproximava 1 milhão de amiga(o)s só bulindo com os côncavos & os convexos; a polícia-política pedia documentos, a blitz só tinha instrumentos; industriais, empresários e trabalhadores de fábricas, gravadoras, televisões, rádios e folhas preenchiam os vazios de suas (nossas) vidas com neon.

enquanto acontecia tudo isso (& muito mais), havia bell marcondes, do outro lado do espelho.

mas quem é essa mulher? quão longínqua e distante de tu é o estribilho dela? ou, pelo outro lado do espelho de alice, quão vizinho e próximo de tu é o cotidiano dela? que indústria(s) te alicerça(m)? que tipo de sangue-carne-osso jorra dentro de ti, pororoca-pirapora-nossa?

"protegido" pela capa alaranjada da profissão de jornalista, tentei me aproximar do que sempre foi próximo de mim, na "carta capital" 401, de 12 de julho de 2006.

vou te contar que doeu, desta vez doeu demais. mas quero falar de uma coisa, também: que depois, para lá da dor (e, mais ainda, para lá do medo de sentir dor), havia tanta belezura, tanta delicadeza, tantos sentidos serenos, tantos simples sorrisos.

n'estamira estaríamos todos nós, a comunidade inteiriça, o baile todo, masculino & feminino, a sociedade?


DA INDÚSTRIA À VIDA NA RUA
A produtora musical que visitou as drogas e a indigência, e voltou

Por Pedro Alexandre Sanches

As luzes se apagam para que comece o show de algum grande ídolo da canção popular. De cima do palco, tudo parece estar perfeito. Lá atrás, um exército permanece em discreto movimento, garantindo que o espetáculo aconteça. Ali se abrigam histórias de imperfeição, de coadjuvantes anônimos como, por exemplo, Bell Marcondes.

Hoje com 50 anos, ela atuou entre os anos 70 e 90 como produtora artística e musical, administradora e divulgadora em escritórios ligados às carreiras de Simone, Roberto Carlos, Milton Nascimento, Almir Sater, Zé Ramalho, Joanna, Fábio Jr. e Zélia Duncan, entre dezenas de outros. Profissionalmente, atuou nos bastidores de catarses coletivas como o espetáculo Canta Brasil, veiculado pela Rede Globo em 1982, e shows da campanha pelas Diretas Já, empunhados por Chico Buarque e a nata da MPB da época.

Esteve sumida a partir de 1995, porque tinha se tornado "moradora" de rua, que foi onde esteve até a virada do século. Hoje, torna-se visível por que escreveu o livro autobiográfico Estou Viva – Não Uso Mais Drogas, editado primeiro de modo artesanal e lançado comercialmente neste 2006, pela editora Semente.

Após 19 anos em que esteve fortemente comprometida com o abuso de drogas (principalmente cocaína) e álcool, Bell não os consome desde 18 de novembro de 1999. No dia em que CartaCapital chega às bancas, completa seis anos, sete meses e 19 dias em abstinência – "só por hoje", como ela sempre acrescenta, seguindo a praxe dos grupos de ajuda mútua em que se apóia para prosseguir essa nova história.

Bell refuta a tese de que a indústria musical, movida a altos graus de pressão e exigência, forneça combustível explosivo para histórias como a sua. "Aquilo é máquina de prazer. Não há momento mais especial que a hora em que se apagam a platéia e a luz de serviço do palco, para começar o show. Fica todo mundo no escuro ao mesmo tempo: o artista na coxia, o público quietinho na platéia, todo mundo ligado na mesma emoção."

No livro, refere-se constantemente ao show business como fonte maior de prazer: o convívio com grandes artistas, carros e hotéis de luxo, viagens, o dinheiro recebido e gasto em dólar. Mas era a fase mais inflada, acelerada e mercadológica da indústria musical, nas décadas de 80 e 90, e ela também descreve inúmeras cenas de abuso químico em banheiros de aeroportos, hotéis, turnês, intervalos de shows, feiras, megaeventos etc.

"É um falso mito essa história de que o meio artístico está cheio de droga. Não é mais ali do que em outros lugares. Durante sete anos, de 1973 a 1980, não precisei de nada. Comecei a usar em 1980. Construí toda uma carreira sem a carreira, depois é que ela apareceu", sustenta. "Não é específico, pode ser aquela empregada que fica três horas dentro do ônibus e chega para trabalhar numa casa onde há toalha para tudo. Na casa dela, a família inteira se enxuga na mesma toalha. Quer mais pressão que isso?"

