quinta-feira, outubro 19, 2006

deslizando pela interlândia

"carta capital" 413, de 4 de outubro passado, conversando sobre um grupo extraordinário e sobre um dos discos brasileiros mais maravilhosos do ano desta graça de 2006. asas à TRANSfiguração!

e vosmecê ainda vem querer trazer para o xxi o antiquado palpite infeliz de que o norte-nordeste é "atrasado" e o sul-sudeste é "avançado", meu compadre? larga desse lero-lero e dessa lenga-lenga desse papo atrasado da gota serena, coronel!


FLUTUANDO NA "INTERLÂNDIA"
Entre o Nordeste e o Sul, o Cordel do Fogo Encantado desmistifica o sertão

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Eles vieram de Arcoverde (PE) para trazer ao Brasil e ao mundo notícias de um Nordeste que é diferente do Nordeste de Luiz Gonzaga, Ariano Suassuna, Alceu Valença, até mesmo o da fusão entre tradição e modernidade operada nos anos 90 pelo movimento recifense mangue bit. Ao lançar o terceiro e mais impressionante de seus discos (Transfiguração, independente, R$ 30), os cinco compositores-percussionistas-repentistas-roqueiros-músicos-poetas-atores-artistas plásticos do Cordel do Fogo Encantado comportam-se como habitantes de um lugar transitório e imaginário que Lirinha, poeta central do grupo, gosta de chamar "interlândia".

Interlândia pode ser o Nordeste, ou São Paulo (onde fixaram morada Lirinha e Clayton Barros, responsável também pelos violões no Cordel), ou qualquer outro lugar. Mas a interlândia em que eles nascerem e que gerou a arte inclassificável que fazem chama-se mesmo Arcoverde.

É uma cidade de 70 mil habitantes, a 160 quilômetros de Recife, no portal de entrada do sertão, para quem vem do litoral. "É uma troca de paisagem, ainda numa área de transição entre o semi-árido e o agreste", define Clayton. "É uma cidade que a gente chama de entroncamento, de trânsito, de passagem e pouso, um grande trevo. Foi a primeira cidade desenvolvida da região, devido à presença do trem, que ia até lá e servia para embarcar todo o ciclo do couro", completa Lirinha.

Ele evoca, como ilustração da zona de fronteira que é a interlândia natal, uma carta enviada pelo cangaceiro Lampião ao governador de Pernambuco, após uma das últimas batalhas que venceu: "Fico governando essa zona de cá, por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco (que era o nome antigo de Arcoverde), e o senhor, por sua vez, governa do Rio Branco até a pancada do mar".

Os pais dos dois músicos migraram do sertão para a cidade-trânsito, confluência também dos índios xucurus. Segundo Lirinha, "o grande conflito local é dos xucurus com a família Maciel, de Marco Maciel, ex-vice-presidente. É disputa antiga, pela posse da terra e pela posse da água dessa terra. Foi a pesquisadora Maria Adelina que os descreveu como os índios da interlândia, e fiquei achando que a interlândia é o lugar ficcional, a nossa Passárgada...". "...O nosso sassaruê", acrescenta Clayton.

Lirinha lembra que, na mal documentada história do sertão, a presença afro-descendente escapou à dialética escravo/senhor de escravo. "Lá não se instalaram usinas, nem a escravidão como a gente aprendeu na escola, com senzala e casa grande. Aquela região foi das pessoas que por algum motivo foram hostilizadas ou se embrenharam para uma região de mais difícil adaptação. Isso originou uma relação mais agressiva com o ambiente, de domínio, e não de amor. Hoje é que esse amor também se desenvolve".

No trevo entre tantas origens, deu-se a mítica que poderia, também, traduzir o som livre que o Cordel espalha pelas beiradas do Brasil. Lirinha explica, ainda discorrendo sobre Arcoverde: "Tudo isso fez com que a cidade arranhasse mais seu tradicionalismo, a manutenção dos valores, a vagarosa modificação dos valores que é inerente aos habitantes dali. Arcoverde descaracterizou seus prédios antigos, por essa falta de vínculo, por essas passagens tão rápidas. É um pouco como Brasília".

E legou, para eles, a uma pressão que vem de dois pólos ao mesmo tempo. Por um lado, sua música é às vezes ouvida com reticência no sul, por privilegiar como formas de expressão a poesia de cordel, a presença cênica ligada a teatro e circo e a instrumentação supostamente primitiva da percussão. Por outro, os conterrâneos costumam, segundo eles, se ressabiar contra o que compreendem como uma descaracterização dos ritmos locais.

