segunda-feira, janeiro 22, 2007

versículo 2: youtube, censurar alguém se atreve?

porque aí essas histórias duvidosas sobre "azar" ou "sorte" rapidamente se dissolvem em muito e muito e muito trabalho, e veio então a continuação: uma abordagem sobre o "caso cicarelli" em matéria de capa da "carta capital" 427, de 17 de janeiro de 2007, em parceria com as estimadas colegas ana paula sousa e phydia de athayde [um terceiro subtexto de autoria da phydia eu não publico aqui, por não ser de minha (co-)autoria, mas recomendo com a mesma empolgação]. caiu na rede é peixe?

CAIU NA REDE É PEIXE

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES E ANA PAULA SOUSA
Colaborou Phydia de Athayde

A ameaça de bloqueio ao site YouTube no Brasil acende o debate: é possível e desejável controlar o mundo virtual?

A internet sofreu um abalo sísmico. Detonado, quem diria, por Daniela Cicarelli. Aquela que se casou com Ronaldo, "o Fenômeno", no Castelo de Chantilly, na França. A mesma que pediu para aparecer em CartaCapital para "reposicionar" sua imagem (A Cicarelli ligou, Ed. 399). E que três meses depois da entrevista foi flagrada fazendo sexo numa praia espanhola.

O impacto do tremor causado pela moça a própria rede mediu: na terça-feira 9, após uma decisão da Justiça brasileira que tirou do ar o YouTube, o nome da modelo brasileira foi a segunda palavra-chave mais discutida nos blogs planeta afora. À frente dela, só Saddam Hussein.

O que o tamanho da confusão evidencia – detalhes do "caso Daniela Cicarelli" à parte – é que, nesse mundo virtual, todos ainda tateiam no escuro. Nem a Justiça nem os usuários ou os governos sabem ao certo os limites e os alcances da internet. É possível controlá-la? É desejável encapsulá-la em regras mais rígidas?

As respostas para essas perguntas ainda são nebulosas. Mas é fato que, com a explosão da internet, velhos e espinhosos temas, como liberdade de expressão e direito à privacidade, migraram para o espaço virtual. E o episódio que o Brasil protagonizou na segunda semana de 2007 é exemplar de um cenário que vai sendo montado por tentativa e erro.

O confronto surgiu porque Daniela e o namorado, Renato Malzoni Filho, tentaram garantir o direito de privacidade e pediram o bloqueio do vídeo em que, flagrados por um paparazzo espanhol, protagonizam cenas tórridas numa praia na Espanha.

Nesse percurso, em cumprimento a uma determinação da Justiça brasileira, grandes provedores de internet acabaram por interditar, na segunda-feira 8, o acesso no País ao YouTube, o maior site de compartilhamento de imagens do mundo, em que o vídeo em questão vem sendo constantemente reproduzido.

O nó: ao tentar retirar de circulação as cenas do casal, a Justiça acabou por determinar o bloqueio de todo o gigantesco conteúdo do site, para os usuários de operadoras como Telefônica e Brasil Telecom. Daniela viu-se então no centro de uma avalanche de protestos contra o ato, que foi recebido, no mundo, como uma tentativa de censura ao "cyberespaço" brasileiro.

"Não existem, hoje, no mundo, mecanismos que resolvam de forma rápida e eficaz litígios na internet", crava Rogério Santana, presidente do Conselho Administrativo do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), composto de membros do governo federal e da sociedade civil, com a tarefa de coordenar e integrar os serviços de internet no País.

Não à toa, já está agendado para dezembro deste ano um encontro entre representantes de mais de cem países, que pretendem discutir um conjunto de regras que leva o apelido de "governança na internet" e que estabeleceria alguns parâmetros globais. Detalhe: a reunião acontecerá no Brasil, terra de Daniela.

"Os países tentam chegar a acordos sobre temas centrais, como terrorismo ou crimes na internet. Hoje, se um país proíbe alguma coisa, basta recriar o site em outro lugar. Precisamos de uma espécie de tribunal internacional onde possam ser resolvidas certas questões", diz Santana.

Mas não é só de criação de leis que se trata. As artes e manhas da tecnologia tendem a tornar ineficazes as decisões. A dimensão informal e anônima da rede sempre pregará peças em quem tentar enquadrá-la. "Tecnicamente, a ordem dada pela Justiça brasileira é não cumprível, é uma ação além do ponto", afirma o engenheiro Demi Getschko, especialista em internet.

