segunda-feira, janeiro 15, 2007

simples carinho

e a angela ro ro, ela não anda incrível, hein?

quem foi ao sesc neste fim de semana viu (e se aqueceu n)a fogueira outra vez acesa, ácida, coruscante feito fogo amigo. cantando quase só as músicas novas do (belíssimo) disco "compasso", chamou a chama, soprou e pronto: acesa, acesíssima.

["compasso" (indie records, 2006) é, como rimaria itamar assumpção falando de e com luiz melodia, um disco de "funk soul blues jazz rock'n'roll" (e reggae, e bossa, e samba, e salsa, e bolero, e...); como rima angela em pessoa, "é o meu compasso mais civilizado e controlado", na procura de temperar escândalos "came e case" d'outrora com um pé no chão, uma garganta nas estrelas, um corpo doído na ponte..., a pungente e nada autocondescendente "dorme, sonha..." fazendo a ligação dolorosa entre o final do disco e o início do show.


não votei em "compasso" nas listinhas bobinhas de "melhores" (melhores em quê, melhores que quem, cara-pálida?) que cometi na virada de ano: injustiça. injustiça, entendo agora, depois de ver/ouvir o (ainda mais recente) dvd-e-cd ao vivo com "clássicos" ro ro, de ver o show de inéditas e de, enquanto acabo aqui de escrever, reouvir seu "compasso" acre-doce (como ela rima, em/com "paixão").]

entre uma música cantada em vozeirão e outra, angela engata a todo vapor a já tão conhecida vocação para um certo pastelão, empanturrando os intervalos de gracejos, alguns deles explicitamente destinados à tomada de fôlego, que ela já não é nenhuma menininha. até os gracejos, entretanto, estão transformados, de acordo com seu compasso mais civilizado e controlado. as piadas em farpa para zélia duncan, ana carolina, marisa monte, rita lee e cássia eller já nem chegam a ser farpas, tão aveludadas se tornaram - hoje já são (ácidos) elogios.

desviada a pontaria das cantoras-compositoras-criadoras-(quase-)autônomas que lhe são (quase) semelhantes e (quase) iguais, a farpa pode então ser focada em mira mais quente e mais precisa: a piada, em hora h de tesão musical e tensão extra-musical, mira no tio já morto que, quando ela tinha 8 anos, a "bolinou" e "currou". piada agridoce se transfigura em manifesto contra a pedofilia, com crianças presentes no recinto (e consciência plena disso por parte de angela). o público nos contorcemos, incomodados. pois o público, afinal, estamos acostumados a sair de casa para assistir ao show cor-de-rosa da vida, e não assim de chofre à vida como ela é (ou foi, ou será, a depender de nós). são mais ou menos 19h de domingo quando angela clama a crianças e adultos que não tolerem por modo algum a pedofilia: nessa noite, não vai dar para assistir ao "fantástico" show da vida...

entre um enlevo musical e outro, provocações que se tornam piadas se reconvertem na curva em seriedades, em provocações da piadista. pré-pós-funkeira carioca, ela dedica "bater não dói" a norte-americanos (versus iraquianos): "bater não dói, dói mesmo é apanhar!". pouco depois da primeira menção à pedofilia ("não vão ficar baixo astral por causa do que falei, viu?", adverte, já voltando ao assunto que não quer calar, que ela não que rque cale), anuncia "não adianta!", uma bela e singela canção em homenagem aos "candangos" brasileiros, e se segue um pequeno forró, um misto amistoso, matuto, entre canção caipira, e sertaneja, e interiorana, e nordestina, e brega, e de qual mais chegar entre os gêneros que ro ro (& seus pares) não se atreviam a beliscar em décadas passadas.

e o discurso pró-"candangos" se consuma áspero, inquieto, plenamente esperançado: de couro curtido, a autora homenageia os "candangos" [aqueles que constroem tua cidade (anti)artificial, essa que às vezes desliza e soterra "candangos" em sua fúria (anti)natural]. lembra que eles estão pelaí, um deles presidente da república do brasil, e que ela, de sapatinho vermelho ("tá pensando que é flamengo?", ou algo parecido, é o como ela rima), acha isso "simpático". constrangida, a platéia não aplaudimos, como a platéia tampouco aplaudíramos antes o discurso anti-pedofilia - afinal não é tudo a mesma coisa, abuso e agressão contra crianças, "candangos", nordestinos, mulheres, homossexuais, iraquianos, ciganos, negros etc.? como iríamos conseguir aplaudir (e praticar) pequenos manifestos anti-abuso e anti-agressão, se somos tão mais acostumados a praticar (e aplaudir) pequenos abusos e agressões diários?

não, não é fácil, mas, enfim a platéia conseguimos. afinal, a platéia estávamos lá por angela, fazendo muxoxo para o "show da vida" e lotando o teatro de bundas quadradas arquitetado por lina bo, para ver (e lacrimejar diante d)a mulher sofrida que tantas vezes caiu, que outras tantas se reergueu, que está novamente íntegra, inteiriça e imponente.

os saravás ao final ela dedica, num simples carinho (qual é o valor?, qual é o sabor?), aos músicos, aos espectadores, a tom zé, a rita lee, enquanto sacramenta lá suas mandingas, suas macumbas, seus rituais de estar viva. sincrética, simples, sincera. saravá, dona ro ro, estamos contigo na tua barca nova.