segunda-feira, setembro 03, 2007

ossadas a céu aberto

é só impressão minha, ou assuntos como o que vai aqui abaixo causam um silêncio muito mais ruidoso que barulheiras e quebradeiras gritonas recentes como as de avião que caiu (mas não de trem que trombou), "cansaço" que "cansou", "indignação" que se "indignou", blá, blá, blá? por que setores "mobilizados" pelas "200 vidas ceifadas" da tam não dão um pio quando se trata da mais remota possibildade de insurreição contra as não sabemos até hoje quantas "vidas ceifadas" nos ensandecidos porões torturadores da ditadura que fomos até outro dia? (ou ainda somos?...)

reportagem da "carta capital" 459, de 29 de agosto de 2007. você já existia em 1968, 1969, 1970, 1971, 1972, 1973, 1974, 1975...? este aqui abaixo é o seu mundo (ou o dos seus pais, ou o dos seus avós)?


Ossadas a céu aberto
Documento inédito passa a limpo a história de quase 500 vítima dos organismos de repressão da ditadura militar

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Um documento que será apresentado publicamente na quarta-feira 29, no Palácio do Planalto, transformará a relação do Estado brasileiro com esqueletos guardados no armário ao longo da ditadura militar instalada no País entre 1964 e 1985. Em 500 páginas, o livro Direito à Memória e à Verdade descreve e se esforça por solucionar quase 500 casos irresolutos remetidos a partir de 1996 à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), ligada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

De modo inédito, crimes praticados pelo Estado contra militantes oposicionistas durante o regime de exceção são narrados em detalhes num documento oficial produzido pelo próprio Estado, escrito, entre outros, pelo ministro da Secretaria dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. Sem circulação comercial prevista, o livro será distribuído para bibliotecas, órgãos públicos e familiares dos mortos e desaparecidos.

O texto afirma não haver teor revanchista contra os abusos da ditadura. Mas não economiza termos para caracterizar o "terror de Estado" instaurado mais dramaticamente após o Ato Institucional nº 5, de 1968. Guerrilha do Araguaia, ossadas do cemitério Dom Bosco, em Perus (SP), Operação Bandeirante (Oban) e suicídios forjados pelos órgãos de repressão, todos freqüentam à exaustão as páginas de Direito à Memória e à Verdade.

Trata-se de um esboço de reação do governo às críticas constantes a uma suposta inoperância na tarefa de desenterrar os esqueletos da ditadura. E significa um passo adiante no processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes, iniciado com a promulgação da lei nº 9.140, de 1995. O documento consolida o trabalho de 11 anos da CEMDP, que acumula 356 casos analisados, deferidos e indenizados, além de 118 indeferidos em geral por não cumprirem os itens contemplados pela lei.

A radiografia amplifica a documentação sobre um regime militar que quantitativamente não foi o mais sangrento entre os implantados na América Latina nas décadas de 60 e 70, mas tem sido tratado de modo ambíguo pelo Estado e pela sociedade brasileira desde a transição sem ruptura institucional da ditadura à democracia, de 1985 em diante.

Aqui, não se conhecem estimativas objetivas sobre o número de mortos numa luta política que, na vigência da Guerra Fria, fez opor de modo bipolar e sem meios-termos um Estado repressor alinhado com os Estados Unidos e uma resistência que o regime caracterizou como terrorista e alinhada à União Soviética. O documento expõe indiretamente a demora do Brasil em acertar contas com o passado, ao relacionar dados de países vizinhos que têm sido mais determinados em quantificar e julgar os crimes de suas sangrentas ditaduras. O relatório aponta cerca de 30 mil mortos entre os que resistiram à ditadura na Argentina, entre 3 mil e 10 mil no Chile, 400 no Uruguai.

Após relatar tentativas das nações vizinhas em punir seus ditadores, o texto fustiga: "O Brasil é o único país do Cone Sul que não trilhou procedimentos semelhantes para examinar as violações de direitos humanos ocorridas em seu período ditatorial, mesmo tendo oficializado, com a lei nº 9.140, o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e pelos desaparecimentos denunciados".

Aqui, aos quase 500 casos que a CEMDP se empenhou em solucionar, somam-se um número desconhecido de camponeses mortos no Araguaia, a rotina de arquivos militares fechados, destruídos, adulterados e/ou protegidos por períodos de sigilo eventualmente prorrogados (como determinou, por exemplo, a lei nº 11.111, de 2005), a resistência de setores militares e do governo, e assim por diante.

As Forças Armadas participaram do processo de revisão histórica movida pela comissão, que é presidida atualmente pelo advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa. Um representante nomeado pelos militares integra desde o início o grupo completado por representantes de familiares, sociedade civil, Ministério Público Federal, Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e governo federal.

