quinta-feira, setembro 28, 2006

sou caipira, pirapora...

...e, não, em 12 anos de gestão-daslu, o tucanato-pefelismo paulista não "conseguiu" chegar perto de despoluir os rios mortos de sua capital, os rios podres de seu interior. segue povoada de morte e desolação a megalópole que se pretende, pretensiosa, a mais "rica" e "viva" do brasil, e que faz desembocar um oceano de podridão nas campinas e vales do interior do estado que se presume, presunçoso, o mais "próspero" e "desenvolvido" do país.

como podem(os) não querer se(nos) assemelhar a urubus em volta da carniça e a ratazanas de beira de esgoto uma população e uma elite política que não prezam(os) a própria saúde, o próprio bem-estar, o próprio prazer de estar mergulhados na vida aquosa que tantas vezes simulam(os) ser só seca?

tal qual bóia nas águas que banham pirapora do bom jesus , emerge abaixo reportagem publicada à edição 406 de "carta capital" [o link traz algumas das fotos de olga vlahou que acompanharam a reportagem], de 16 de agosto de 2006. abaixo dela, submerge um perfil "brasiliano" do sambista arraigadamente paulista osvaldinho da cuíca, vindo da edição 402, de 19 de julho de 2006, inspirador do que viria ser a viagem enternecida e dolorosa à tão próxima e tão distante pirapora (que também é governada pelo psdb).

[e eu, que venho de maringá, lá no interior norte do paraná, caipira, pirapora do sul do brasil, com muito orgulho!!!, rendo minhas homenagens ao interior de são paulo e ao samba rural de são paulo e aos interiores de todos os brasis! a bênção, mãe elis regina!]

e já estamos em plena zona eleitoral!, agora é festa!, excelentes votos para todos nós!!!


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O SAMBA E PIRAPORA
O batuque profano e a romaria sacra convergem no interior profundo, a 54 km de SP

Por Pedro Alexandre Sanches

A charrete, o cavalo, a bicicleta, a motoca, o Fusca, a Kombi, o ônibus de turismo. Os peregrinos que vieram a pé, a barraca de lona, o banco do Fusca, a boléia do caminhão. A procissão religiosa, a música sertaneja, o parque de diversões. O samba quase escondido, encolhido, ilhado ali dentro da multidão. Tantas imagens típicas de periferia colecionam-se numa visita a Pirapora do Bom Jesus, num fim de semana de romaria e festa religiosa no município de 15 mil habitantes a 54 quilômetros de São Paulo.

A paisagem de pé de serra e as construções coloniais comprovam que ali é o interior profundo do Brasil, embora distante pouco mais de meia hora da maior capital do País, se não houver trânsito. Não fossem os cavalos, as charretes e os chapéus de caubói, a cidade apinhada de romeiros reproduziria fielmente nesses dias 5 e 6 de agosto o caos da capital. Engarrafamentos, sirenes insistentes de ambulâncias, policiamento numeroso e ostensivo (além de tudo, é o fim de semana que inaugura a terceira onda de ataques do PCC).

Em meio ao pandemônio ainda bucólico que aviva e transtorna a cidade, há ainda o rio. Pirapora quer dizer "peixe que pula", em tupi-guarani. O Bom Jesus do nome remete à aparição nas águas do rio, diante de três escravos locais, em 1725, de uma imagem de madeira de Jesus Cristo. Os devotos não tardariam a querer se banhar naquelas águas "milagrosas".

O rio se chama Tietê. Nasce na Serra do Mar, banha a capital, atravessa já apodrecido 62 municípios ribeirinhos e deságua 1.100 quilômetros depois, no rio Paraná, divisa com o Mato Grosso do Sul. Hoje, o Tietê de Pirapora não tem peixes que pulem nem águas limpas em que os romeiros possam se banhar. Tem, em troca, enormes blocos de espuma com cheiro de esgoto, que completam de modo belo e desolador a paisagem contraditória da cidade-abrigo do Bom Jesus.

