terça-feira, outubro 09, 2007

eu (não) sou cafona (, não)!

da "carta capital" 464, de 3 de outubro de 2007. na seqüência, frases-bônus extraídas das entrevistas com waldick soriano, patrícia pillar e josé milton.


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NÃO SOU CAFONA, NÃO
Censurado pela ditadura e até hoje desprezado pela MPB, Waldick Soriano é cultuado em DVD dirigido por Patrícia Pillar

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Pelo visual altivo, o homem no palco parece um sambista carioca de raiz, um garboso cantor norte-americano de blues ou um nobre membro da velha-guarda musical cubana. Mas, não, ele é Waldick Soriano, expoente da música rotulada como "cafona" na década de 70 ou "brega" dos anos 80 em diante.

Aos 74 anos, o autor e intérprete do sucesso popular Eu Não Sou Cachorro, Não (1972) tem a obra reavaliada pelas mãos de uma moça da "fina flor", a atriz Patrícia Pillar. Na companhia de Waldick, ela se torna diretora de um show recém-lançado em CD e DVD e de um documentário que deve ser finalizado até o início de 2008. A eles se somou um produtor ligado à MPB, José Milton, que recrutou uma orquestra formada por músicos de naipe para a gravação em Fortaleza, Ceará, onde mora o cantor. "Ele é um cantor de verdade, um cara popular, que está aí, vivo, chiquérrimo, muito bem arrumado. Aquele cara sabe das coisas", elogia José Milton.

A produção esmerada e o apuro musical contrastam com a imagem pública fixada em torno do jeitão abrutalhado, dos boleros derramados e da fala desbocada de Waldick, nascido em Caetité, no sertão da Bahia. "Ele é um doce. Criou o lado bruto para sobreviver. Não é mole, o cara foi lavrador, garimpeiro. Em São Paulo, foi engraxate, faxineiro, servente de pedreiro", resume Patrícia, que se declara fã desde a infância.

Tampouco a coexistência harmoniosa entre profissionais egressos de universos bem distintos foi constante durante a trajetória do artista. Houve, de fato, um cisma entre as facções "cafona" e "sofisticada" da canção nacional.

"Não sou contra ninguém", afirma Waldick, em referência ao time da MPB. "Não sou, sendo. Música popular brasileira é música romântica, samba, forró. Essa chamada MPB é coisa de elite. O estilo que eles acham o melhor não tem nada a ver com música popular brasileira. É a menos tocada em todos os lugares. Elite já acabou, hoje o povo vive de realidade", prossegue, no mesmo tom de doçura observado por Patrícia.

Ela coloca em contexto a cisão: "Havia uma questão política de esses artistas serem colocados como quase de direita, em contraponto aos movimentos de universitários. Mas eram eles que sustentavam a gravadora para que pudesse gravar Chico e Caetano".

"Waldick sempre fez muito sucesso e foi muito verdadeiro, sem nunca depender de grandes esquemas de gravadoras", diz José Milton, que o acompanhou em alguns shows no início dos anos 70, mas nuca havia gravado com ele. Lembra que o erudito Guerra Peixe foi um dos primeiros arranjadores com que o cantor trabalhou, como em Perfume de Gardênia. "Ele chegou a ir a reuniões de comunistas com Guerra Peixe", diverte-se o produtor.

A muralha entre gêneros musicais e ideologias crescia na década de 70, mas o compositor de versos como eu também existo/ eu também sou gente, de 1972, não hesitava em transpor barreiras, como no namoro com a socialite Beki Klabin. "Tinha gente da alta que comprava disco meu escondido", ele provoca. "Com a saudosa Beki Klabin foi bom, quebrou aquele gelo de que Waldick Soriano era o cantor da ralé. Ela me colocou na melhor boate do Rio, foi um sucesso maravilhoso. Depois fui para São Paulo, idem, só tinha elite, empresário. Só casaca."

No mesmo ano de Eu Também Sou Gente ecolodiu o maior emblema musical do artista, de versos como eu não sou cachorro, não/ para ser tão humilhado/ eu não sou cachorro, não/ para ser tão desprezado. Waldick refuta qualquer teor de protesto social em Eu Não Sou Cachorro, Não. "Não tem nada de protesto. Só canto música que vai pelo caminho certo que é o amor. Realmente é um protesto, mas não político. É um grito que está na garganta de todo mundo que ama."

A empatia podia ocorrer pela via prosaica do romantismo, mas repercutia no sentimento de exclusão compartilhado pelo artista e seu imenso público, como defende o escritor Paulo Cesar de Araújo em Eu Não Sou Cachorro, Não (2000). O livro trouxe de volta um fato escondido há décadas sob o tapete da MPB, de que os “
"cafonas", embora tachados de "alienados", também foram amplamente perseguidos pela ditadura militar.