"A conseqüência positiva da decisão é que a sociedade reagiu de modo admirável e o Judiciário viu que os valores virtuais não são exatamente os mesmos dos reais e que deve rever o modo de atuar", prossegue Getschko. Ele se refere ao episódio, fazendo um paralelo entre o mundo virtual e o real: "Não é porque há batedores de carteira nos ônibus que vêm da Lapa que vamos proibir todos os ônibus de trafegar naquele bairro".

Se a sociedade, de modo geral, ainda não tem noções claras de como lidar com essa rede em que as responsabilidades se embaralham, é natural que isso se estenda para a Justiça. Para Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV, a atitude, no fim, não foi boa para ninguém:

– Esse caso foi tão mal conduzido que todos saem perdendo. A Cicarelli, porque só aumenta a divulgação do próprio vídeo. O Judiciário, porque tomou uma decisão de repercussão internacional que, em última análise, pode desestimular sites de todo o mundo a oferecerem serviços no Brasil, com medo de ser vítimas de decisões similares. Os consumidores, porque tiveram seu direito de neutralidade na internet afetado. E, principalmente, os provedores, porque ficam sujeitos a se tornar uma espécie de 'poder de polícia' na rede, sem que haja uma legislação que regule esse tipo de situação.

Quem anda pelos tribunais tem a sensação de que pode se iniciar, a partir deste momento, um bombardeio ao sistema judiciário. "Em várias ações ligadas à internet, você acaba discutindo a função da Justiça", admite o advogado Omar Kaminski, especialista em direito digital. "Será que todas as questões devem ser levadas à Justiça? A tecnologia está à frente do Judiciário. Então, nos sentimos sempre como tartaruga correndo atrás do coelho."

Diante dessa situação, aumenta o número de vozes em defesa de uma legislação que regule o ambiente da internet no País. "Com a ausência disso, cada caso que surgir pode ser decidido de uma forma diferente, o que cria o pior dos mundos, uma situação de incerteza. Quem em sã consciência tem coragem de investir de modo consistente em um negócio de conteúdo no Brasil se o Judiciário pode impor a qualquer momento um custo inesperado e imprevisível?", pergunta Ronaldo Lemos.

O ministro das Comunicações, Hélio Costa, também defendeu a necessidade de regulamentação mais clara no que diz respeito à internet. Getschko, por sua vez, contra-argumenta: "Fora poucas exceções de delitos que não existiam e são criados na internet, é o caso de exercitarmos a legislação tradicional no novo ambiente. Não precisamos de lei para quem mate alguém com faca de aço inox, o problema é o assassinato. Temos que ter o juízo de não criar legislação atrelada à tecnologia, porque a tecnologia muda a todo momento".

Outro exemplo recente de tentativa de legislar sobre a internet foi o de um projeto de lei relatado em novembro do ano passado pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que propunha controlar a internet brasileira por intermédio da identificação dos usuários antes de iniciarem operações de interatividade, como envio de e-mails, conversas em salas de bate-papo, criação de blogs, captura de músicas, imagens, dados etc.

O projeto atendia a interesse de bancos e administradores de cartões de crédito, contrariados com as despesas para coibir fraudes em transações digitais. Sob intensa repercussão negativa, o exame do projeto foi adiado para a próxima legislatura, e segue indefinido. "Isso não é aceitável, identificar o usuário só vai incomodar o sujeito honesto, o usuário normal, e não o mal-intencionado", protesta Getschko.

Para a advogada especializada em direito digital Patrícia Peck, o desafio se dá muito mais na seara educacional que na legislativa. "Nós acreditamos mais numa auto-regulação que na criação de novas leis. As ferramentas tecnológicas podem ser usadas para o bem e para o mal, e no caso de Daniela foi usado o princípio 'dos males, o menor'. Se um site perde o controle de algo, é o risco do próprio negócio, ele não pode se eximir da perda do controle. Se alguém foi prejudicado, uma liminar tira do ar como medida rápida, e depois vamos discutir. É positivo, porque levanta a discussão na sociedade", ela opina.

Mas o caso suscita um sem-número de interpretações contraditórias, a começar pelo direito de privacidade de Daniela e Malzoni versus o direito do fotógrafo em flagrá-los numa situação de sexo em local público. Como lembra Wálter Maierovitch em sua coluna, o próprio ato do casal configura, segundo a lei espanhola, crime de atentado ao pudor coletivo. A seguir, discute-se a caracterização de violação do direito de imagem alheia por parte do paparazzo, se fizer uso até mesmo comercial das imagens que capturou.

O efeito segue em cascata. Tentando proteger o direito de preservar sua imagem, Daniela e Malzoni acabaram por interferir na livre circulação de milhões de usuários. Ela tentou argumentar que a iniciativa foi somente do namorado, o que é discutível, pois a ação original de pedido de veto do vídeo na internet, movida no Brasil apesar de o vídeo ter sido gerado na Espanha, tinha, sim, Daniela como co-autora, conforme provou o site Consultor Jurídico. De todo modo, já era tarde.

