segunda-feira, maio 07, 2007

a indústria das ruas, vol.3: a "fraude" "brasileira"

concluindo o ciclo iniciado no tópico "a indústria das ruas", mais ali abaixo, reportagem da "carta capital" 442, de 2 de maio de 2007, sob o som yeah-yeah-yeah do grupo lee jackson (alô, márcio almeida!).


DO IÊ-IÊ-IÊ AO AI, AI, AI...
Diretores de gravadoras que começaram como banda de covers dos Beatles são demitidos, em meio a suspeitas de fraude

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Eram cinco garotos que amavam os Beatles e gravavam versões cover de sucessos de Elvis Presley. Paulistana, a banda se chamava Lee Jackson, ex-Amebha. Juntos, os cinco venderam milhões e milhões de discos nos anos 80, 90 e 2000. Mas não eram discos deles, e sim de artistas tão diversos quanto Roberto Carlos, Julio Iglesias, RPM, É o Tchan, Caetano Veloso, Sandy & Junior, Maria Rita, Chitãozinho & Xororó, Chico Buarque e RBD. É que, de roqueiros brasileiros que cantavam quase sempre em inglês, viraram altos executivos da indústria fonográfica brasileira e latino-americana.

De outubro de 2006 para cá, três dos ex-garotos foram demitidos dos postos de presidência que ocupavam nas gravadoras EMI e Warner.

Sob a guarda direta ou indireta de dois deles, aconteceu algo que em 25 de outubro a matriz inglesa do multinacional EMI Group classificou como uma "fraude contábil" que afetaria "os resultados do negócio musical da EMI no Brasil". No comunicado oficial, dizia-se que a terceira maior companhia de discos do mundo estava "conduzindo uma investigação completa" e "suspendendo alguns executivos seniores da filial brasileira".

De executivos seniores, na EMI brasileira, só havia o presidente local da companhia, Marcos Maynard, ex-organista do Lee Jackson, que de fato foi demitido naqueles dias.

Como diretor das gravadoras CBS (hoje Sony BMG), PolyGram (hoje Universal), Abril Music e EMI, ele carrega no currículo feitos comerciais variados e abundantes. Nos anos 80, participou da criação do sucesso infantil A Turma do Balão Mágico e do sucesso juvenil RPM. Nos 90, gerenciou a renascença do ex-Menudo Ricky Martin a partir do México e a explosão da axé music a partir da Bahia, e sugeriu a Caetano Veloso que gravasse o álbum em espanhol Fina Estampa (1995). No ano passado, na EMI, veiculou dois discos de Marisa Monte e uma bem-sucedida série de 12 DVDs de Chico Buarque.

Maynard nega a existência de fraude e move processo por perdas e danos contra a EMI Music do Brasil. "Eu nunca tirei um centavo de ninguém. Exijo uma retratação pública da EMI", afirma ele, que alega razões processuais para não conceder depoimento a CartaCapital.

Segundo o pronunciamento de 25 de outubro, a manobra financeira ilícita envolveu maquiagem dos resultados da EMI brasileira: o lucro foi superestimado em 9 milhões de libras (36 milhões de reais), e as receitas, em 12 milhões de libras (48 milhões de reais). Diante do anúncio, as ações da EMI caíram 8,8% na Bolsa de Londres.

A notícia se espalhou pelo mundo no mesmo dia, em títulos como o da BBC, que seguiu a linha de estigmatizar o Brasil e vitimizar a matriz: "Brazilian fraud hurts EMI Music". No Brasil, o assunto rendeu uma reportagem do Estado de S. Paulo e notas curtas nos outros principais jornais. Lá fora, o assunto desapareceu rapidamente do noticiário.

Procurada por CartaCapital na segunda-feira 23 de abril, a vice-presidente de comunicações corporativas da gigante fonográfica, Jeanne Meyer, afirmou que não faria nenhum comunicado adicional ao que foi divulgado no site da empresa.

Mas o silêncio generalizado não significa que o episódio não tenha trazido desdobramentos. Em 12 de janeiro passado, a EMI anunciou o desligamento de Alain Levy e David Munns, respectivamente presidente e vice-presidente mundiais da divisão musical da multinacional. As ações da empresa caíram 6% naquele dia, e o mercado atribuiu as demissões às vendagens decepcionantes de alguns dos principais lançamentos de fim de ano, como o novo álbum do pop star Robbie Williams e Love, um disco de antigos sucessos dos Beatles "maquiados" para um espetáculo do Cirque du Soleil.

Em março, caiu o ex-baterista do Lee Jackson, Marco Bissi. Superior hierárquico de Maynard, ele ocupava o posto de presidente da EMI Music Latina, com sede em Miami (EUA), e afastara poucos dias antes o diretor-financeiro da divisão latina, Jorge Meléndez. Uma vez que o diretor-financeiro mundial, Stuart Ells, saíra em 27 de outubro, no calor do episódio da "fraude brasileira", chega-se à conclusão de que, em seis meses, um efeito dominó devastou as linhagens brasileira, latino-americana e mundial de presidentes e diretores-financeiros da EMI.

