quinta-feira, dezembro 07, 2006

astronautas libertados

helena dos santos é o nome da autora de alguns dos sucessos mais felizes de roberto carlos na década de 60, mais alguns poucos iê-iê-iês desgarrados pelos anos 70 e até 80.

são de sua autoria as mimosas delicadezas "na lua não há" (63), "meu grande bem" (64), "como é bom saber" (65), "sorrindo para mim" (65), "esperando você" (66), "nem mesmo você" (68), "do outro lado da cidade" (69), "o astronauta" (70), "agora eu sei" (72, em parceria com edson ribeiro), "fiquei tão triste" (76), "recordações" (82, também com edson ribeiro).

no livro recém-editado "roberto carlos em detalhes", paulo cesar de araújo reconstitui a odisséia de helena, mulher negra (nascida em 1923), filha de lavrador, favelada e viúva. ele conta que, após tentar mostrar seus sambas a jamelão, dolores duran, emilinha borba, nelson gonçalves, cauby peixoto e sérgio murilo, helena foi bater no ainda desconhecido roberto carlos, à procura de alguém que a tornasse compositora gravada, jurada, sacramentada. após muita marcação cerrada, emplacou "na lua não há" no lado b do compacto de "parei na contramão", que seria o primeiro sucesso nacional do futuro rei da juventude. por tal feito, narra araújo, helena passou a ser considerada como um talismã por rc - e ele continuou gravando a (até então) pobre compositora, por anos a fio.


tudo isso é para dizer que, não, não há nenhuma novidade no fato de roberto carlos convidar um autor como mc leozinho para ser seu par num dueto musical de especial natalino. desde helena dos santos, rc se identifica com autores pobres, com artistas periféricos, com gêneros musicais marginalizados, com a miscigenação onde-tudo-se-mistura no seio da black music nacional.

é fato, também, que mc leozinho não é helena dos santos. cantor e compositor simples, direto e talentoso, leozinho já é um sucesso nacional, que freqüenta as rádios brasil afora [roberto diz que foi por essa via que conheceu o delicioso funk-melody "se ela dança, eu danço (ela só pensa em beijar)"] e já lançou cd bancado pela som livre, da rede globo [no qual, por sinal, regravou "sá marina", de antonio adolfo e tibério gaspar, sucesso em 1968 na voz black-caliente de wilson simonal].

mesmo aí, não há novidade no convite de roberto para que leozinho descesse o morro e viesse cantar-exultar que "falei com o rei!". rc sempre manteve os ouvidos colados no rádio, no que mais faz sucesso comercial-popular neste país quase continental. nesse espírito, sempre convidou para seu programa anual representantes dos gêneros mais populares do momento - axezeiros, pagodeiros, sertanejos, roqueiros, bregas, cafonas e românticos em geral têm tido ponto de parada garantido no breve instante anual de sociabilidade do mais brasileiro de todos os cantores e compositores populares brasileiros. rc gosta deles, porque gosta de si, e pronto, e ponto, etcetera e tal.

linha, margem, tracinho, tração.


mas, por favor, pare agora, um minutinho só. há, sim, novidade no fato de roberto cantar e abraçar mc leozinho no ano da glória de 2006. se me permitem a arriscada provocação, o funk carioca é (assim como o hip-hop) um gênero musical "de esquerda" - e, não, não é nada habitual que rc chame para duelar com ele algum dos artistas mais rebeldes de cada momento histórico entre os milhares que o "rei" já atravessou.

ora, direis, vaia de bêbedo não vale: leozinho é a ponta mais melódica, aguada, comercial e conformista do funk carioca. hum, pode até ser, mas insisto: ainda que os artistas que integram o movimento funk carioca sejam eventualmente "de direita", o gênero musical em si é "de esquerda" - assim como a dita mpb já virou há muito tempo um postulado musical "de direita", ainda que muitos de seus soldados sejam ou se pensem "de esquerda" (ou, no mínimo, "de centro"). no funk carioca, como no hip-hop, não há espaço (ainda) para antônios carlos magalhães.

o espaço do funk, seja o de leozinho ou o da contundente deize tigrona, é o da rebeldia, do levante, do feminismo, da liberação sexual, da crítica crua à hipocrisia comportamental brasileira. é o lado b (ou a?) do espaço do rap, que é o da rebeldia, do levante, do antirracismo, da denúncia social, da crítica direta à desigualdade social armada no brasil de baixo para cima, com grosseira hipocrisia. ainda que só pela beleza deste instante, roberto carlos hoje está com essa turma. é membro honorário dessa turma de terráqueos em vias dolorosas e demoradas de emancipação.