A revolta da comunidade virtual concentrou-se na figura da apresentadora, motivando protestos no Orkut e a criação de sites do tipo "Boicote a Cicarelli". E se estendeu à corporação em que ela trabalha, a MTV, que até quinta-feira 11 havia recebido mais de 80 mil e-mails em repúdio a Daniela e também vem sofrendo ameaças de boicote e de manifestações em frente à sede da tevê.

Ao mesmo tempo, ganharam popularidade súbita termos técnicos como backbones, proxy etc., junto a quem se interessasse por decifrar os mecanismos da proibição. Especialistas demonstraram como são inúmeras as maneiras de contornar um veto imposto pela Justiça local. Mostraram, por exemplo, que sites como o Anonymizer.su dão o passo-a- passo para um usuário navegar de modo anônimo pela internet. Assim, um brasileiro, por exemplo, poderia se mover pela rede sem estar identificado como brasileiro e, assim, passar batido pela interdição local do YouTube.

O próprio Brasil foi colocado em xeque, quando o desembargador Ênio Santarelli Zuliani determinou em seus despachos que os provedores instalassem filtros que impossibilitassem o acesso ao filme do casal – a filtragem de conteúdos é prática de países como a China, que controlam o acesso à internet em seu território.
"Tentamos sempre ao máximo evitar qualquer interferência", diz Augusto Gadelha, presidente do Comitê Gestor e secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia. "Até hoje, tiramos poucos sites do ar. Só retiramos quando é um espaço destinado, claramente, para a prática de crime financeiro, como um site que tentava se passar pelo Banco do Brasil."

Gadelha pensa que, na semana que passou, o Brasil ficou com uma imagem de interferência na internet. "Isso remete a países autoritários e não deve acontecer aqui. Não entraremos em conflito com a Justiça brasileira, mas pretendemos cooperar para que isso não se repita", diz, procurando eximir o governo de acusações de censura.

Para Ronaldo Lemos, "a filtragem sempre extrapola os limites para os quais foi pretensamente aplicada, além de ser ineficaz e facilmente burlável", referindo-se a países como China, Arábia Saudita, Tailândia e Cuba.

E o episódio, é bom lembrar, não é o primeiro enfrentamento da Justiça brasileira com o Google – proprietário do YouTube desde outubro, quando adquiriu o site por 1,65 bilhão de dólares. A empresa também foi acionada por causa de crimes ocorridos em seu site de relacionamento, o Orkut. Há quem se aproveite do anonimato da rede para, através de perfis e comunidades dentro do Orkut, difundir pedofilia, crimes de ódio, difamação, calúnia etc. A filial brasileira do Google Inc., chamada Google Brasil Internet Ltda., tem negado sistematicamente qualquer responsabilidade sobre esses atos.

Quando denúncias desses crimes chegam à Justiça, o primeiro passo é tentar chegar aos autores e, para isso, é indispensável que a empresa forneça dados como o IP (número que identifica um computador conectado à internet) e o horário de acesso. Outras empresas com sede nos Estados Unidos, como Yahoo! e Microsoft, já receberam pedidos semelhantes da Justiça e atenderam prontamente. O Google, não.

Como uma tentativa de resposta à crescente impunidade on-line, surgiu, em 2005, o site Safer Net (www.denunciar.org.br). Além de acompanhar esse e outros processos, o espaço acolhe denúncias de pedofilia e outros crimes na internet. Somente no ano passado, foram 356 mil denúncias, e 93% delas aconteciam dentro do Orkut. "Apesar de ainda não haver um desfecho, essas ações já renderam resultados indiretos. O Google começou a colaborar, ainda que timidamente, e criou uma equipe, nos Estados Unidos, para agilizar a remoção das páginas com conteúdo criminoso do ar. Não podemos admitir que o Brasil se torne o país da impunidade também na internet", diz Thiago Tavares, presidente e diretor do Safer Net.

Apesar de todo o turbilhão de acontecimentos e da exploração sensacionalista da "censura" ao longo dos primeiros dias, a semana obrigou também o País a se aprofundar no conhecimento e na discussão de temas que ainda lhe são mais ou menos inéditos. Se alguns especialistas apontam o efeito educativo do processo de conscientização, outros afirmam que a comédia de erros não ensina nada à comunidade virtual como um todo.