Para entender a seqüência é preciso recuar na história ao momento da "brazilian fraud". O primeiro profissional afastado, por determinação do presidente mundial, foi o vice-presidente financeiro e de vendas do Brasil, A(*) B(*). Ele teria sido responsabilizado por Maynard pelo superfaturamento, mas hoje move processo trabalhista contra a EMI, inclusive por danos morais.

Segundo o advogado de B(*), Carlos Roberto Fonseca de Andrade, o cliente possui provas de que cumpria ordens "mandatórias" de Alain Levy, David Munns e Stuart Ells. "Estão nos autos vários e-mails em que A(*) alertava para dificuldades, e Jorge Meléndez, Marco Bissi e Stuart Ells determinavam que cumprisse mesmo assim", diz o advogado.

O que acontecia, naquela ocasião, era a exacerbação de uma prática corrente na indústria fonográfica: a venda consignada para lojistas, que em certas ocasiões aceitam comprar das gravadoras quantidades exageradas de discos, mas têm o direito de devolvê-los mais tarde, caso não haja procura suficiente por parte do público consumidor.

Pressionadas a apresentar resultados positivos às matrizes, as filiais se habituaram a forçar a aquisição superestimada pelas lojas – é o que até poucos anos atrás fazia grandes magazines ficarem abarrotados de discos de Roberto Carlos após o Natal, por exemplo. Os relatórios são enviados à matriz como se a venda consignada fosse definitiva e vão integrar resultados supostamente vitoriosos da empresa toda. Após o anúncio da "fraude contábil", uma avalanche de devoluções passou a abarrotar os estoques da EMI.

A técnica de inflar vendagens pode ter surpreendido a "machucada" EMI mundial, mas, sob a condição do anonimato, executivos demitidos afirmam que não: a determinação "mandatória" não teria sido enviada só para o Brasil (cuja receita representa cerca de 1,5% do faturamento total da EMI), mas para as várias praças onde funciona a gravadora. A exigência de resultados volumosos era geral.

A voracidade recente da EMI foi noticiada em agosto de 2005 por CartaCapital. Uma reportagem na edição 353 dava conta dos excelentes resultados relatados por Maynard à gravadora num cenário de forte crise, e completava: "Tais resultados se consolidaram nas vendas de Natal, em que o mercado sofreu uma queda de 18,3% nas cópias consumidas em relação a dezembro de 2003, enquanto a EMI registrou o formidável crescimento de 288%".

Ao ser contratado por Bissi, Maynard beneficiava-se da fama de "agressivo" (ou de potencializador voraz de vendagens), segundo atestam passagens por CBS, PolyGram e Abril Music. Essa última chegou a abocanhar mais de 10% do mercado nacional em apenas quatro anos e meio de existência, mas foi abortada pelo Grupo Abril em 2003, sob especulações de um rombo de 18 milhões de reais, o que o executivo negou com veemência à época.

Tampouco as outras gravadoras locais se surpreenderam. Diz o presidente do escritório brasileiro da Universal Music, José Antonio Eboli: "A Nielsen audita as vendas da Universal, e sabíamos que a EMI tinha 12% do mercado em termos de venda ao público e declarava à ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos) que tinha 28%".

Eboli avalia o peso do episódio na indústria fonográfica nacional: "O impacto negativo é grande. Causa descrédito lá fora, e o executivo brasileiro fica nivelado, como se fôssemos todos assim". E menciona o impacto financeiro: "Tivemos uma queda de mercado de 68,5% no primeiro trimestre, segundo a ABPD. Esse valor não é verdadeiro, porque há o fator EMI, de um trimestre anterior inflado contra um trimestre posterior cheio de devoluções". De acordo com ele, as auditorias da Nielsen apontam que, descontado o "fator EMI", a queda real seria de 16% a 17%.

Há poucos dias, a EMI brasileira ganhou novo presidente, Marcelo Castello Branco, que chega de uma temporada na Universal espanhola. "Não há como negar que o problema no Brasil tem impacto internacional, nas bolsas inclusive", diz. "Chego para tomar medidas duras, mas não cabe a mim exercer julgamento. Há uma investigação em curso, vai caber à companhia internacional a decisão de como proceder quando concluída."

No Brasil, a retirada de Maynard foi o ponto inicial de nova rodada de "dança das cadeiras" entre gravadoras. Em 1997, Castello Branco substituíra Maynard na presidência local da Universal. Agora, acaba de dispensar grande parte da diretoria montada pelo antecessor na EMI.

Na Universal, o diretor artístico Max Pierre foi demitido há poucas semanas, após décadas de trabalho ali e na Som Livre (da Globo). O presidente da Warner, Cláudio Condé, também foi substituído. Ambos são, como Maynard e Bissi, remanescentes de uma geração de executivos que conquistaram altos salários em tempos de vendagens e contratos milionários – ou de "farra", na expressão empregada por mais de um figurão.