Não à toa, Foi um Rio Que Passou em Minha Vida, do sambista carioca Paulinho da Viola, será um dos sambas mais freqüentes no reduto profano das festividades. Romaria (sou caipira, Pirapora...), toada caipira do santista Renato Teixeira que a gaúcha Elis Regina popularizou, vai servir mais aos fiéis do campo sagrado, embora flerte com o profano nos versos como eu não sei rezar/ só queria mostrar/ meu olhar, meu olhar, meu olhar.

Embora acuado, o samba liderado pela matriarca Maria Esther Camargo Lara, 82 anos, não está incrustado na balbúrdia por acaso. Desde o início, a religiosidade local se complementou por rituais escravos que erigiram lado a lado com a devoção o batuque rural, de bumbo, exclusivamente rítmico, um dos nascedouros do maltratado samba à moda paulista. Dessa água se nutriram "eruditos" como Mário de Andrade e Claude Lévi-Strauss e "populares" como Geraldo Filme e Plínio Marcos.

Quem mantém acesa a chama do samba em meio ao espetáculo religioso é Osvaldinho da Cuíca, ex-integrante dos Demônios da Garoa, que dirige em acordo com a gestão tucana reeleita da cidade o encontro entre lendas de Pirapora, como Maria Esther, e lendas do samba paulistano, como Carlão do Peruche.

"O samba está fraco, a prefeitura só comprou dois surdos e um bumbo", provoca Esther, que no sábado foi ao enterro da irmã, desmaiou e visitou o hospital, mas à noite já trocou a roupa preta por outra colorida, típica do samba rural de Pirapora. Seu grupo até ousa sair pelas ruas de paralelepípedos na tarde de domingo, antes da procissão, mas no resto do tempo permanece confinado no Espaço Samba Paulista Vivo, da prefeitura, onde a pinga, o samba no pé e a democracia racial fluem sem parar (e sem pagar).

O samba resiste comprimido por várias frentes. No próprio espaço, há os grupos que fazem versões sambistas de Ciúme de Você (do repertório iê-iê-iê de Roberto Carlos) e Gostava Tanto de Você (soul de Tim Maia). Crianças e adultos cantarolam funks cariocas nas ruas, ou então compram no camelô da praça CDs piratas dos gêneros mais populares do momento (de samba, há um e outro de Martinho da Vila, Alcione, Demônios da Garoa, Raça Negra, Art Popular, e só).

A prefeitura cede amplo terreno ao ar livre para os shows também gratuitos de música sertaneja, com Rio Negro & Solimões fazendo apoteose, após a procissão. No show lotado de Jander & Jandel, a dupla convida o público a conferir a programação dirigida por Osvaldinho do outro lado do rio – a recíproca não é verdadeira.

A atmosfera carregada que emana do rio extravasa para relações sempre tensas, como o próprio Osvaldinho da Cuíca já previra: "Vai pintar ciúme". Esther se enerva com a Velha-Guarda do Peruche, que toca na frente do grupo local e, para ela, já não é samba de verdade. "Antigamente a gente tinha muito mais tempo, benzia o bumbo, fazia oração, todo mundo fazia silêncio", discursa ao microfone, alfinetando o público.

O próprio Osvaldinho vai às turras públicas com a Velha-Guarda do Peruche, que não trouxe acompanhamento musical, e com o grupo Samba do Baú (de jovens da zona leste da capital que cantam temas de raiz a pedido da platéia), porque o vocalista errou numa explicação sobre as tradições de Pirapora. O samba paulista briga consigo mesmo.

Mesmo assim, uma harmonia estranha e espontânea perpassa tudo o que está acontecendo por ali. Enquanto na praça da igreja a fila para adorar a imagem do Bom Jesus se arrasta feito cobra pelo chão, no Espaço Vivo os chapéus de caubói vão se misturando ao samba no pé. Confundem-se no salão os batuqueiros tradicionais, os caubóis, as Tias Baianas Paulistas das escolas de samba da capital, estudiosos que filmam com câmeras digitais, fãs que tiram fotos com telefones celulares, rapazes que acompanham a batucada com camisetas de Ramones e Iron Maiden (as bandas de rock) ou de Cuba (a ilha).