Eis, nas palavras de Lirinha, a idéia central que o grupo quer vir contestar: "A gente ainda responde muito pelo rótulo do regional, do regionalismo. Aquele grupo de maravilhosos escritores, com Graciliano ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, quando lança o movimento regionalista como resposta à tendência cosmopolita do modernismo, começa a fazer uma literatura fechada ali. E se congela a nossa região nessa imagem. Seriam o sul futurista, aberto, cosmopolita, e o sertão arcaico, antigo, fechado, conservador. Não é real. Não é verdade".

Essa é a rota que os leva a ter de adotar postura de embate com seus pais simbólicos. "Luiz Gonzaga nasceu em Exu, a uma hora e meia da nossa cidade. É muito forte a pressão artística dessa pessoa, da figura que ele era e do símbolo que representa", Lirinha principia por assumir.

E vem o embate. "O que a gente mais escuta é que Asa Branca é o hino do Nordeste. Mas adotá-la como hino é submeter uma população, é forçar a juventude a repetir por gerações e gerações que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação. Nem um pé de plantação? Se existe hoje a visão de uma turma que mora no sertão e é o contrário disso, que acha que deve haver vários pés verdes, que a irrigação deve ocorrer, que deve ser quebrado o coronelismo? Luiz Gonzaga sabia fazer músicas belíssimas, mas na obra dele há a perpetuação dessa submissão. E é entendida como um hino do Nordeste?", contesta Lirinha. "É datado, não é atemporal. Pode representar um momento, uma época, mas não serve para o futuro", diz Clayton.

Foi assim que o Cordel, em 1999, decidiu abandonar os cocos de Arcoverde e adotar exclusivamente repertório próprio e alheio à tradição de baiões, xaxados e xotes. Não significou mera fuga da origem. Sim, há no CD citações a Nietzsche, Brecht, Italo Calvino, Jack Kerouac, Ana Cristina César, ao punk e a Zé Celso Martinez Corrêa (com que Lirinha trabalhou, como diretor musical numa das encenações de Os Sertões e como ator-colega no emblemático Árido Movie, filmado em Arcoverde). Mas há, em igual intensidade, maracatu, candomblé, repente, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto.

Do imaginário de João Cabral, o Cordel opera a transfiguração de Morte e Vida Severina em Morte e Vida Stanley. Lirinha conta a gênese da canção, à beira do parque da Água Branca, refúgio paulistano após o êxodo da semi-aridez de Arcoverde. "Almoçávamos um dia no restaurante quando chegou um rapaz todo melado de cal, perguntando se éramos do Cordel do Fogo Encantado. Ele era de Serra Talhada, cidade vizinha à nossa. Tocava guitarra numa banda e estava construindo a universidade ali do lado, trabalhando de empreitada e dormindo na obra para poder ir embora mais rápido. Quase uma escravidão. Quando perguntei seu nome, disse que era Stanley. É o moto-contínuo da retirada dos Severinos, e de repente um Severino coloca em seu filho o nome de Stanley". Clayton atesta o alcance da metáfora: "Eu trabalhava na construção civil aqui em São Paulo nos anos 80, e meu nome é Clayton. Eu sou um Stanley".

Na contramão de Euclydes da Cunha, que partiu do Sudeste ao sertão para documentar as notícias da Guerra de Canudos, os dois vieram ser, em São Paulo, correspondentes da guerra civil travada a partir dos presídios abarrotados.

Ela está presente em Pedra e Bala (ou Os Sertões), em parceria com o rapper carioca BNegão, que criou versos de combate de pequeninos contra um tal gigante, gigante como os barões das megacorporações/ gigante como o coronelado dos grandes e pequenos sertões/ como os vários e vários e vários Ubiratans com seus sanguinários batalhões. Saiu na mesma semana do assassinato do Coronel Ubiratan, comandante da operação que massacrou 111 presos no Carandiru, em 1992.

O tema da prisão aparece primeiro num poema de Manoel Filó, que diz que a prisão é sinistra, amarga e fria/ dum velório tem pouca diferença/ não conheço quem vá pedir licença/ pra entrar num portão duma cadeia e conclui que uma gota de pranto molha o riso/ quando o preso recebe a liberdade. Aí vem Aqui (ou Memórias do Cárcere), em que o culto e sofisticado Lirinha faz o incomum exercício de vestir o ponto de vista de um presidiário. "A construção tem muito a ver com o PCC. Tive vontade de, pela licença poética, fazer uma poesia de dentro da cadeia. Esse trânsito costuma ser escondido, pela própria idéia dos muros."

"E também serve para uma pessoa presa em si mesma, se libertando da cadeia de rótulos e regionalismos", afirma Clayotn, provando que até mesmo o sentimento de prisão pode se deslocar pela zona livre da interlândia. Se é assim, é imediato concluir que as notícias do sertão moderníssimo de Arcoverde chegarão até nós pelo Cordel do Fogo Encantado, estejam seus integrantes onde estiverem.