Foi censurada a regravação de 1974 do bolero Tortura de Amor, que Waldick lançara no início dos anos 60. "Tem coisa que não dá para entender. Sempre tive boas relações com os militares, até hoje tenho. Só porque a música falava de tortura. Censuraram essa e Fujo de Ti, que só fala de amor. Não deu para entender."

À época, expôs-se à fúria da imprensa e de políticos tanto da Arena como do MDB, ao defender que Maria Madalena havia sido amante de Jesus Cristo. Um funcionário estatal o diagnosticou "portador de deformações psicológicas". Mesmo assim, hoje afirma que gostaria que a Censura voltasse. "Estão avacalhando, tem muita música aí falando bobagem. Hoje todo mundo quer ser cantor, tenha voz ou não, com musiqueta de letra sem pé nem cabeça. Aí tem que pagar, tem que entrar na lei do jabá. Se pagou, toca. Aparece cada figura, meu Deus do céu. A mídia é muito culpada, porque aceita dinheiro. Muitos caras na tevê e no rádio são jabazeiros, mas, se for falar disso com eles, não gostam".

Declara-se saudoso do regime militar, "doa a quem doer": "Vivi por este Brasilzão, só tinha asfalto até Feira de Santana, para cima ninguém conhecia asfalto. Hoje tem asfalto em todo lugar, e foi feito pelo Exército". Isso não implica antipatia por Lula: "Ele não está tendo pulso para resolver o problema, mas não chegou ao ponto que chegou à toa, não. É quiabo, escorrega à beça. Acho ele o político mais interessante do Brasil".

Diz que "violência" é o principal problema do País, e, nessa toada, não poupa nem a Rede Globo, cuja gravadora, Som Livre, bancou a edição do CD e DVD Ao Vivo. "De madrugada, às vezes estou com insônia, mas certos filmes da Globo não vejo. A Globo me desculpe, que sou 'globense' agora, mas é muito filme violento. Não é mais tempo para isso."

Patrícia Pillar, esposa do deputado federal cearense Ciro Gomes, planeja lançar o documentário pelo Canal Brasil, da Globo. E diz que é coincidência a proximidade física: "Só descobri que ele morava em Fortaleza depois da primeira entrevista. Para o show, seria mais fácil trazê-lo para o Rio, mas eu queria o encontro com um público que é doido por ele. Mesmo fora do circuito da imprensa, ele lota duas noites num teatro de 1.200 lugares". Soriano explica a opção pelo Ceará: "Estou prestigiando o pessoal do Nordeste, que sempre foi o que mais me acolheu. É outro povo, mais aberto, que não esconde as coisas".

Patrícia se declara fascinada pelas contradições do personagem. "Ele se coloca como machão, o poderoso garanhão, mas é quase um escravo das mulheres. Isso está nas letras. Em Fujo de Ti, reclama da mulher e termina dizendo mas se quiseres voltar pra mim ainda te quero. Talvez o lado durão seja para esconder a fragilidade", diz.

Do mesmo modo, ela procura compreender as declarações pró-ditadura e censura. "Waldick tem só o quarto ano primário. Quando veio a inteligência e a politização da MPB, acho que ele sofreu alguma humilhação. É uma reação que teve lá atrás e repete até hoje, um mecanismo de defesa." Eis aí de novo, no termo "humilhação", a razão de ser do bolero de amor Eu Não Sou Cachorro, Não, com o qual, de modo explícito ou envergonhado, tantos brasileiros se identificaram.


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waldick soriano fala

"o dvd é ao vivo mesmo, não é montagem. o nosso está sendo considerado como um filme, mais um filme que um disco. já tinha feito um dvd, mas montado. agora, as pessoas que aplaudem notam que não tem nada de falso ali. assistem o cantor, a orquestra, o povo cantando e dançando."

"esse estilo que acham que é o melhor estilo não tem nada a ver com música popular brasileira. é a menos tocada em todos os lugares. é uma meia dúzia de pessoas que gostam de inventar as coisas de maneira errada. eles acham que são outro tipo de gente, musicalmente diferente da gente. não tem nada a ver. criaram essa diferença. chico buarque, que respeito como grande compositor, faz música romântica, popular. eles passaram a fazer música de protesto."

(sobre "eu não sou cachorro, não")
"é não pise em mim, não me maltrate, eu também sou gente. eu morava no rio, na ilha do governador, e criava muito cachorro. o maestro portinho falava que eu precisava fazer uma música sobre cachorro. fui cantar em natal, o avião atrasou, quando cheguei meu empresário abriu os braços, 'que demora! eu não sou cachorro, não!'. o cachorro estava me perseguindo. tinha um piano na casa da mãe dele, meu guitarrista tocava um pouco de piano, pedi um tom, estava com a música na cabeça. se não cantar ela, não tem show. eu gosto de cantar, não sou aquele cantor preguiçoso, não. também dependo do público."