No livro, o militante dos direitos humanos Belisário dos Santos Jr. se refere da seguinte maneira ao coronel João Batista Fagundes, seu colega na atual representação da CEMDP: "É um homem com imenso respeito pelos direitos humanos, cujos votos têm honrado a tradição desta comissão. Ele sabe que as Forças Armadas não se confundem com os torturadores que se esconderam em passado recente atrás de uma farda. E que a tortura, sob qualquer forma, deve ser punida, e suas vítimas devem ser reconhecidas e indenizadas pelo Estado".

Isso não significa que o documento se exima de tocar em pontos de fricção, seja com familiares dos desaparecidos, por um lado, ou com remanescentes da ditadura militar, por outro. Em ao menos dois momentos, o texto atravessa temas controversos e potencialmente incendiários.

Num deles, critica-se a sociedade brasileira por ter se acomodado à tese de que a Lei de Anistia, de agosto de 1979, se estenderia aos torturadores. Tal interpretação foi usada pelos militares como um salvo-conduto para que deixassem o poder sem ser incomodados, situação que persiste até hoje. "Juridicamente é equivocado, pois o conceito de crimes conexos trazido pela Lei de Anistia de 1979 não tem o condão de beneficiar os autores de tortura e outros crimes do mesmo tipo, como desaparecimentos forçados etc.", afirma Belisário dos Santos Jr. em depoimento no livro.

Outra passagem sensível a tocar na impunidade dos agentes repressivos fala do chamado "crime continuado", em relação aos perseguidos políticos ainda tidos como "desaparecidos". O texto observa que, segundo certos juristas, os autores presumidos estariam incorrendo continuadamente em crime ao nada informar sobre a localização dos corpos.

"Na medida em que determinado agente do Estado sabe para onde foram levados muitos desses corpos e nada revela, persiste, pelo silêncio, praticando o crime de ocultação até os dias de hoje, quando a vigência da normalidade democrática retira qualquer justificativa para tanto", escrevem os redatores, sem se comprometer com esse ou aquele posicionamento. Ponto adjacente, não incluído explicitamente, é a interpretação que advoga que a tortura é um crime imprescritível contra a humanidade.

Em apoio e reforço ao trabalho desenvolvido há décadas por grupos como o Tortura Nunca Mais, Direito à Memória e à Verdade agrupa e sistematiza dados abundantes sobre a prática desse crime no Brasil.

Encontram-se ali casos célebres como o de Carlos Lamarca (1937-1971), ruidoso quando da aprovação da indenização à família, em junho passado, ou o do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), que, segundo o regime, "suicidou-se em 25 de outubro de 1975, por enforcamento, no interior da cela que ocupava no DOI-Codi do II Exército, segundo apurado em IPM e laudos elaborados pelos órgãos competentes da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo".

O livro documenta que o caso Lamarca foi deferido com cinco votos favoráveis e dois contrários, um deles o do general Oswaldo Pereira Gomes. O de Herzog é descrito como "último assassinato de um opositor nos porões do regime militar".

Histórias inéditas despontam ao lado de casos bastante esmiuçados, como os citados e os do dirigente comunista Carlos Marighella (1911-1969), da estilista Zuzu Angel (1923-1976) e de Walquíria Afonso Costa (1947-1974), considerada a última guerrilheira alvejada no Araguaia.

É o caso de Higino João Pio (1922-1969), morto quando era prefeito de Balneário Camboriú (SC). Segundo o livro, Pio, amigo pessoal do presidente deposto João Goulart, foi preso por intervenção de adversários políticos, com base em legislação excepcional baixada pelo AI-5, e "encontrado" morto em outra cena forjada de suicídio. "A família fora ameaçada, à época, e optara pelo silêncio."

Por conta de uma ampliação da lei nº 9.140 efetivada em 2004, certos casos de suicídios reais puderam ser contemplados no sistema de indenizações. Um exemplo é o de Massafumi Yoshinaga (1949-1976), que se enforcou com a mangueira do chuveiro em sua casa em São Paulo, após se jogar embaixo de um ônibus e tentar pular de uma janela.

Integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Yoshinaga ficara conhecido seis anos antes como um dos militantes que foram ao ar em cadeia nacional com depoimentos nos quais renegavam as convicções políticas e repudiavam as organizações clandestinas. Após o ato de "arrependimento" (como a ditadura classificou), passou a sofrer distúrbios psicológicos, com alucinações e afirmações repetidas de que a Oban iria matá-lo. Ao decidir pela indenização, a comissão reconheceu a responsabilidade do Estado repressor pelo suicídio real do jovem de 27 anos.

É notável a alta incidência de jovens no relatório, entre eles a baiana Nilda Carvalho Cunha (1954-1971), presa no mesmo cerco que capturou Iara Iavelberg (1944-1971), companheira de Carlos Lamarca. Nilda, que acabara de completar 17 anos, foi torturada e depois libertada. Começou a apresentar sintomas de cegueira, alucinação, depressão e desmaios, e morreu três meses depois, de "edema cerebral a esclarecer", segundo o atestado de óbito.