[não custa lembrar: há dois anos, o rapper paulista rappin' hood gravou uma (per)versão originalíssima de "a história de um homem mau", iê-iê-iê carlista de 65 que motivaria, logo a seguir, o retruque amorosamente (per)vertido "o homem que matou o homem que matou o homem mau", por jorge ben. jorge ben (jor) é um dos convidados natalinos deste 2006 na ceia do "rei", ao lado de mc leozinho, wanderléa, erasmo carlos e a (ex-) tribalista marisa monte. embora já tenha manifestado simpatia pelo hip-hop, rc ainda não liberou o sample da "história de um homem mau" por rappin' hood. e o iê-rap-iê segue inédito no espaço virtual.]

pois então, voltando a helena dos santos. o que paulo cesar de araújo também revela, e para mim foi novidade absoluta e impactante, é que, quando o manancial criativo da compositora começou a se esvair, rc passou a compor ele mesmo algumas músicas que assinou com o nome dela (imagino que, assim, engordava um pouquinho mais a conta de direitos autorais da mulher-talismã negra, viúva etc.). pelo menos duas das melhores canções de helena dos santos, segundo araújo, são de autoria de roberto carlos: os souls arrasa-quarteirão "do outro lado da cidade" (69) e "o astronauta" (70).

tudo isso, aliás, era para chegar a "o astronauta", na minha opinião uma das mais avassaladoras gravações da história do pop brasileiro, levasse ela a assinatura de dona helena ou de seu roberto. "o astronauta" é aquela que, entre batidas soul da pesada, vocais acachapantes e ruídos psicodélicos de nave espacial, diz assim, ó:

"não tenho mais nem uma razão/ pra continuar vivendo assim/ não posso mais olhar tanta tristeza/ por isso não vou mais ficar aqui/ o mundo que eu queria não é esse/ o meu mundo é só de sonhos. bombas que caem, jato que passa/ gente que olha um céu de fumaça/ meu amor não sei por onde anda/ será que os amores já morreram?/ um astronauta eu queria ser/ pra ficar sempre no espaço. e desligar os controles da nave espacial/ e pra ficar para sempre no espaço sideral/ não vou voltar pra terra, não...".

"astronauta aprisionado" era a vestimenta de rc no tormentoso 1970, momento histórico em que artistas brasileiros (e brasileiros artistas) se viam içados a optar entre o exílio, a submissão, a guerrilha ou a piração. roberto carlos colocava em público o desconsolo e optava por um quinto caminho: não ficar na terra, não, ir para o espaço sideral (onde certamente encontraria david bowie, space oddity boiando pelo éter numa tin can).

enfim, tudo isso foi para dizer que, já que estamos falando em astronautas, tomo este pretexto para encerrar o ciclo iniciado no tópico anterior, dedicado aos mutantes & seus cometas no país do baurets, na curva do espaço-tempo 1969-2001-2007. para isso, reproduzo aqui a reportagem da "carta capital" 422 (de 6 de dezembro de 2006) que se originou, pelas transversais do tempo-espaço, da entrevista transcrita abaixo e povoada, você já sabe, por terráqueos, internautas (da interlândia), marcianos, gauleses & troianos.

o que não pára de ribombar na minha brain can é isto, ora bolas: estariam(os) os astronautas em curso de emancipação?


ASTRONAUTAS LIBERTADOS
Os Mutantes driblam três décadas de desacertos, num reencontro histórico

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Numa das cenas-chave do filme 1972, a jovem aspirante a jornalista tenta convencer a editora sisuda de que as especulações em torno da suposta saída de Rita Lee do grupo de rock Mutantes são, sim, um assunto de grande relevância. Por coincidências da chamada "vida real", o filme de tintas autobiográficas dos jornalistas culturais Ana Maria Bahiana e José Emílio Rondeau está em cartaz justamente quando os Mutantes lançam seu primeiro trabalho novo em 30 anos. Mas sem Rita, que de fato se despediu da banda naquele ano de 1972.