"brasileiro é interessante. se não tem dinheiro, você é classe ralé, mas pode ter dinheiro e cultura nenhuma que passa a ser elite. deixa rolar. hoje me chamam até de frank sinatra."

"hoje o jabá é marca registrada pela mídia."

"o jabá veio das gravadoras também, todo mundo queria ser produtor de gravadora, sem condição. Naquele tempo não era em dinheiro, era em disco. saíam da gravadora com pacote de disco, 'para divulgar' (ri)."

(sobre a saraivada de críticas que recebeu nos anos 70 por "destratar" jesus cristo)
"foi em porto alegre, fui a uma churrascaria com a turma de rádio de lá, todo mundo bebendo, todo mundo falava o que queria. falei que maria madalena foi amante de jesus cristo. todo mundo ficou contra, mas a folha de lá me defendeu. não agredi ninguém, só falei o que pensava. sou católico. temos que ter respeito grande por jesus cristo. era um ser humano igual a nós. mas, para pessoas que não lêem, não se pode falar certas coisas. hoje não falo mais nada, peço a jesus que me ajude. o que sei da vida dele eu li nos livros sagrados, pelo que nos consta a bíblia não mente."

"não gosto de política. a gente acompanha, é obrigado, mas não gosto, não. mudo de canal. acompanhei muito a ditadura, o governo militar. não resta dúvida de que na época nós conhecemos grandes militares. cada um teve sua opinião."

"não tenho nada contra o lula. se for contra ele tem que ser contra os outros que passaram também."

"em feira de santana, um médico amigo meu perguntou de lupicinio rodrigues. foi um grande amigo meu, começamos a fazer uma música antes de ele morrer, que nunca terminei. dizia que 'o espelho ainda vai fazer careta para você'. é o homem falando para a mulher vaidosa, que acha que a beleza nunca acaba."

(a frase "o espelho ainda vai fazer careta para você" não caberia a um homem, também?)
"claro, todas as pessoas têm vaidade, e esquecem da realidade."

"eu vivo sozinho. sou casado, mas estou separado da mulher. ela vive no rio, tenho filhos lá, eu vivo em fortaleza."

"tenho duas filhas no rio, um em vitória, dois filhos em são paulo, uma filha na bahia, um no maranhão. de vez em quando aparece mais um (ri)."

"patrícia (pillar), muito inteligente, trouxe músicos do rio, material técnico, engenheiros. foi uma coisa bonita. vai dizer que desprezou músicos daqui? não, pegamos dois músicos daqui, outros do recife."

"patrícia é fora de série. nos conhecemos numa festa que fizemos em sobral, lá estavam ela e ciro gomes. ciro é meu amigo há muitos anos, ela eu conhecia de novela. no show, estava eu cantando, e ciro dançava com patrícia. ela veio, ficamos amigos. declarou que desde mocinha já era minha fã. os dois cantam todas, lembram de minhas músicas mais do que eu. ciro é muito popular, não é metido a besta, senta no chão, não está nem aí. patrícia não usa maquiagem, é uma moça muito simples. falo que ela caiu do céu, é a filha que não tive."

"estava sem freqüentar os programas do sul. chega um ponto em que vem a preguiça. agora tem que aproveitar a oportunidade, até tenho rejeitado shows, porque cansa demais, não sou mais o mesmo."

"estive em caetité em maio, foi uma beleza, uma festa total. dá saudade, um interiorzinho é bom, você passa uma semana e volta leve."

(peço o endereço para mandar a revista quando for publicada, ele conta que mora no mucuripe, lembro da música homônima de fagner e belchior)
"o bairro é considerado de elite. é bom, meu apartamento fica a 500 metros da praia."


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patrícia pillar fala

"no processo do documentário, eu quis fazer um show nos moldes que ouvia nos lps de certa fase dele, com orquestra e grandes arranjadores, inclusive guerra peixe. dirigi o show, vi o material, achei que era um documento da obra, que aparecia como uma coisa específica."

"foi profundo, fiz um estudo da obra dele com (o compositor) fausto nilo, ouvimos mais de 500 músicas."

(quando pergunto "por que o waldick?")
"por que não o waldick? waldick soriano tem não sido por tantos anos, e como ele tantos outros. mas esse é um pensamento pós. sempre gostei dele, desde criança, no radinho de pilha. fui me ligar de quem era só depois, no programa do chacrinha."

"ele tinha um humor, uma certa galhofa, aquele jeitão americano e ao mesmo tempo do sertão da bahia."

"acho 'tortura de amor' uma das mais bonitas do cancioneiro brasileiro. fui procurar e descobri músicas lindas, para o meu gosto. ele tem muita sensibilidade musical. e me interessa a pessoa, o processo de vida."

"seria mais fácil trazê-lo para o canecão, mas eu queria o encontro com um público que é doido por ele. me interessa o fato de que ele é um cara que está fora do circuito da imprensa, mas tem os shows sempre cheios. quis fazer um encontro, era um cinema com palco pequeno, aumentamos o palco, abrimos uma pista de dança."
(falando da coincidência de seu personagem morar no ceará, ela lembra que a cantora cláudia barroso, ex-mulher de waldick, e que participa do dvd cantando uma faixa, também mora em fortaleza)

"a história é sempre contada sob o ponto de vista dos vencedores. (lembro que waldick é, sob vários aspectos, um "vencedor") sim, é um vencedor total!, ele fala isso. diz que falou que se vencesse na vida nunca mais voltaria à terra natal. eu perguntei se voltou, já sabendo que voltou. 'voltei para arrasar', respondeu."

"tem o depois do sucesso, que é interessante também. ele foi se isolando, foi não se achando. é muito altivo (comento que em geral quem alcança grande sucesso tende a abusar de tal sucesso, também). sim, e como é um cara bruto em certo sentido sofreu com isso. tem uma ingenuidade aí. é um tarzan, como ele diz. ele se expõe, fala coisas que as pessoas às vezes por conveniência não falam. volta como uma fera. (comento como ele foi doce ao telefone, durante a entrevista) ele é um doce. o lado bruto foi para sobreviver. não é mole, o cara é lá de caetité, vi fotos tão comoventes dele lá. foi lavrador. em são paulo, demorou entre gravar e estourar, e enquanto isso foi engraxate, faxineiro, servente de pedreiro. no início foi garimpeiro, é pesadíssimo. é tão bonito, tão cheio de humanidade."

"se tornou uma amizade (comento que waldick disse que ela é a "filha" que ele não teve). são dois anos de convivência. é muito na dele, reservado. só há dois meses falou isso de eu ser como uma filha, fiquei muito comovida. ele se coloca como machão, o poderoso garanhão, mas é quase um escravo das mulheres. isso está nas letras, talvez o lado durão seja para esconder uma fragilidade."

"os fãs, na fila do show, são um pouco como ele mesmo, por isso se identificam tanto, homens e mulheres."

(sobre as frases conservadoras que ele ainda exprime, como aquela em favor da censura)
"o tempo da ditadura era uma coisa cruel, ou você era comunista ou de direita. esse patrulhamento era muito violento. e se você não fosse nem uma coisa ou nem outra? o que observo é ele espremido em ter que ser uma coisa que não conhecia. é cheio de contradições, e isso é que é interessante e me causava curiosidade."

"gosto de música e tal, mas não penso numa carreira. há dois anos produzi um cd da eveline hecker cantando zé miguel wisnik (comento que ela transitou num largo arco, de wisnik a waldick). a gente tem uma riqueza no Brasil, não precisa jogar ninguém fora para o outro existir. viemos da guerra fria, hoje as coisas são mais sutis. não tem que escolher entre rock ou mpb. não tem que ter essa necessidade de se posicionar de uma forma radical, porque hoje a verdade não está numa coisa radical."


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josé milton fala

"tenho um trabalho grande na mpb, mas já fiz muitos álbuns de nelson gonçalves. no caso do waldick, apesar dessas separações que fazem, é um cara que sempre foi amigo da gente. conheço ele desde moleque, vim do recife, ele sempre fez muito sucesso e sempre foi muito verdadeiro. nunca dependeu de grandes esquemas de gravadoras. é de uma honestidade e de uma sinceridade gritante. um grande intérprete de romance, na linha de bienvenido granda. não acho brega."

"trabalhei com ele agora, e uma vez no início dos anos 70. nos encontramos em belém e ele disse 'vamos viajar comigo uns dias'. fui. não sabia tocar guitarra, mas ele me convenceu, foi uma experiência maravilhosa."

(sobre o desprezo -repulsa?- que mídia e mpb costumam devotar aos "cafonas")
"não tenho noção disso, tem muita gente forte da mpb que também está sumida da mídia. ela corre atrás de quem interessa. waldick fez temporada com Xangai. todo mundo adora ele, zeca baleiro, fagner, nana caymmi."

“ele canta muito bem, não tem problema de andamento e afinação. é um cantor de verdade. não deu problema nenhum nas gravações, tomou seu uísque, nós também tomamos. voltou a tocar a sanfoninha que teddy vieira deu a ele, não pegava no instrumento fazia muitos anos. chamei os melhores músicos que temos para o trabalho, todo mundo foi e adorou."