Para Ronaldo Lemos, o episódio é ineficaz com relação à mudança de hábitos das pessoas: "O que realmente modifica o comportamento das pessoas 'on-line' é a formação de um sentimento de comunidade, de que a rede é um espaço coletivo comum. Esse tipo de situação acaba enfatizando o contrário, que a rede é terra de ninguém".

Quem trabalha a coletividade na rede sabe do que ele está falando. Gilson Schwartz, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor da Cidade do Conhecimento, que desenvolve projetos de geração de renda e "emancipação digital" em parceria com o governo federal, explicita as regras do projeto: "A primeira coisa que fazemos quando nos aproximamos de uma comunidade é tentar fazer com que as pessoas adquiram uma noção clara de como é a gestão da identidade delas".

Como todo tipo de liberdade, a internet também requer um nível de consciência e responsabilidade que a sociedade terá de adquirir, queira ou não queira. Ao que os acontecimentos indicam, ou se parte para a auto-regulamentação ou as tentativas de controle se multiplicarão. O susto recém-vivido aguçou esse conflito e pareceu ter a dimensão de um terremoto, mas pode significar também um início daquela tomada de consciência.


O "MAL" E O "BEM" NA INTERNET

A bala de canhão que virtualmente tirou o YouTube do ar no País atingiu todo um território complexo e vasto de informação que abrange desde fofoca, voyeurismo de celebridades e pirataria às atividades culturais e à ação social.

Nas horas de "apagão", o principal tema-chave do YouTube era "Saddam Hussein", por conta de um vídeo clandestino produzido no recinto da execução do ex-ditador iraquiano, e que mostra a cena forte do momento exato do enforcamento.

Na interface ágil entre o YouTube e multidão de usuários que lhe fornecem imagens espontaneamente, a visualização do vídeo chocante é precedida pela advertência sobre seu conteúdo "inapropriado", a mesma que aparece antes de vídeos de insinuação sexual como o de Cicarelli (em tese, o sexo explícito é vetado pelo YouTube sempre que percebido ou denunciado). Mas o usuário terá fácil acesso às imagens "inapropriadas", se confirmar que tem 18 anos ou mais e está ciente do risco envolvido em acessá-las. Ou seja, é a decisão pessoal que abre ou fecha as portas de acesso para o YouTube.

Os limites delicados entre prestação de serviço e uso inapropriado podem ser exemplificados por uma campanha de prevenção à dengue criada para o YouTube pela Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul. Numa paródia oficial ao vídeo pirata de Cicarelli na praia, dois atores fantasiados de mosquitos simulam as mesmas cenas de sexo, até que aparece o aviso de que "é na água que o mosquito da dengue se reproduz" e as mensagens educativas.

Os limites também se esfumaçam no sentido inverso, como no caso de um vídeo que virou coqueluche e rapidamente ultrapassou a casa dos milhões de visitas no YouTube. Trata-se do cômico Tapa na Pantera, em que a veterana atriz Maria Alice Vergueiro interpreta uma senhora a pregar os supostos benefícios do consumo de maconha.

Por trás da brincadeira aparentemente inconseqüente, se escondia o propósito, admitido por ela, de "lutar pela legalização e descriminalização das drogas, para que o controle saia do âmbito da polícia e entre no campo da educação, da saúde, da cultura". Maria Alice se pronuncia sobre a tentativa de bloqueio de seu novo veio de expressão: "É o espetáculo da agonia do poder, são os últimos estertores da tirania vertical das relações".

Pois, se o site está repleto de pirataria televisiva e musical, já serve também em larga escala para divulgar legitimamente produção artística e cultural com acesso restrito à mídia tradicional. "A gente acabou de fazer o videoclipe de uma música nova e já colocou no YouTube. Hoje você não precisa esperar a MTV ou qualquer emissora para colocar suas coisas no ar, é genial", diz Bruno Verner, da dupla experimental brasileira radicada em Londres Tetine, que assim acaba usando o site como ferramenta para manter os vínculos com admiradores do país natal.

A diretora Laura Guimarães também joga diretamente no YouTube os documentários que produz: "Enquanto não consigo apoio para distribuir do jeito que quero os filmes, não preciso mais deixá-los na gaveta, como aconteceria antes". Seu vídeo De Casa em Casa documenta a Rede de Resistência Solidária, de artistas da periferia de Recife (PE) que cantam rap, discursam e grafitando com tintas coloridas as casas de comunidades carentes, tentando simbolizar "um primeiro passo para a reconstrução" das casas e vidas dos moradores.

É só um entre inúmeros exemplos de mobilização social exercida via YouTube, e que foi atingido de raspão pelo tiro de canhão virtual que a Justiça brasileira disparou a esmo para proteger a intimidade de Cicarelli e Malzoni. POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES