quinta-feira, janeiro 18, 2007

capítulo 1: youtube com censura

ô, azar da moléstia! na mesmíssima sexta-feira em que ia às bancas a reportagem "a mpb sem censura" ("carta capital" 426, de 9 de janeiro), daniela cicarelli e seu namorado renato malzoni filho conseguiam na justiça, num efeito tipo bola de boliche, censurar não só o vídeo "privado" que queriam censurar, como também todo o youtube por onde não pára mais de circular o tal vídeo, e de quebra, strike!, a mpb que eu estava naquelas mesmas horas chamando de "sem censura"...

típico exemplo de jornalismo precocemente datado... ou não? é, não, acho que não... pois então, se até o youtube voltou horas depois, que volte também "a mpb sem (será mesmo? e a autocensura?) censura" ...


A MPB SEM CENSURA
Os usuários do YouTube expõem raridades que as tevês costumam esconder

por Pedro Alexandre Sanches

Se na década de 90 a pirataria monopolizou as preocupações da indústria fonográfica mundial, neste início dos 2000 a distribuição desenfreada de imagens via internet é que se espalha irremediavelmente, afetando em especial as redes de televisão, de modo análogo ao que já vinha acontecendo com as gravadoras. O YouTube (www.youtube.com), líder entre os sites de compartilhamento livre e gratuito de vídeos, é a bola da vez no Brasil, onde uma liminar obtida, na quarta-feira 3, pelos advogados de Daniela Cicarelli determinou que seja bloqueado definitivamente no site o acesso a imagens em que a apresentadora aparece supostamente fazendo sexo com o namorado numa praia.

A medida parece ser de difícil aplicabilidade prática, já que usuários do site têm republicado constantemente o vídeo de Cicarelli, e ajuda a deslocar o foco para temas como a invasão de privacidade e o círculo vicioso das celebridades. Enquanto isso, numa linha paralela a essa, os subterrâneos do YouTube ocultam um debate mais próprio ao mundo da cultura, mas também limítrofe entre a arte e a contravenção, entre os avanços culturais e o crime.

É que rapidamente o site vem se tornando um acervo monumental de imagens raras (e às vezes semi-inéditas), que contam, por elas próprias, a história da música popular. No Brasil, de Noel Rosa tocando com o Bando dos Tangarás na década de 1930 ao rap de protesto dos Racionais MC's no fim do século XX, tudo parece estar traduzido em imagem e som no YouTube.

Além de resgatar momentos de valor histórico inestimável, como cenas de Carmen Miranda em Hollywood ou do advento dos músicos tropicalistas nos festivais da canção do fim dos anos 60, a rede abriga, também, flagrantes às vezes constrangedores, mas que ajudam a entender lados obscuros da personalidade de seus ídolos, muitas vezes escamoteada pela mídia tradicional.

Exemplo admirável pode ser encontrado digitando os termos "João Gilberto" no campo de busca do YouTube. Ali aparecerá, entre muitas outras, a imagem raríssima do artista, ainda desconhecido, tocando violão em acompanhamento à cantora Elizeth Cardoso, antes da eclosão da bossa nova. Mas aparecerá também o contraponto do gênio, em cenas impagáveis em que ele briga abertamente com o público, chegando a abandonar o show numa delas. "Não faz que eu vou embora, hein?", e "este 'uh' aí é um idiota que está fazendo", reage o artista baiano a supostas vaias numa apresentação em Salvador.

Do mesmo quilate são cenas em que Raul Seixas se apresenta bêbado para estudantes ou dá entrevista na tevê, após ter sido preso num show, por ser supostamente um sósia, e não o "verdadeiro" Raul. A grande Aracy de Almeida também aparece, mas não na condição de cantora preferida de Noel Rosa, e sim na de jurada do programa de calouros de Silvio Santos.

