terça-feira, julho 17, 2007

a (des)ordem calamitosa

em conexão direta com uma outra reportagem, de março de 2006, fomos de volta à carga, ao sempre periclitante imaginário da ordem dos músicos do brasil, na "carta capital" 452, de 11 de julho de 2007.

a reportagem anterior fora baseda numa visita à omb de são paulo, desta vez foi a vez da omb do rio.

êita, eixão rio-são paulo "organizado" e "sofisticado" da moléstia, hein?!?? e a "grande" mídia (extra-)cultural instalada dentro desse eixão, por que será que não costuma gostar nem um pouco desses assuntos de omb, hein??!? por que será que será, por quê?


A ORDEM CALAMITOSA
Acusada na Justiça de praticar irregularidades desde 1964, a OMB vive uma guerra aberta entre diretores do Rio e SP

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

O ideário vigente desde 1964 na Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) está desmoronando. Desta vez acontece de dentro para fora, a partir de uma guerra declarada entre os dirigentes das sedes regionais paulista e carioca do órgão de defesa e fiscalização do exercício da profissão musical no País, mantido sob mão de ferro pelo mesmo grupo desde o golpe militar. O cardápio inclui até acusações de agressão física, supostamente praticada por integrantes do grupo paulista contra o carioca.

Em agosto passado, uma determinação judicial obrigou o juiz classista aposentado Wilson Sandoli a abdicar da duplicidade de cargos que mantinha, como dirigente do Conselho Federal e do Conselho Regional paulista (ele também preside o Sindicato dos Músicos de São Paulo). Interventor nomeado presidente da OMB em 1966 e sistematicamente "reeleito" desde então, Sandoli, 79 anos, abdicou do cargo federal e o entregou ao vice, o militar João Batista Vianna, 82 anos, à frente do Conselho Regional do Rio de Janeiro desde o início dos anos 80.

Em abril passado, Vianna foi destituído do cargo por outra decisão judicial, e se criou um vácuo jurídico e de poder. Hoje se diz "apunhalado" por Sandoli, e o acusa de um desvio de verbas de cerca de 1,4 milhão de reais, supostamente transferidos a título de empréstimo, do Conselho Federal para a regional paulista. "Com uma penada, Sandoli anistiou os débitos dele próprio e dos outros conselhos que deviam ao federal. É um ato arbitrário, é querer se apossar de um dinheiro que não lhe pertence", protesta o advogado da OMB-RJ, Itamar Ribeiro de Carvalho.

Sandoli afirma que os empréstimos foram todos contabilizados, e contra-ataca: "Soubemos que, no tempo que ficou no Conselho Federal, Vianna fez uma série de irregularidades, agora é que vamos ver".

Constantemente envoltas por acusações de manipulação e falta de transparência, as eleições da Ordem agora vêm acontecendo umas atrás das outras, sob uma saraivada cruzada de sentenças judiciais entre os dois grupos oponentes.

Em 25 e 26 de abril passado, Vianna capitaneava a própria reeleição ao Conselho Federal, quando foi interceptado pela nomeação judicial de mais um interventor à Ordem, o advogado Humberto Perón Filho. Na ocasião, na sede federal, teriam sido Perón e Sandoli os protagonistas das supostas agressões verbais e físicas, registradas em votos de repúdio dos conselheiros de Sergipe, Rio e Distrito Federal.

Perón contesta a acusação: "Tenho 70 anos, vou bater em alguém?". Interventor nomeado pela 18ª Vara Federal de São Paulo para conduzir novas eleições, Perón é advogado da OMB-SP desde 1988 e aliado de Sandoli. "Seu Vianna fugiu da sede com a chave, levou embora. Precisei chamar o chaveiro para fechar, como é que eu ia deixar aberto?", descreve, dando dimensão do caos instalado.

Perón conduziu a nova eleição na segunda-feira 2 de julho, quando Sandoli se sagrou tesoureiro e o presidente da regional paraibana, Benedito Honório da Silva, foi alçado ao posto de novo presidente nacional da Ordem. "Podiam votar 14 conselheiros regionais, mas apareceram oito, nove ou sete. Os outros foram convocados, não sei por que não apareceram", ele diz.

A posse aconteceu em Brasília, na terça 3, atropelando a reivindicação de Vianna de se reempossar na sexta 6. A guerra de sentenças judiciais prossegue, sem vislumbre de resolução.

No pano de fundo da disputa, prevalece a acusação de músicos resistentes à Ordem, sobre irregularidades e abusos cometidos em eleições rotineiramente antecipadas e convocadas de modo "sorrateiro", nos dizeres de ação popular movida em maio por cinco músicos cariocas contra a OMB-RJ. A "calamitosa situação jurídica e fática" da instituição foi evocada por Samuel Araújo, doutor em etnomusicologia, Patrícia Vilches, cantora lírica e professora, Gabriel Gagliano, mestre e clarinetista, Sérgio Barboza, compositor, pianista e mestre, e Eduardo Camenietzki, músico do corpo técnico da Escola de Música da UFRJ.

"O assalto que a OMB faz ao patrimônio dos músicos não é só de dinheiro. É simbólico, à imagem dos músicos, que passam por desorganizados e comandados por um bando de gente que não sabe tocar e ocupa a burocracia", protesta Camenietzki. Ex-integrante do conselho carioca, entre 1993 e 2001 (*), ele mobilizou a categoria musical no ano passado, quando enfrentou processo de cassação depois de denunciar irregularidades cometidas por Vianna e acusá-lo de "papa-defunto".

"Camenietzki falou que era meu amigo até embaixo d'água. Virou contra porque esteve aqui junto com mais uns quatro querendo que eu derrubasse o Sandoli, e não aceitei", diz Vianna.

A ação popular abrangeu várias exigências, acolhidas integralmente pela 18ª Vara Federal do Rio. Solicitou, por exemplo, a apresentação das atas de assembléias de prestações de contas desde 1964, sob a alegação de que, num universo de 40 mil músicos inscritos na OMB-RJ, a arrecadação com anuidades seria de no mínimo 8 milhões de reais anuais, geridos sem transparência pela instituição.

Foi exigida também prova de aptidão musical dos atuais membros da diretoria, para dirimir suspeitas de que Vianna e outros não fossem músicos de fato. E se solicitou comprovação de que a Ordem possua alardeadas 27 sedes regionais no estado do Rio, assim como documentos do Sítio de Lazer São João, onde a OMB carioca costuma celebrar festas em honra a Santa Cecília, padroeira dos músicos.

Os documentos foram entregues pela Ordem na semana de 2 de julho, mas desagradaram à advogada dos músicos rebeldes, Deborah Sztajnberg, cujo escritório já movimentou cerca de 5.000 liminares de músicos contra a obrigatoriedade da vinculação à OMB. Segundo ela, escrituras de apenas seis sedes regionais foram enviadas, as prestações de contas não foram apresentadas e só foram anexadas atas manuscritas a partir de 1991, sob a alegação de que a demonstração desde 1964 não é possível, porque "muitos desses documentos já foram incinerados".

"Aquilo é uma caixa preta com dinheiro público, eles detêm 10% dos contratos de shows internacionais que vêm ao Brasil, e não prestam qualquer conta disso", afirma a advogada. Ela critica, em particular, os procedimentos da Ordem junto a músicos de menor poder aquisitivo: "Uma coisa é a lei falar de regulamentação, outra é os fiscais da OMB chegarem aos shows de forma terrorista, ameaçando, desligando o equipamento, apreendendo, prendendo a pessoa. Isso não existe na lei, não podem impedir os músicos de trabalhar. Os músicos ficam apavorados, muitos trabalham por 3 reis de couvert artístico".

O advogado da OMB, Itamar Ribeiro de Carvalho, admite abusos cometidos pela instituição nesse campo. "A lei até dá poder de polícia aos conselhos, mas alguns fiscais desavisados começaram a extrapolar, e isso repercutiu mal. O presidente Vianna expurgou todos, atualmente não há nem fiscalização, está suspensa", diz.

Ele contesta a receita anual presumida na ação popular. "Dizem que a OMB fatura 8 milhões de reais por ano, isso não existe. Entre 40 mil inscritos, muitos são falecidos, outros já adquiriram a idade de não pagar mais. Atualmente há aproximadamente 3 mil inscritos pagantes, o que dá cerca de 300 mil reais", argumenta o advogado, em admissão implícita da forte crise de representatividade por que passa a Ordem, encurralada por inadimplência maciça e uma enxurrada de liminares.

"O cerne de tudo nasceu no Paraná, com um presidente regional que cometeu uma série de barbaridades com os músicos e fez com que eles se rebelassem. Virou um pandemônio, uma repulsa contra toda a instituição, causada por um desavisado lá do Paraná", diz o advogado. Ele recebe o reparo do presidente da comissão de ética da OMB-RJ, o cantor lírico (e presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Área Cultural) João Carlos Dittert: "O conselheiro do Paraná foi mal orientado, pessoalmente é uma pessoa boa". Vianna emenda a defesa: "Coitado, é um grande advogado".