Prova disso, para ela, é o fato de que uma de suas fontes atuais de sustento é a série de palestras que faz. Tem sido chamada para falar em ambientes tão diversos como empresas estatais, condomínios milionários, escolas religiosas, sindicatos, fábricas de cachaça etc.

CartaCapital a acompanhou numa dessas palestras, para funcionários do turno da madrugada de uma grande empresa de serviços públicos. Bell encontra os trabalhadores ao final da jornada, dispersos, arredios, barulhentos, hostis ao tema. Logo estão silenciados pelo lado dourado da história (o do show business), que ela narra com perspicácia e franqueza. Mas a mesma franqueza é utilizada para iluminar o lado sombrio.

Conta que é filha de mãe solteira que era filha de mãe solteira, na mesma ramagem familiar a que também pertenceu Monteiro Lobato. Que a mãe também trabalhava no turno da madrugada, numa enfermagem de pronto-socorro, atendendo a pacientes que chegavam baleados da Boca do Lixo. Que, enquanto isso, passava as noites sozinha, em casa. Que foi violentada quando bem criança. Que, quando a mãe morreu, em 1995, não lhe restou nenhum parente. Que, na rua, ficou cheia de piolhos e com nove dentes na boca.

A platéia familiariza-se, torna-se participativa. Um homem clama a religião como solução, ela responde na ponta da língua: "Religião sozinha não funcionou para mim. Quando fui só à psiquiatria ou à psicóloga, não funcionou. Quando fui só nos grupos de ajuda mútua, voltei a usar. Para mim, nada isolado funcionou. Só a combinação de tudo". Uma mulher revela que o marido passou pelos mesmos problemas. Ao final, vários funcionários pedem seu e-mail. Bell parte, quase 4 horas da manhã.

Algumas das primeiras dessas palestras aconteceram em 2004, em Brasília, numa clínica psiquiátrica e também na Secretaria Nacional Antidrogas da Presidência da República. Ela descreve o gosto de flash-back ao pisar no aeroporto: "Revivi um flash-back muito forte, de tudo. Do show, da loucura, o medo, tudo. Mas não fui entrar na lojinha para ver se as garrafinhas de uísque ainda estão lá. Isso não interessa".

Este é o momento oposto ao da ascensão e queda simultâneas, iniciadas quando trabalhava na empresa Cigarra Produções, da cantora Simone, entre 1978 e 1985. "Simone tentou muito me ajudar. Muita gente passou a vida me ajudando, me ajudando, me ajudando, até não agüentar, até não saber mais o que fazer com aquela tranqueira", lembra.

A fase pós-Cigarra ela viveu intercalando internações em instituições psiquiátricas (inclusive uma que serviu de cenário para o filme Bicho de Sete Cabeças) e comunidades religiosas com trabalhos sem vínculo fixo para artistas como Ronnie Von, Benito di Paula, Gilliard, Trem da Alegria e muitos outros. Foi das primeiras a trabalhar com Zélia Duncan, então Zélia Cristina – abandonou o trabalho pelo meio, sem prestar satisfações.

"Meu plano era de morte", resume aquela época, que culminou com anos de consumo cotidiano, ininterrupto e "insano". Ajuda veio até de Roberto Carlos, com quem trabalhou em conexão com os empresários Attílio Vanucci Filho e Robson Paraíso, ambos mortos precocemente, o primeiro num acidente automobilístico viajando de um show para outro e o segundo, assassinado durante um assalto. Foi Roberto quem pagou o enterro de sua mãe.

Essa morte foi o episódio que precipitou a ida de Bell às ruas – não por acaso, são os relatos da perda da mãe e da vida na rua que a levam às lagrimas, em palestra ou em entrevista. "A maior dor que senti na rua foi de querer chegar a algum lugar e não conseguir, não ter para onde ir", documenta a situação-limite de perda de identidade. "Se era de dia, queria que ficasse de noite, para eu dormir. De noite, queria que amanhecesse, para acabar a noite, porque morria de medo dela. É horrível."

Pedia esmolas para comprar cachaça e dormia nas imediações do Hospital das Clínicas, o mesmo local onde buscou as primeiras tentativas de socorro, ainda nos anos 80. "Minha árvore ainda está lá. Construíram um estacionamento, mas deixaram as árvores. Passo ali, pelo amor de Deus, dói muito. Meu maior medo, hoje, é da rua." O vínculo com o HC persiste até hoje, por intermédio do Programa para Dependência Química da Mulher (Promud), do Instituto de Psiquiatria. "Tomo um tarja vermelha, antidepressivo, anticompulsivo e antiobsessivo. Já estou com meio comprimido por dia, cheguei a tomar 20", explica.