Dona Esther é apresentada por um grupo de mulheres a um homem sorridente que, dizem, veio da África. "Não gosto de preto", ela provoca de novo, para a seguir completar: "Não gosto porque me casei com um. Se vocês soubessem o quanto preto é gostoso..." As mulheres gargalham. O homem, um refugiado congolês, sorri e agradece Esther pela música que ela compõe, recria e governa.

Crianças e jovens do grupo local de samba de roda exalam alto contraste, dançando escondidos embaixo de batas coloridas e enormes máscaras em forma de caveiras. O mais velho dos batuqueiros do grupo, João do Pasto, 70 anos, minimiza os contrastes abundantes na história sacra e profana de sua cidade (e ali mesmo no salão): "É igual política. Todo mundo era amigo, ninguém era empregado de ninguém. Aqui vem vereador, vem noviço. Só o que estragou mesmo foi a poluição desse rio".

E é com essa poluição que a metrópole vai retribuindo o que construiu e aprendeu com a periferia e o samba de Pirapora.


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BRASA ACESA NO BEXIGA
Aos 66 anos, Osvaldinho da Cuíca enche de vida a comunidade da Vai-Vai

Por Pedro Alexandre Sanches

A feira livre vai sendo desmontada no início da tarde de terça-feira, mas segue alvoroçada a confluência entre a praça 14 Bis e as ruas São Vicente, Dr. Lourenço Granato e Cardeal Leme, no coração do Bexiga, região central de São Paulo. Há dois motivos a mais para o movimento, além da feira. Um é a reta final da reforma da quadra de ensaios da Escola de Samba Vai-Vai, que será reinaugurada na noite seguinte. Outro é a presença de Osvaldinho da Cuíca, mestre-de-cerimônias da festa de quarta-feira e, acima de tudo, história viva do samba paulista.

Paulistano nascido no Bom Retiro há 66 anos, Osvaldinho veio ver as reformas e dar entrevista a CartaCapital em seu território natural, no boteco ao lado da quadra da Vai-Vai. No decorrer da tarde, a mesinha instalada na calçada testemunhará uma procissão de abraços e cumprimentos a um dos fundadores da Vai-Vai, quando de sua conversão de cordão a escola de samba, em 1972.

"Fomos engolidos pela cultura das escolas do Rio de Janeiro, que tinham enredo, alegoria, porta-bandeira... Havia uma ansiedade muito grande do paulista em se parecer com o carioca, porque o carioca estava na revista Cruzeiro, na tevê, no cinema", explica ele.

Nem assim o samba de São Paulo perdeu identidade própria, como esse fundador da ala de compositores da Vai-Vai atesta no disco recém-lançado Osvaldinho da Cuíca Convida – Em Referência ao Samba Paulista (gravadora Rio 8, com convidados como Jair Rodrigues, Elizeth Rosa, Aldo Bueno, Quinteto em Branco e Preto e outros). laborando uma geografia sonora do samba de cá, o CD regido por Osvaldinho passeia por Pirapora do Bom Jesus (berço de origem do samba rural do estado), pela Barra Funda (nascedouro do samba na metrópole, no início do século XX, com o hoje esquecido Dionísio Barbosa), pelo Tucuruvi (sua principal morada ao longo da vida) e, claro, pela Bela Vista (nome "oficial" do bairro do Bexiga).

"Os cachorros do Bexiga latem no ritmo do samba, reparou?", diverte-se, enquanto os donos dos cachorros se encarregam da xepa da feira da manhã. Um homem negro aproxima-se e põe-se a cantar um samba. "Eu sou compositor", ele justifica, a fala meio pastosa. O mestre elogia, cumprimenta, pede desculpas, prossegue a entrevista.

O Bexiga, para ele, é reduto de resistência do samba no centro da capital: "A cidade foi empurrando para a periferia a gente humilde que fazia trabalho braçal, e com ela o samba foi ocupar grandes redutos na zona leste, zona sul e zona norte". Nas memórias da Barra Funda ou da Bela Vista, guardam-se também os tempos em que fazer samba rendia perseguição policial e prisão, uma realidade que Osvaldinho conheceu de dentro.

