segunda-feira, dezembro 18, 2006

a indústria em (trans)mutação

e a música, em termos industriais, como é que fica depois desta fase de transfigurações que não paramos mais de viver?

vai saber..., não sabemos... mas uma coisa é certa (ou não é?): a indústria e as fábricas podem ser feitas de tijolos (como costuma ironizar o joão marcello bôscoli, filho de elis regina e de ronaldo bôscoli). mas, antes ainda de serem feitas de tijolos e de cimentos e de patrões, elas são feitas de pessoas. de pessoas iguaizinhas a eu, a tu e ao rabo dos tatus-bola, filhos dos tatus-bolinha (sua bênção, seu dorival caymmi).

"carta capital" 420, de 22 de novembro de 2006.


A INDÚSTRIA EM MUTAÇÃO
O mercado oscila entre o declínio das gravadoras e o crescimento do Ecad

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A indústria musical está mais fragmentada que nunca. De um lado, a arrecadação de direitos autorais cresce ano a ano no Brasil e atinge a estimativa recorde de R$ 270 milhões a serem coletados pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) em 2006. De outro, a indústria de discos segue em queda livre, com perdas de 20% em unidades vendidas e 12,9% em valores arrecadados, em 2005, e de 11,6% em unidades e 6,7% em valores, só no primeiro semestre de 2006, segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD).

Diante de tamanho contraste, uma dúvida se impõe: o mercado musical brasileiro está crescendo, ou está definhando? As respostas variam enormemente de acordo com cada um dos braços dessa indústria complexa. E indicam, no mínimo, a consolidação de uma nova correlação de forças entre esses vários tentáculos.

O ponto de desespero continua sendo o das gravadoras de discos, reunidas sob o guarda-chuva da ABPD, cujo mercado de vendas de unidades físicas caiu quase 50% desde 2000 (op faturamento em 2005 foi de US$ 394,2 milhões), a bordo da pirataria física (de discos) e virtual (de downloads). Como explicar, dentro desse contexto, o progresso contínuo do tentáculo representado pelo Ecad, de coleta de direitos devidos aos autores pela execução pública de música (que se elevou em mais de 100% desde 2000)?

Órgão centralizador criado durante a ditadura militar, o Ecad foi historicamente visto como vilão, até mesmo por parte daqueles que representa (os criadores de música), devido a atuações tidas alternadamente como insuficientes e abusivas. Nos últimos anos, no entanto, tem sofisticado seus mecanismos de ação, a ponto de reverter pouco a pouco a imagem negativa que a mídia costuma rotineiramente amplificar.

A melhoria de organização e de imagem acontece a despeito de um sem-número de processos que o escritório move na Justiça contra pagadores inadimplentes. "O maior problema atual é o pagamento dos grandes usuários. Como é que os grandes têm uma postura totalmente anárquica em relação a isso, e nada acontece?", pergunta a superintendente do Ecad, Glória Braga.

Ela se refere às maiores rádios e redes de tevê do País, cuja praxe, segundo afirma, é a inadimplência. Segundo o Ecad, apenas 40% das rádios brasileiras legais pagam direitos em dia. Entre as maiores redes de tevê, a Record é a única hoje que paga regularmente. Redes como a Globo e a MTV (uma emissora dedicada à música) encontram-se em disputa judicial com o escritório, pagando em juízo, devido a discordâncias quanto aos valores a serem repassados.

Sendo assim, o progresso do Ecad se deve ao aumento de cobrança pela execução de música em bares, boates, casas de show, clubes, festas de casamento, academias de ginástica, que colaboram para que autores veteranos como Roberto e Erasmo Carlos se mantenham no topo da lista de arrecadadores, ao lado de sucessos de temporada como o sertanejo Rick ou o funkeiro MC Leozinho.

Se o Ecad se segura arrecadando junto às bases da pirâmide musical, as gravadoras, que ocuparam posto de máximo poder nos anos 90, espremem sua sobrevivência entre atitudes repressivas contra os consumidores de pirataria e sucessivos baques. O abalo mais recente aconteceu na multinacional de origem inglesa EMI, que em 25 de outubro passado anunciou a descoberta de uma fraude na filial brasileira e a "suspensão" de membros da diretoria local (entre eles o presidente local, Marcos Maynard, que nos anos 90 foi um dos homens fortes por trás da explosão mercadológica da axé music).

Segundo auditoria interna em curso, a EMI Brasil teria exagerado receitas em cerca de R$ 48 milhões e lucros na ordem de R$ 36 milhões. O espanto se espalhou pela cobertura da BBC, que estampou um título na linha de estigmatizar o Brasil e vitimizar a matriz: Brazilian fraud hurts EMI Music. Mas a conduta da gestão de Maynard já havia sido noticiada em agosto de 2005 por CartaCapital (edição 353), em reportagem que dava conta dos expressivos avanços registrados pela gravadora num cenário de crise generalizada: "Tais resultados se consolidaram nas vendas de Natal, em que o mercado sofreu uma queda de 18,3% nas cópias consumidas em relação a dezembro de 2003, enquanto a EMI registrou o formidável crescimento de 288%".

As gravadoras, cuja imagem pública vem se deteriorando progressivamente, enfrentam agora a impopularidade de bater na tecla da luta contra a pirataria, mesmo sob as boas notícias de que em 2005 o Brasil voltou ao ranking dos maiores consumidores mundiais de discos (na décima posição) e de que a pirataria física recuou no ano passado de 52% para 40% do mercado total.

Apoiada em pesquisa do instituto Ipsos, a ABPD divulga que 72% dos CDs falsificados são comprados por consumidores das classes C e D, como se a pirataria fosse uma questão de classe social. Mas o mesmo instituto desmente essa interpretação parcial: de acordo com a pesquisa, 67% dos praticantes brasileiros de pirataria digital pertencem às classes A e B, e 69% possuem pelo menos o colegial completo.

Diante do avanço da pirataria digital, a ABPD se integrou em outubro último à campanha mundial de processos movidos pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) contra pessoas que baixam música gratuitamente na Internet. Iniciaram-se 8 mil processos novos em 17 países, inclusive, pela primeira vez, no Brasil.

Golpeada por várias frentes, as gravadoras ensaiam se atirar sobre outro dos braços da cadeia produtiva da música, que até há pouco não as atraía: os shows. "É irreversível, todos os contratos de artistas novos já destinam de 10% a 20% do faturamento com shows e merchandising às gravadoras", diz o presidente da Associação Brasileira dos Empresários Artísticos (Abeart), Ricardo Chantilly, ciente da persistente dependência dos artistas diante do aparato das gravadoras.

Na ponta dos criadores, as tentativas de organização também seguem fragmentadas, entre a sempre contestada Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), associações de direitos autorais (centralizadas pelo Ecad) e de editoras, sindicatos e a própria associação dos empresários, que, segundo Chantilly, existe para defender os direitos dos artistas.

Ele diz que a Abeart, fundada em 2003, centra esforços atualmente na luta por uma legislação que moralize a cobrança de meias-entradas em espetáculos culturais. "Hoje existem computador e impressora, eu posso fazer carteirinha de estudante no meu escritório. Acontecem várias anomalias, agências de turismo e Pizza Hut estão emitindo carteirinhas", critica. "E o que aconteceu? Todo mundo se viu obrigado a dobrar o preço dos ingressos. Hoje, no Brasil, estudante paga entrada inteira e o cidadão comum que não é estudante nem picareta paga dobrado."

Outro pólo que se equilibra no tabuleiro é o das editoras musicais, que já andaram de braços dados com as gravadoras e hoje vivem com elas situação de litígio semelhante à que contrapõe o Ecad às rádios e tevês. Divergentes quanto a percentuais a serem destinados a editores e a produtores de discos, as gravadoras multinacionais lideraram uma dissidência da Associação Brasileira dos Editores de Música (Abem), dividindo forças mais uma vez.

A presidente da Abem, Marisa Gandelman, tenta diagnosticar os dilemas atuais do negócio da música como um todo: "A indústria, incluindo-se aí as editoras, vive o impacto das transformações produzidas pela vida digital, ao mesmo tempo em que produz muitas de suas próprias dificuldades".

A crise persistente, a julgar por avaliações como a dela, se localizaria menos na música que no modelo industrial que a embala. Tal sistema ainda não sabe lidar com a dimensão crescente de sua parte imaterial, via Internet, telefonia celular etc., o que representa, segundo ela, "um enorme desafio e um grande paradoxo: um potencial fabuloso ameaçado pela dificuldade de enquadrá-lo nas regras e nos costumes de funcionamento do mercado no sistema capitalista".

Para que direções se locomoverão todas essas engrenagens, diante do desmoronamento do modelo vigente, ainda é uma incógnita. Mas, cresça ou definhe a indústria capitalista como um todo, a peça-chave do jogo de xadrez em pleno movimento permanece sendo a música, essa que agora abandona os suportes físicos para voltar a ser o que sempre foi: imaterial.