A virada rumo à recuperação, após mais de quatro anos na indigência, se deu a partir do HC, da psicoterapia com uma profissional voluntária e da descoberta dos grupos de ajuda mútua. É um modelo de terapia grupal que surgiu nos Estados Unidos, em 1935, com os Alcoólicos Anônimos, e cuja metodologia inspirou, mais tarde, redes como Narcóticos Anônimos, Jogadores Anônimos e correlatos.

No Brasil, tais grupos têm crescido e se espalhado pelo País mais recentemente. Sob garantia recíproca da manutenção do anonimato lá fora, são freqüentados tanto por "cidadãos comuns" quanto por roqueiros em atividade ou atores da Globo – Dennis Carvalho e Andréa Beltrão são "celebridades" que já falaram publicamente sobre experiências particulares nesses grupos.

CartaCapital também acompanhou Bell a uma dessas reuniões, em que ela atua como secretária-coordenadora. Cada participante se apresenta e diz há quantos anos, meses e/ou dias se encontra "limpo", completando com o lema "só por hoje" e seguido por congratulações dos companheiros. Se não está "limpo", apenas se apresenta e diz “limpo só por hoje”, sob exclamações de incentivo dos demais.

Os depoimentos individuais seguem-se, sem interferências, muito menos julgamentos de uns sobre os outros. Misturam-se entre os 25 participantes da reunião brancos, pardos e negros; ricos empresários, free-lancers e desempregados; soropositivos; atletas e ex-atletas; prostitutas e ex-prostitutas; artistas plásticos etc. Quem chegou calmo parece sair calmo, quem chegou nervoso parece ficar menos nervoso. Finda a reunião, cada um segue separadamente de volta para o seu dia-a-dia.

Bell sintetiza a eficácia do grupo: "Só quem sofreu os horrores do alcoolismo e da drogadição pode entender o que o outro está sentindo, entender a dor de não conseguir parar, entender todo aquele comportamento desonesto, manipulador, em que a droga está à frente de tudo".

No passo a passo em que tem vivido desde 1999, ela passou também pelo programa de tevê de Netinho de Paula (ver CartaCapital 360), onde obteve um tratamento dentário gratuito e ganhou o computador com o qual viria a escrever o livro. Explica com simplicidade a razão de ter omitido do texto a importância dos grupos de ajuda: "Porque eu só aprendi a falar isso agora".

Também é simples a justificativa sobre por que decidiu se superexpor, abrindo sem reservas histórias íntimas e dramáticas: "Prefiro me expor como uma dependente química e alcoólatra em recuperação que ser reconhecida na rua como 'nóia', aquela bêbada que dá escândalo, cheia de piolho na cabeça na porta de um escritório de produção artística, consegue imaginar o constrangimento? Eu já vinha me expondo de forma muito negativa, por muito tempo. Agora ninguém vai falar nada, já contei tudo, está tudo às claras".

A auto-exposição em grupos, livro, palestras e diante de jornalistas complementa-se: "Tem de falar, falar, falar, falar. Você pensa que não cansa, que não dói? Nossa. Mas creio que é a única forma para eu não voltar a usar. É dizer que dá para parar de usar droga, não importasse o quão fundo a pessoa possa ter ido". E conclui: "Antes, a droga era o foco para usar. Hoje ela é o foco para não usar. E continua sendo o foco".

Ainda ressabiada, Bell batalha hoje um retorno, assessorando o inventivo grupo feminino Samba de Rainha. Diz que, intimamente, trabalha para sanar aos poucos dívidas "morais" que acredita acumular. "Meu sonho cor-de-rosa é levar um livro para Simone e outro para Zélia, mas e o medo de não ser recebida, de ser rejeitada? Minha desculpa era o dente, quero ver que desculpa vou dar agora que estou com um teclado novo. Mas preciso ir, mostrar que estou viva, prestar minha homenagem, pedir minhas desculpas."

Outro sonho já é realidade, "só por hoje": a casa em que mora de aluguel no bairro de Perdizes, uma edícula reformada por ela ao fundo de um extenso terreno. Hoje, a casa lhe dá direito a muitos vizinhos, uma bananeira e uma piscina em frente, um céu de cidade de interior e a companhia da cachorra Pop – e também lhe faz ter vontade de chorar.

"Preciso fechar o teto e colocar um piso, porque assim me lembra os barracos em que vivi. Fora isso, é um paraíso." Por entre vícios públicos e virtudes privadas, esses capítulos acontecem longe de holofotes, flashes e refletores – mas são vividos por Bell Marcondes como protagonista, não como coadjuvante. E são episódios que acontecem em todo canto, a qualquer momento.