terça-feira, janeiro 22, 2008

quelynah, cindy, leilah

para encerrar mais este ciclo, seguem as entrevistas decupadas com as outras três protagonistas do filme "antônia". a transcrição do encontro com quelynah, de 26 anos, e a jovem cindy mendes, de 19, soa meio acidentada, telegráfica, truncada aqui e ali - até porque o encontro foi tumultuado, incluiu a visita a um projeto social que quelynah apadrinha (ou "amadrinha", como ela diz) em osasco, além de bate-papos informais e trechos malgravados de entrevistas num centro de apoio de idosos (mas repleto de crianças) e no carro no qual as buscamos e levamos de volta.

a entrevista com leilah moreno, de 26 anos, foi telefônica e mais breve, já que ela estava às voltas com gravações globais, de novela "sete pecados" (em que atua como atriz) e do programa "altas horas", de serginho groisman (em que participa da banda de apoio). reunindo fragmentos de umas e de outras, é que se formou o caldo da entrevista na "carta capital", já publicada em tópico mais lá para baixo.

e vamos nós então, do centro à periferia e de volta para o centro (e vice-versa), contraste e movimento.


1
quelynah e cindy mendes

pedro alexandre sanches - "antônia" é uma história sobre a periferia. o que é periferia para vocês, qual é a importância que dão a essa questão?

quelynah - periferia é um lugar longe da cidade. sou da favela. não moro mais lá, mas sou de heliópolis. estou na música desde os 13 anos. tive passagem por igreja, aos 15 ouvi pela primeira vez o hip-hop e me identifiquei. fui finalista do reality show "pop star", do sbt, do qual saiu o grupo rouge. fui backing vocal do alexandre pires por mais de um ano, cantei no disco solo do nasi, do grupo ira!. o trabalho maior foi "antônia", e agora trabalho meu disco solo.

tata amaral foi muito respeitosa com isso, respeitou nosso dialeto, nosso jeito, a cultura hip-hop. e o filme abordou, além do hip-hop, a história da mulher que enfrenta os obstáculos do meio, do machismo e vários outros preconceitos.

cindy mendes - tata amaral trouxe a figura da mulher para a sociedade, e ela procurou dentro do hip-hop, que era um universo que conhecia pouco. ela percebeu que a figura feminina era forte e original no hip-hop. a mulher que, ali, não tem força e originalidade não consegue nem sair do primeiro palquinho, morre ali mesmo. o cenário de "antônia" é uma periferia, mas tata mostrou que lá existem garotas bonitas, que cantam bem...

q - mostrou o talento, não só a violência.

cm - a violência existe, a gente liga a televisão e vê isso o tempo todo. mas cadê a cultura, a parte boa? não tem?

q - o glamour do morro, a favela chique.

cm - hoje em dia se tornou chique falar de periferia. está na moda ser negro e do hip-hop.

pas - "antônia" é um filme feminista? e vocês, são feministas?

cm - será que sou? eu não sei...

q - eu sou muito feminista. dizem que todas as feministas são feias, eu sou bonitinha [risos].

cm - comecei muito nova, contra a vontade da família.
decido tanto pela minha vida, às vezes eu até queria ter um pouco mais de apoio, um pouco mais de opinião. mas por fazer tudo tão sozinha, por aderir a um estilo musical que é tão masculino, acho que a gente acaba criando essa autodefesa feminista.

q - o meio do hip-hop é muito machista. a gente bate de frente com eles com talento e inteligência, em último caso levanta a mão se precisar. porque os manos são tristes, viu?

pas - eles ficam enciumados com o hip-hop feminino de vocês?

q - ah, ficam. eles têm um jeito particular de testar, saber se você é de verdade, como a gente diz. já ouvi falarem "você não pode ficar no mesmo camarim com a gente", dj chutar o vaso de flor e dizer "agora a gente vai trabalhar de verdade".

cm - às vezes me dizem "ah, depois que conversei com você, agora sim". Como assim "agora sim"? agora sim o quê? muitas vezes os próprios integrantes do hip-hop não procuram se informar.

q - e não são só eles. um repórter na bahia me perguntou se sofro muito preconceito no hip-hop por ser branca. olha o tamanho do meu nariz, olha a minha boca! eu sou negra, acho que é porque estava com o cabelo loiro na época. um preconceito puxa o outro, né?

não se tem um mercado black no brasil, temos que fazer esse mercado. falta mulher no hip-hop. a mulher, quando vai na tevê, tem medo de falar, ou muda o discurso para se dar bem. não, vamos dar a cara para bater.

cm - por mais que a televisão tenha aberto espaço para atrizes negras, ainda é tudo muito rotulado. para uma negra, é difícil encontrar um papel fora do da empregada ou da escrava dentro de uma novela.
agora é que está começando a surgir, mas eles ainda não sabem onde encaixar o negro.

pas - em que "antônia" transformou a vida de vocês?

