sexta-feira, março 23, 2007

teatro, boate, cinema, qualquer prazer não satisfaz...

eu ainda quero falar um pouquinho mais sobre supermercados.

é que houve uma época, vários anos atrás, em que eu andava freqüentando uma outra loja do pão de açúcar. era ajeitadinha, apesar de apertadinha, e ficava bem na região fronteiriça entre uma área mais "nobre" e outra área "menos" nobre da provinciana, puritana, pura e pútrida são paulo.

um dia fui atendido no caixa por um rapaz negro que logo se demonstrou muito, muito, muito gentil, simpático e atencioso. não lembro se foi logo na primeira vez, ou se foi numa das próximas, mas eis que num "pluft" ele puxou assunto comigo, enquanto registrava os preços das minhas compras.

também não lembro se foi olhando na minha cara ou vendo o nome no meu cartão do banco, mas o que aconteceu foi que ele me perguntou, assim na bucha, se eu não era jornalista, se eu não escrevia na "folha".

sim, eu escrevia. e ele fez comentários e elogios generosos, fazendo bulir aqui dentro aquelas vaidades que a gente gosta à beça de ter (e por que não?), mas não gosta nem um pouco de admitir que tem.

admitindo um pouco mais, acho que, do alto dos meus mais estúpidos preconceitos, eu gozava o espanto feliz de descobrir que o caixa do pão de açúcar lia o jornal, lia a "folha" moderninha, lia o que eu escrevia, tinha me visto em sei lá que programa de tv, esse trambique todo aí.

pois então, o nome dele era andré, e a partir dali passei a acalentar o prazer tímido e acanhado de bater papo com o andré sempre que calhava de eu cair no caixa dele lá no pão sem açúcar.

e, vou dizer, ele elogiava, mas não me economizava também de uns bons puxões de orelha. reclamava docemente de alguma imbecilidade que eu havia escrito sobre o djavan, reprovava gentilmente o meu desinteresse pelo mano brown e pelos racionais mc's e pelo hip-hop brasileiro, e assim por diante.

não só por causa do andré, mas também por causa dele, fui desenvolvendo mui devagarinho um interesse pelo hip-hop feito aqui mesmo na minha vizinhança. tive orgulho quando afinal o andré pôde começar a ler textos falando de hip-hop, e assinados por mim. a partir de aprender a me interessar, aprendi também a gostar, olha só quanta coisa o andré me ensinou!

depois, o andré saiu do pão de açúcar (acho eu), e perdi o contato com ele.

mas um dia, passado mais um tempo (não me lembro direito da seqüência exata das coisas), eu recebi um e-mail do andré, com notícias do andré.

e passei a fazer parte de um mailing do andré, por intermédio do qual ele divulgava os poemas que escrevia. eram poemas sempre fortes, quase sempre atormentados e tristes.

aliás, não eram, são. porque até hoje volta e meia recebo o doce spam de poemas do andré.

nesse meio tempo, ele também me contou que estava pelejando pela vida, e que estava freqüentando o curso de teatro do antunes filho.

minha vaidade ficou batendo bola com meu orgulho (e com meus preconceitos, será?), uma coisa assim ping-pong. porque, ah, vá, posso confessar?, dá, sim, um calorzinho gostoso saber que existe uma particulazinha ínfima do meu trabalho de formiguinha ajudando a compor o esforço hercúleo de um jovem talentoso por conquistar o mundo.

ah, por falar em hércules... te contei que outro dia eu fui ao cinema ver um filme encantador (embora bastante doloroso), chamado "os 12 trabalhos"? fui, tinha umas sete pessoas na sala de cinema, é uma produção brasileira, paulista, paulistana, dirigida pelo ricardo elias, que eu não conheço.

"os 12 trabalhos" acompanha um dia na vida de um motoboy, um desses meninos crescidos que zunem de moto pela cidade afora, não raro formando turra com taxistas e atraindo a zanga e a raiva e o rancor de motoristas ricos-brancos-cultos-esclarecidos-despreconceituosos que adoram comer shimejis e shitakes fresquinhos adquiridos no pão de açúcar (se não nalguma importadora mais afamada e renomada).

sob trilha sonora hip-hop e não-hip-hop orquestrada com esmero pelo ex-mulheres negras e ex-karnak andré abujamra, "os 12 trabalhos" conta a história do motoboy, sob a ótica, sob os valores e sob as dores dele, do motoboy.

adotando o ponto de vista do motoboy, o filme de ricardo elias expõe (suponho eu) conflitos e pensamentos do motoboy que aposto que você nunca supôs que um motoboy teria, embora você mesmo(a) os tenha todo dia, assim como eu também.

mas, então, voltando aos supermercados.

heracles, o motoboy negro do filme, tem de cumprir ao longo do filme uma sucessão de tarefas hercúleas que garantam a ele, no fim do dia, a certeza (certeza?) de que o emprego de motoboy continuará sendo seu no dia seguinte.

e, num intervalo e outro da lida, ele se dedica ao que parece ser seu ofício de sonho e talento: desenhar. o motoboy heracles é um desenhista.

nem preciso te dizer que o heracles (interpretado pelo incrível ator negro sidney santiago) me fez lembrar do andré, trocentas vezes, durante o filme, preciso?

[o filme tem uma maioria quase absoluta de atores negros, será que é por isso que a maioria quase absoluta das cadeiras do (super)shopping(mercado) "gay" caneca estava vazia? ou é "só" porque o filme é brasileiro mesmo? você foi ver "antônia"?]

pois, eu vou te contar, não é que há em "os 12 trabalhos" um outro personagem, assim pequenino e discreto, também motoboy, chamado maguila, e não é que quem interpreta o maguila no filme é o andré, aquele mesmo andré com quem eu conversava no pão de açúcar?

não preciso te contar que meu orgulho aumentou mais uma bolotinha diante da tela cheia do cinema, preciso?

indo embora do cinema, passei em frente àquela loja apertadinha do pão de açúcar, em que nunca mais entrei. deu uma nostalgiazinha assim morna e macia, e eu estou até agora me perguntando, e te pergunto também: será que o pão de açúcar faz a mínima idéia sobre quem se esconde por dentro das meninas de piercing que recolhem os reai$$$ que edificam a "riqueza" da sua garbosa e gabola dinastia pato?