A questão YouTube é delicada no que diz respeito às redes de tevê, das quais vem sendo captada clandestinamente uma infinidade de cenas antológicas, que até há pouco eram propriedade exclusiva da Rede Globo e congêneres. Apenas digitando as palavras-chave adequadas, tem-se acesso imediato a cenas preciosas: o compositor Sérgio Ricardo quebrando o violão num festival da canção da Record; um encontro televisivo hoje semi-esquecido entre Gal Costa e Elis Regina, pouco antes da morte desta; imagens da Bandeirantes focalizando a comunidade hippie dos Novos Baianos, no início dos anos 70; a aparição dos jovens da geração roqueira dos 80 no programa do Chacrinha, na Globo; e assim por diante.

"As pessoas aproveitam-se da melhor qualidade da televisão aberta, que é acessível e gratuita. O sinal está disponível para todo mundo, basta reproduzir", afirma Luis Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação. A rede sofre o assédio ininterrupto da "cultura YouTube": pouco depois de sua exibição na última semana de 2006, um especial sobre a vida de Elis Regina já era encontrado no site, na íntegra. É que qualquer espectador pode gravar a cena que quiser da tevê e transferir sem qualquer dificuldade ao YouTube, compartilhando-a assim com o resto do planeta.

Erlanger afasta uma suspeita que sempre rondou a indústria fonográfica, de que parte dos vazamentos piratas acontecesse de dentro das próprias empresas: "Não sou especialista em roubo de imagem, mas nas reuniões onde o tema é tratado isso nunca foi cogitado. Por que correr riscos, se pode ser gravado do ar?" A rede é lacônica quanto à possibilidade de tentar coibir a circulação, a exemplo do que fez Cicarelli, que, aliás, também move ações análogas contra as Organizações Globo e o iG. "No caso da internet, há dificuldades técnicas maiores de controle de material, mas estamos estudando quais medidas podem ser adotadas", diz.

Ainda tomando contato com essa nova realidade, as tevês a princípio adotam retórica semelhante à que a indústria fonográfica usou por anos a fio ao se queixar da pirataria. Erlanger argumenta que a difusão não autorizada de imagens prejudica economicamente não apenas as empresas, mas também os diretores, os técnicos e os próprios artistas.

É faca de dois gumes, pois o YouTube tem potencial para beneficiar artistas tanto quanto lesá-los. A empresária carioca Adriana Pittigliani, por exemplo, tem propagandeado por esse método as turnês que artistas de funk carioca, como o DJ Sany Pittbul, fazem pela Europa e que, de outro modo, permaneceriam no anonimato na terra natal. "Para nós, do Carioca Funk Clube, isso cria uma corrente espontânea que está conseguindo mostrar o funk, que sempre esteve lá e ninguém via, já que a mídia tradicional ainda está digerindo mal a mesma velha história que se ouvia nas rádios", diz ela.

A ferramenta serve ao funk, mas serve ao samba também, como explica o produtor José Luiz Soares, dono do Villaggio Café, em São Paulo, pelo qual tem passado toda a nata do samba. "Em shows no bar, já flagrei espectadores, namoradas, fãs e produtores filmando, discretamente, determinadas apresentações com pequenas câmeras digitais. A finalidade é colocar o artista desconhecido na rede mundial, via YouTube. Criativo e barato, não? Penso que isso seja uma tendência irreversível, que vai abalar fortemente a mídia tradicional. Aliás, já está abalando", opina Soares.

Foi pensando nisso que ele colocou um telão em seu bar, no qual exibe, entre outras imagens, as raridades musicais do YouTube. Entre os seus prediletos, estão os conflitos entre João Gilberto e os fãs e cenas da vanguarda paulistana no Festival dos Festivais de 1985, da Globo. Passam por ali de imagens raras de Gonzaguinha a trechos do espetáculo mais recente de Chico Buarque.

É que, se o sistema de gravação artesanal por câmera digital ou celular auxilia artistas novos e desconhecidos, também se debruça, democraticamente, sobre os já consolidados. O histórico show da volta dos Mutantes, em Londres, por exemplo, caiu no YouTube instantaneamente, meses antes que a multinacional Sony BMG cogitasse lançá-lo em CD e DVD.