O episódio é pontual, mas de modo nenhum excepcional em 43 anos de ordem vigente. Em 1978, a cantora Elis Regina batia boca com Sandoli pela tevê, no programa Vox Populi. Em cena hoje disponível no site YouTube, Elis reage ao ter sua legitimidade de porta-voz dos músicos questionada pelo burocrata: "Falo em nome dos músicos porque eu sou músico. Sou portadora de uma carteira azul de número 0022 do Conselho Regional do Rio Grande do Sul da Ordem dos Músicos do Brasil, portanto sou músico. Meu instrumento é a voz, aliada à palavra, não aceito discriminação".

E ela provocava o presidente da OMB, citando "uma série de coisas que perduram há muito tempo e acontecem à nossa revelia, inclusive eleições da Ordem, eleições do sindicato". Neste ano de 2007, eleições (indiretas) parecem pipocar de minuto a minuto na OMB, sob inédito cenário de divisão interna. E certamente não satisfariam os anseios democráticos expressos há quase 30 anos pela cantora, que morreu em 1982.


QUITINETE DE LUXO
O ex-presidente gaba-se de ter criado um "patrimônio monstro" na OMB-RJ

Com aspecto de uma típica repartição pública, como tantas outras que se espalham Brasil afora, a sede carioca da OMB ocupa o sétimo andar de um prédio no centro da cidade, o mesmo onde há um ano o ex-governador Anthony Garotinho entrou em greve de fome. O repórter de CartaCapital em visita é recebido com simpatia e gentileza por João Batista Vianna e pela presidente regional, a cantora da noite Célia Silva, nomeada após a ida dele para o Conselho Federal.

Logo à chegada, "seu" Vianna gaba as próprias virtudes. "Fui o único presidente que deixou a OMB rica. Comprei nove sedes no estado do Rio. Se o senhor chegar ao sítio de Itaboraí, não precisa ficar em hotel, fica na quitinete de luxo. É piscina, 20 quitinetes de luxo, salão de primeira, que eu fiz." E celebra as sucessivas reeleições: "Tive a sorte de vencer em todas as urnas. Fiquei. Criei logo policlínica, restaurante. Até hoje não houve um presidente que fizesse um patrimônio-monstro assim."

Vai ao ataque contra Sandoli. "Tem presidente regional que não pode comprar uma bicicleta, e ele anda de carro importado e blindado." Afirma devotar admiração a Juscelino Kubitschek, que instituiu a Ordem em 1960, e ao primeiro presidente da OMB, o maestro José Siqueira, destituído pela ditadura em 1964. "Muita gente não gostava do Zé Siqueira por causa do comunismo. Ele regeu até a Orquestra de Moscou."

Diante da menção à suspeita dos opositores, de que nem músico ele seja, apanha um saxofone, toca trechos de La Barca e Torna a Sorriento.

Convoca o repórter para um almoço caseiro na copa da OMB: rabada com agrião, bistecas de porco, frango à milanesa, feijão preto. Conta que o pai tentou se suicidar sucessivas vezes, que a esposa sofre de mal de Alzheimer ("coitada, é o maior problema da minha vida"), que um dos netos se casou à revelia do pai com uma mulher negra e 18 anos mais velha ("eu fui ao casamento, eu fui").

E no Exército, a vida era dura? Ante a pergunta, lembra que tinha de castrar carneiros, e evoca a castração de bois e porcos ("a faca"). Mas diz que, do Exército, só foi músico, nada mais. "Eu acho, palavra de ordem, que militar tem muita função dentro do quartel. Ditadura não dá certo, não." Diz que prefere "200 vezes" a democracia e respeita Lula ("é nosso presidente da República"), apesar de ter votado em Alckmin ("gente muito fina").

Após o almoço, mostra, orgulhoso, as dependências da OMB. Abre o armário do gabinete e exibe cinco ternos, "presenteados por músicos que gostam de mim". E brinda a permanência no comando da Ordem: "Eles sabem que é dificílimo concorrer com o Vianna. Não querem dar a mão à palmatória". – PAS


(*) a propósito desse trecho, eduardo camenietzki me solicitou uma errata, que será publicada na "carta capital": ele não foi integrante do conselho da omb entre 1993 e 2001, como afirma a reportagem, mas sim entre 1982 e 1985 (quando tinha "entre 24 e 27 anos de idade", segundo lembra); no período 1993-2001, camenietzki foi anistiado das anuidades da omb, mas afirma que então já não mantinha qualquer vínculo com a (des)ordem. fica feita aqui a correção, em tempo (ir)real.