Condé, por sinal, é o terceiro dos ex-Lee Jackson recém-afastados do coração da indústria. De cantor de frente do grupo, ele foi "descoberto" com Maynard pelo mitológico homem do disco André Midani, e foi sucessivamente presidente de gravadoras em Portugal, Brasil e Espanha. Procurados por CartaCapital, nem Condé nem a nova diretoria da Warner se pronunciam sobre as razões de sua saída.

Em escala mundial, um pano de fundo comum aproxima a Warner e a EMI, duas gravadoras que têm vivido em constante crise. Desde a fusão entre as multinacionais Sony e BMG, em 2003, a indústria alimenta a expectativa de que as próximas a se unirem sejam EMI e Warner. Em junho de 2006, as duas companhias fizeram ofertas simultâneas entre si, de comprar a rival por 4,6 bilhões de dólares. Nenhum negócio foi fechado. Segundo um executivo brasileiro, a venda de uma EMI sobrevalorizada poderia render aos condutores da negociação uma comissão da ordem de 10% a 15%, ou seja, de no mínimo 460 milhões de dólares.

Em março passado, cinco meses após a descoberta da tentativa de sobrevalorizar as vendas no Brasil, a Warner fez novo lance para comprar a concorrente, desta vez por 4,1 bilhões de dólares. A EMI recusou a oferta, afirmando que era baixa demais.

Outro pano de fundo envolve, novamente, o termo "fraude", e se refere à obra dos Beatles, até hoje um dos carros-chefes do catálogo da EMI. Em setembro de 2006, o Supremo Tribunal de Nova York autorizou Paul McCartney, Ringo Starr e os herdeiros de John Lennon e George Harrison a entrarem na Justiça contra a corporação, acusada por eles de fraudar vendas e desviar direitos autorais do grupo. O ex-grupo pedia 25 milhões de dólares e pleiteava recuperar para si os originais da obra.

Neste mês, noticiou-se uma bandeira branca entre as duas partes. "Acordamos termos mutuamente aceitáveis e não haverá outros comentários", afirmou uma porta-voz da gravadora.

Em escala local, os discos do Lee Jackson circulam pela primeira vez no formato CD, graças a uma reedição bancada pela EMI durante a gestão Maynard. Títulos como Rock Samba – Tribute to... Elvis e Rock Samba Vol. 2 (ambos lançados em 1977) reexibem uma mistura que os rapazes tentavam emplacar no Brasil, forrando rocks de Elvis e dos Beatles cantados em inglês com instrumentos de samba.

Em 2002, os cinco músicos-executivos se reuniram para um show comemorativo no Clube Pinheiros de São Paulo, que foi transformado em álbum duplo lançado pela Abril Music. Estavam lá Condé, Maynard, Bissi, o baixista Sérgio Lopes e o guitarrista Luiz Carlos Maluly.

Lopes ainda resiste como diretor da EMI latina. Maluly é o único dos cinco que abandonou mais cedo a carreira de executivo, mas continua trabalhando nos bastidores musicais como produtor. Dirigiu discos do RPM, Engenheiros do Hawaii, Zizi Possi, Simone, Ney Matogrosso, Cássia Eller, Sandy & Junior e outros. Atualmente, produz as duplas sertanejas Bruno & Marrone e Edson & Hudson.

O jornalista Tom Gomes, editor da revista de mercado Sucesso e membro votante do comitê latino do Grammy, vem preparando a biografia do grupo, que pretende batizar de Lee Jackson – Banda de Milhões. "Minha idéia é usar aquele modelo de histórias de pessoas que lutaram muito na vida e chegaram a um lugar importante", conta ele, que foi compositor de iê-iê-iê e é próximo dos Lee Jackson. "Mas meu texto terminava com um happy end, e essa história nos últimos meses teve um fim melancólico, nessa indústria em total decadência. Quero esperar um pouquinho mais para reescrever."

Segundo Gomes, Bissi está montando uma gravadora própria, independente, e Condé "não se preocupa em voltar a trabalhar tão cedo".

Quanto a Maynard, voltou a cuidar da produtora que fundara após o encerramento da Abril Music. Fã incondicional de Elis Regina (a cantora inseriu um agradecimento a ele no disco de 1977 que contém a clássica canção Romaria), ele hoje colabora com projetos de artistas como Roberta Miranda, Paulo Ricardo e o jovem Jay Vaquer.

A Maynard Enterprises fica num edifício no bairro paulistano do Itaim, o mesmo que também abriga o escritório de outra figura mitológica da música brasileira, Manoel Poladian, um produtor de shows de temperamento agressivo que foi veterano de Maynard na Faculdade de Direito do Mackenzie e estreou na música como empresário do Lee Jackson.

No mesmo andar da Maynard Enterprises, do outro lado do corredor, fica o escritório paulista da EMI Music do Brasil.

Colaborou Márcia Pinheiro

(*) Em 29 de novembro de 2010, retirei o nome do profissional em questão desta versão da reportagem, a pedido de uma pessoa próxima a ele. Se quiser saber o porquê de eu "censurar" (para usar termo em voga em 2010) um trecho de meu próprio texto, posso esclarecer via pedroalexandresanches@gmail.com.