"Era proibido batucar na rua, quem não tivesse carteira assinada era enquadrado no artigo da vadiagem", diz o sambista que foi vendedor de jornal, feirante, vendedor de frutas na Estação da Luz e engraxate na porta da gafieira Nelsônia, no Tucuruvi. "Gafieira era para o povo humilde que trabalhava na sacaria e no fim de semana vestia terno elegante e chapéu panamá. Era a única forma legalizada de sustentar o samba em São Paulo", lembra.

"Hoje a sociedade inverteu os papéis, a mais alta classe tomou posse do samba, financia e participa do carnaval. O pobre continua discriminado – antes era porque batucava, hoje, porque não pode pagar 300 reais em fantasia ou camarote. Antes era a polícia, hoje é o capital que mantém o pobre fora", avalia, plantado num dos poucos núcleos que ainda não foram remetidos à periferia.

Diversos membros da diretoria da Vai-Vai aproximam-se para reverenciar o patrono. O sambista Thobias da Vai-Vai, novo presidente da escola, chega, abraça Osvaldinho, supervisiona as obras, fica por ali.

A forte presença negra, tanto no bairro como na agremiação, atesta os pilares de resistência que a Vai-Vai centraliza. Mas o local é caldeirão racial democrático, em contraste com bairros vizinhos, como Higienópolis, e os Jardins.

Tulia Yamamoto, assessora de imprensa da escola e da Rede Nacional do Samba, ciceroneia Osvaldinho. "Meu pai trabalhou com ele, foi um dos primeiros japoneses no carnaval paulistano", diz ela, contando que hoje integra uma ala de japoneses na escola.

Descendente de italianos por parte de pai e de "caboclos do mato" por parte de mãe, Osvaldinho integra a "ala italiana" do samba paulista, que conquistou notoriedade nacional com Adoniran Barbosa, "o poeta do Bexiga". Entre 1967 e 1999, Osvaldinho integrou por várias ocasiões o grupo Demônios da Garoa, expressão máxima da difusão do samba italianado de Adoniran (e de São Paulo) pelo Brasil.

"Adoniran e Demônios da Garoa deram um colorido à identidade do samba urbano de São Paulo, ao mesmo tempo que traz a influência rural na batida de cavaco e viola. É um samba que só tem aqui, só aqui", ele legisla em causa própria e grandiosa. Embora tenha chamado os Demônios para cantar no disco, ele não cogita voltar ao conjunto. "A formação mudou. Hoje são os filhos, os netos."

Exaltados em seu CD são também os primeiros instrumentos musicais que ele tocou na vida, como as frigideiras de cozinha e os apetrechos da caixa de engraxate, com os quais o garoto Osvaldo imitava o som da cuíca – hoje, é uma cuíca profissional que ele exibe e acaricia ao longo da entrevista.

Entre uma brincadeira e outra com o bêbado de botequim ou o operário que termina a pintura num andaime ao lado, ele delimita outra diferença entre o samba carioca e o paulista: "Aqui o samba nasce e morre na rua, no meio do povo, nunca teve a vitrine e o glamour que teve o do Rio".

Talvez a diferença more mesmo nas visões de mundo divergentes dos sambistas de uma praça e de outra. Embora especialmente apartado da mídia, da fama e do dinheiro, o samba paulista goza de celebridade local, artesanal, instantânea e espontânea, como comprova o assédio pelas ruas do Bexiga.

Recuperado de um câncer na garganta há poucos anos, brinca com a própria vida: "Eu estava com minha velinha apagando, aí acendi de novo". Acendeu mesmo. Em plena atividade, canta em shows e discos e comanda caravanas anuais de sambistas a Pirapora, para participar das romarias que desafiam maniqueísmos fundindo os extremos opostos da religiosidade sagrada e do samba profano.

O próximo sonho, além de concluir um DVD sobre o samba paulista, é conduzir um documentário sobre a música nos quilombos da zona portuária de Santos, que ele diz estar à beira da extinção. Com o cenário de contrastes do Bexiga ao fundo, cantarola com voz renovada uma predileta de Adoniran, aquela que diz que eu, que já fui uma brasa,/ se me assoprarem, posso acender de novo. O povo apinhado ao seu redor dá o selo de garantia: a brasa segue aquecendo quem quiser se aproximar.