A mãe de Nilda, Esmeraldina Carvalho Cunha (1922-1972), é outro verbete do livro. Após a morte da filha, pôs-se a pedir auxílio para esclarecer o acontecido, percorreu as ruas de Salvador gritando que "eles mataram a minha filha", enfrentou internações em sanatório. Recebeu um recado de que "o major mandou avisar à senhora que, se não se calar, nós seremos obrigados a fazê-lo". Foi encontrada em casa, 11 anos após a morte da filha, aparentemente enforcada, com marcas de sangue no chão.

História ilustrativa das manipulações conduzidas pelo regime é a de Eduardo Collen Leite (1945-1970), o "Bacuri", simbolicamente eleito pela comissão, em 1996, como o primeiro caso a ser colocado em julgamento. Militante mineiro da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Bacuri foi preso em 1970 pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Em 25 de outubro, a imprensa, como de costume, deu ampla divulgação a notas oficiais que afirmavam que o militante teria fugido durante a operação de prisão (e morte, no mesmo dia) do principal líder da ALN, Joaquim Câmara Ferreira (1913-1970). A falsa notícia tornou evidente para ele e os companheiros de prisão que se montava uma farsa para encobrir o que aconteceria a seguir. Duas semanas depois, o corpo foi abandonado num cemitério em Santos (SP), com dois tiros no peito, um na têmpora e outro no olho direito.

A publicação de Direito à Memória e à Verdade descortina o início de uma nova fase nas relações entre o Estado brasileiro e seu passado recente. De acordo com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o próximo esforço será a intensificação da busca e identificação de ossadas em diversos locais do País, com foco especial na região do Araguaia. Até hoje, os únicos restos mortais identificados entre os lá resgatados são os de Maria Lúcia Petit da Silva (1950-1972), enfim sepultada pela família em 1996.

Outra ossada encontrada na região, no cemitério de Xambioá (TO), deu origem ao pedido de um exame de DNA, para determinar se pertencia ou não ao gaúcho João Carlos Haas Sobrinho (1941-1972). O resultado foi negativo, mas antecedeu a adoção de uma rotina estabelecida no ano passado, de coleta de amostras de material genético das famílias para construir um banco de DNA capaz de identificar desaparecidos para a montagem. Caso se confirme a vontade política de encontrar as ossadas, o banco genético estará disponível para uma identificação precisa e menos morosa.

Se consolidadas, as iniciativas recentes abrirão caminho para um Estado enfim disposto a começar a fechar feridas e dissipar antigas ambigüidades. A ambição, o próprio texto de Direito à Memória e à Verdade traduz: "Ao ingressar no século XXI, o Brasil se revela portador de todos os ingredientes de uma verdadeira democracia política. Reúne, portanto, condições plenas para superar os desafios ainda restantes à efetivação de um robusto sistema de proteção aos direitos humanos. Não pode temer o conhecimento mais profundo a respeito de seu próprio passado".

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na edição seguinte, 460, ora nas bancas, um desdobramento apareceu na forma do seguinte editorial:

As palavras no devido lugar

Sem a retórica capaz de irritar os sempre irritadiços setores militares, ainda assim com exata firmeza, o presidente Lula afirmou que as investigações do governo sobre os crimes da ditadura vão continuar e defendeu o direito dos familiares de desaparecidos políticos de enterrarem seus mortos. "É um direito de todos, independentemente de credo religioso ou político. É esse direito que queremos resgatar sem rancor, sem revanchismo de qualquer ordem", afirmou na quarta-feira 19, durante o lançamento do livro-documento Direito à Memória e à Verdade, em que o Estado brasileiro pela primeira vez descreve oficialmente em detalhes os crimes e torturas praticados pela ditadura militar.

Convidados para a cerimônia, os comandantes das Forças Armadas não compareceram. Em respeito à disciplina e à hierarquia, os militares não se pronunciaram publicamente, mas nos bastidores houve quem se queixasse de que o livro é extemporâneo e não traz novidades. À Agência Brasil, Jarbas Passarinho, ministro dos governos militares, queixou-se do livro: "Ele está escrevendo a história de um ponto de vista unilateral, absolutamente unilateral". "Não vejo razão para ser contra o livro, se representar a verdade", afirmou na Folha outro ex-ministro do período, Delfim Netto. Para ele, no entanto, uma "indústria formidável" corre por conta dos pedidos de indenização pelas famílias dos mortos e desaparecidos.

No lançamento, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, classificou o trabalho da Secretaria Especial dos Direitos Humanos de "um processo efetivo de conciliação", mas lançou um recado aos setores militares: "Não haverá um indivíduo que possa a isso reagir e, se houver, terá resposta".

Por ora, a imagem que resiste é a de Elzita Santa Cruz, que discursou em nome dos familiares e pediu de volta, antes de morrer, o corpo do filho desaparecido aos 24 anos, em 1974. Ela tem 94 anos.