No fio da navalha entre o trabalho institucional e a pirataria encontra-se, enfim, o protagonista deste novo momento, o YouTube. Criado em 2005 por dois jovens na faixa dos 20 anos, o site foi comprado há dois meses pelo Google, pelo valor fabuloso de 1,65 bilhão de dólares. E procura se cercar juridicamente, enquanto dribla o esvaziamento já vivido por sites de compartilhamento gratuito de música, combatidos ferozmente pelas multinacionais que detêm os direitos dos fonogramas mais populares.

Nos termos de uso e nas definições de políticas de privacidade do site, afirma-se que o YouTube respeita rigorosamente as leis de copyright e se compromete a excluir os vídeos que as desrespeitem. Também recebe e acata denúncias sobre conteúdos inapropriados (de pornografia, por exemplo). Assim é que, apesar do desagrado de Daniela Cicarelli, tem se empenhado em retirar de suas listas o célebre vídeo da praia.

O problema é que, do outro lado da tela, estão mais de 100 milhões de usuários diários, alguns dos quais sempre dispostos a inserir de volta as imagens. Contra essa nova realidade, nem a Globo, nem gravadoras, nem muitos medalhões pop se animaram ainda a lutar. Enquanto isso, cresce desordenadamente o volume de fofoca, mas também o de cultura em circulação na grande rede.


O SOM FORA DO BAÚ
A gravadora da Globo tira o atraso e reedita trilhas sonoras raras de novelas

Enquanto algumas das imagens mais ricas da tevê brasileira circulam clandestinamente na internet, a Rede Globo desperta tardiamente para o acervo musical também monumental de sua gravadora, a Som Livre. Após várias reedições de peso ao longo do ano, encerrou 2006 com uma nova série Som Livre Masters, que recupera em CD 32 trilhas sonoras originais de novelas, seriados e especiais infantis, lançadas originalmente entre 1971 e 1993.

Tais trilhas costumam sempre vir entupidas de comercialismo e técnicas de massificação, mas acabam por ocultar nas entrelinhas de sua diversidade o fio da história musical do País. Isso pode ser verificado pelo distanciamento com que se ouvem hoje as trilhas do início dos anos 70, predominantes no novo pacote. Naquela primeira fase da Globo, destacavam-se trilhas compostas sob encomenda por alguns dos autores mais expressivos da época.

Aparecem em CD aqui, pela primeira vez, trilhas assinadas pelos virtuosos Baden Powell e Paulo César Pinheiro (O Semideus, de 1973), pelos roqueiros transgressores Raul Seixas e Paulo Coelho (O Rebu, idem), pelos líderes populares Roberto e Erasmo Carlos (O Bofe, 1972), pelos afiados sambistas ditos "cafonas" Antonio Carlos & Jocafi (O Primeiro Amor, idem), pelos irmãos híbridos populares-eruditos Paulo Sérgio e Marcos Valle (Os Ossos do Barão, 1973) etc. Outro momento histórico, só agora resgatado, é o da experiência feminista do seriado Malu Mulher, numa trilha que incluía nove em cada dez cantoras de ponta da MPB de 1979.

Ao chegar só agora com mais força ao filão da restauração de acervo, a gravadora da Globo repete o atraso histórico de toda a indústria fonográfica, que esperou seu relicário se transferir à internet e aos CDs piratas para só então se interessar por ele de modo mais sério e constante. Ironicamente, o início dessa fase de maior esmero da Som Livre com seu passado é simultâneo à explosão da tevê via YouTube, o que faz pensar quanto tempo Globo, Record, Band, SBT, Cultura etc. esperarão para modernizar de modo sistemático seus baús de preciosidades.

Tal atitude certamente não domaria a pirataria, mas seria um modo de trabalhar em parceria com a evolução dos formatos, e não em oposição a eles. Num cenário de guerra e incompreensão, não é à toa que são aqueles que as grandes empresas repudiam como "piratas" "criminosos" os que acabam fazendo o trabalho cultural e histórico que lhes caberia, mas que elas parecem pouco interessadas em promover.