A reunião dos "Beatles brasileiros" parecia impossível, fosse por desacordos vários e constantes entre os ex-integrantes, fosse pelo afastamento de Arnaldo Baptista, devido às seqüelas de uma tentativa de suicídio, em 1982. Mas os astronautas libertados (como dizia a letra de 2001) voltaram a aterristar em maio passado, num show proposto pelo Barbican Theatre de Londres, dentro de um festival dedicado à tropicália. E com Arnaldo, que vem ensaiando um retorno paulatino desde 2004, quando lançou o álbum solo Let It Bed.

Reagruparam-se neste 2006 Arnaldo e seu irmão mais novo, Sérgio Dias, ambos integrantes do trio original com Rita, e mais Ronaldo Leme, o Dinho, baterista que se integrou ao grupo em 1970. Sérgio diz que convidou Rita por e-mail, mas ela não topou participar. Quem ocupou o lugar, então, foi a compositora e cantora (de voz grave) Zélia Duncan, que tem se protegido de previsíveis críticas optando por grande discrição no palco e pela atitude de se basear nas interpretações de Rita, mas nunca imitá-la.

"Todos sabíamos o risco que estávamos correndo. Podíamos ser 'o maior mico internacional do ano'. Mas fomos direto para a boca do leão. Ou era ou não era. O nosso off-Broadway foi o Barbican, foi lá o primeiro show do resto da nossa vida", afirma Sérgio, citando de viés o disco Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, de Rita Lee, o canto de cisne do núcleo criativo original dos Mutantes, em 1972.

O fator determinante para levar a façanha adiante, segundo ele, foi a concordância de Dinho, hoje jornalista esportivo. "Falei 'tô dentro, mas vamos ver até aonde eu chego'. Fui sentindo que dava", diz Dinho. O hoje produtor musical Liminha, que esteve na banda a partir de 1971, seguiu a trilha de Rita e declinou o convite para voltar.

O show do Barbican, recém-lançado em DVD e CD duplo, motivou uma série de shows pelos Estados Unidos, que nos anos 90 se tornou pátria da redescoberta da música originalíssima dos Mutantes. Sérgio, o caçula da banda (em que começou como garoto-prodígio, aos 13 anos), assumiu a produção do retorno e tem orientado a recriação de 21 rocks tropicalistas concebidos e trabalhados entre 1968 e 1972. Reconstruídos, os arranjos são executados com uma equipe numerosa de músicos de apoio, sob virtuosa fidelidade aos originais e algumas modificações. Certas letras, por exemplo, voltaram a ser como eram antes de vetadas pela Censura no auge da ditadura militar.

O virtuosismo agora acrescentado remete à experiência dos Mutantes nos anos 70, quando se metamorfosearam num grupo de rock progressivo. Essa foi, aliás, uma das causas de desavença para Rita e, em seguida, para Arnaldo, que deixou o grupo em 1974. "Eu estou desbundado", afirma Arnaldo sobre a volta.

Rompida com o grupo de modo traumático, Rita foi inventar o rock'n'roll à moda brasileira, menos reflexivo e mais alegre que o de Pink Floyd e seguidores. Três décadas depois, os humores progressivos brasileiros parecem entrar em processo de revisão, não só por certos detalhes dos novos arranjos dos Mutantes como pelo imaginário retomado pelo filme 1972, que resgata do limbo bandas como A Bolha, Módulo 1000, Karma, Soma etc.

"Acho fantástico Sérgio, Arnaldo e Dinho tocarem juntos de novo. É algo parecido com o que aconteceu com A Bolha, que também se reuniu depois de 30 anos, por conta de 1972", diz o diretor José Emílio Rondeau. "Esse imaginário ficou esquecido tempo demais, ficou soterrado sob uma dicotomia falsa, de que no Brasil havia apenas os militantes e a ditadura. Mas havia mais, muito mais, tanto mais", avalia Ana Maria Bahiana. O filme tem causado controvérsia por colocar o ator e ex-cantor Toni Tornado no papel de um militar truculento, mas ao mesmo tempo terno e solidário aos jovens "transviados" (e despolitizados) da história.

Quanto aos Mutantes, é Sérgio quem se encarrega de fazer a defesa apaixonada, por sobre a cortina de ceticismo que envolvia qualquer hipótese de volta. "Todo mundo dizia que Mutantes não iam acontecer, como todo mundo achava que Lula não ia emplacar na segunda vez", ri. E adiante complementa: "É legal a gente dizer 'sim', dentro do Brasil, onde tudo é 'não'. Por que a gente tem que tachar tudo de impossível? Por que é impossível que o Brasil seja o melhor país do mundo, que o povo brasileiro seja o mais inteligente do mundo, que a gente tenha igualdade social? É possível, sim".

Seu discurso se sustenta em dados concretos, no que diz respeito aos neo-Mutantes. No exterior, a volta tem gerado expectativas e casas lotadas, a acolhida tem sido emocionada. Zélia ilustra: "Em Miami, dois garotões americanos entraram no camarim chorando, tremendo, com os LPs para eles assinarem".

Arnaldo parece plenamente ciente da empatia persistente, quando, usando sua lógica toda peculiar, afirma: "Eu sou tão importante que, quando consigo falar, o que eu falo te atinge. Mas você também pode entender errado o que falo e dizer 'isso é confusão'. Vai saber...".

A dinâmica já começa a se reproduzir no Brasil natal, ainda que sob o velho véu de desavenças, que a mídia invariavelmente amplifica. Em entrevista recente ao Fantástico, da Globo, Rita opinou que "revival é um bando de velhinhos espertos tentando descolar grana para pagar o geriatra". E se valeu de risos e ironia para afirmar que "não vou fazer revival de Mutantes nem a pau... a não ser com uma boa grana".

Em outro trecho, que não foi ao ar no Fantástico (mas seria exibido dias depois, no canal pago GloboNews), ela se pôs a relembrar de um grupo de que era fã quando pequena, os Velhinhos Transviados, e arrematou: "Vou fazer os Velhinhos Transviados revival...".

Poucos dias depois, foi a vez de os Mutantes protagonizarem um minishow especialmente para o Fantástico. Diante de platéia seleta, a corrente de reações emocionadas voltou a se desencadear, fazendo chorarem fãs, artistas amigos, até o presidente da Sony BMG, gravadora que banca CD e DVD. Nas entrevistas, olhos chorões também se espalham entre repórteres, assessores de imprensa, familiares e os próprios músicos. O entrosamento transparece nas expressões de alegria do grupo (sobretudo de Arnaldo) e contagia quem se aproxima dos re-Mutantes.

Na entrevista àquele Fantástico, eles driblaram com elegância perguntas sobre Rita, brigas e geriatras. Não se lembrou, como em geral não se tem lembrado, da ausência de outro integrante da trupe original, Rogério Duprat, arranjador de todos os álbuns tropicalistas, inclusive os dos Mutantes. O genial maestro não participará de mais nenhuma travessura com os pupilos, pois morreu em 26 de outubro passado, aos 74 anos, sem gerar grandes comoções entre os ditos "formadores de opinião".

A razão provável dos dribles, Sérgio expõe numa resposta a CartaCapital, sobre a dificuldade de falar sobre a relação tão delicada com a ex-companheira de banda: "Não é dando chute que se consegue o beijo de uma menina". Para a mídia e para eles, parece mais fácil e cômodo girar em torno das brigas que lidar com o amor intenso e conturbado que soldou para sempre os ex-Mutantes.

Sabedora de que o chão é de brasa acesa, Zélia Duncan ressalta que a primeira coisa que fez, ao ser convidada, foi pedir o aval de Rita, de quem também é parceira. O aval foi dado, mas como ela se sentiria e o que faria se, por alguma reviravolta, Rita Lee quisesse resgatar seu lugar?

"Eu ia morrer de emoção de vê-los juntos. Às vezes imagino isso no meio de um show. Quando liguei para Rita, disse a ela que o que mais vi naquele estúdio foi ela mesma. Pude imaginar os três ali, criando, rindo, implicando. Sabe quando você está guardando um lugar pra um amigo no ônibus ou no cinema? Acho que seria assim. E, já que é sonho, antes de sair, eu pediria pra cantar 2001 com ela. E eu ia fechar os olhos e cantar como mutante: Dei um grito no escuro, sou parceiro do futuro, na reluzente galáxia...", Zélia responde.

Enquanto isso segue sendo impossível, os Mutantes se preparam para a real reestréia nos palcos brasileiros. O primeiro show do resto das vidas deles acontecerá em 25 de janeiro, no aniversário de São Paulo, cidade de Rita, Arnaldo e Sérgio. Será gratuito e ao ar livre, em frente ao Museu do Ipiranga. "Não vai ser um show, vai ser um grito", brinca Sérgio, que já comprou uma espada em Paris, especialmente para o "dia do fico".