q - me tornou mais conhecida, me trouxe mais reconhecimento e credibilidade. mas o hip-hop brasileiro ainda engatinha.

cm - foi um momento maravilhoso da minha vida, eu queria ser cantora e estava fazendo backing em grupos masculinos. "antônia" me trouxe esse espaço, como cantora e como atriz de uma vez só. depois do filme é que resolvi e fui estudar música mesmo. era um sonho, agora é realidade. se a gente conseguiu fazer um seriado, por que não vai conseguir criar um mercado? muitas meninas pararam por falta de apoio, de oportunidade. faltam meninas, mas faltam meninas qualificadas.

q - o que falta é determinação, e essa é a mensagem de "antônia". a gente tinha um discurso muito estranho, de ficar só sofrendo, sofrendo, sofrendo, reclamando. [alô, moças do samba de rainha!]

cm - falta um pouco de gás, de entender onde está e levar mais a sério. se quer cantar, tem que estudar.

q - mas a gente ainda está aprendendo. a gente tem que estar sempre se lapidando. antes do filme, chegou uma hora em que eu estava cansada, pensava: "será que não sou cantora?". meu sonho era gravar um disco onde eu pudesse ficar livre. mandei para as gravadoras, ninguém apostava, "isso não é vendável", ou seja, "você não é manipulável". a universal tinha o plano de fazer um trio em estilo beyoncé, com elas três. não me convidaram para essa festa pobre [ri].

cm - a universal comprou as masters da gente, a gravadora teve participação na produção do disco da leilah moreno, no meu também. no da negra li principalmente. o que eles fizeram foi lançar nossos discos. não havia um projeto de carreira, mas o que saía nos jornais era "o grande projeto de carreira das divas do r'n'b". isso é papo para causar.

pas - então quelynah passou ao largo disso? por um lado deve ter sido bom, não?

q - acredito que sim. sempre tive um sonho de ir para uma gravadora, mas depois fui vendo que é uma bobeira, que hoje selo independente deixa você livre para o trabalho, para ser quem você é.

cm - vamos lembrar da paula lima, o que aconteceu com ela quando saiu do funk como le gusta e foi para a universal. o que é que deu?

pas - o que é que deu?

cm - o que é que deu? caímos na mesma, eu, leilah... no meu disco fui muito original, fui muito eu. não posso dizer que a gravadora influiu no estilo, isso não. mas aquele lance, né?, você está na universal, e aí? quem paga os shows, quem leva a sua banda? universal só está lá no selinho do disco.

pas - mas inclusive porque as gravadoras estão falidas.

cm - então, cara, valeu...

q - fizeram uma coisa com leilah que achei absurda, saiu uma foto enorme no jornal e em cima o título, "passo a passo para se tornar uma beyoncé". isso não pode acontecer. [uma das empresárias de quelynah, presente à entrevista, comenta que isso não é responsabilidade da artista, mas sim do jornal que direcionou o assunto de tal forma.]

fui casada com [pioneiro do rap brasileiro] thaíde quase dez anos, um dos precursores do hip-hop. ele me ensinou muita coisa, me ensinou o que é hip-hop. "antônia" veio só somar à história, para que eu pudesse continuar minha caminhada. (...) é difícil, o hip-hop no brasil é um manicômio.

pas - por que? é muito desorganizado?

q - hip-hop é uma cultura que fala de respeito, de auto-ajuda. por dentro, nem sempre existe isso de verdade. aqui não existe isso de um ajudar o outro, de aparecer no clipe do outro, como acontece lá fora. nunca ninguém ligou para o thaíde para dizer "como está você?", "como está o trabalho?". aqui não existe isso.

cm - aqui ninguém cumprimenta ninguém.

q - fui no prêmio hutuz [organizado pela cufa - central única das favelas - no rio de janeiro], quando tem uma roda de mano e chega uma mina no meio, eles escapam de você. uma vez perguntei "você tem medo de mulher?". está todo mundo no mesmo barco, porque não se cumprimenta?

pas - e como faz para não ser assim? é possível reverter isso?

q - eu acredito. acredito que o hip-hop é a música do futuro. hip-hop para presidente, já. "antônia" já faz parte da história do hip-hop no Brasil.

pas - como a comunidade hip-hop reagiu ao filme?

q - muito bem. é o público que mais assistiu. todo mundo esperava, ajudou a gente a se impor um pouco mais.

pas - os racionais apoiaram e incentivaram vocês?

q - muito, para caramba. brincam, "quelynah é nossa mc".
assistiram, se identificaram, mano brown veio falar. me ajudou a ter um pouco mais de respeito dentro do hip-hop. (...) eu tenho um sonho de cantar no vmb [da mtv] e dizer assim: "alô, gravadoras, muito obrigada por não terem apostado em mim".

cm - eu também, tenho tanta vontade de cantar naquela droga [ri].

(...) [a conversa adentra por questões de identidade do hip-hop nacional.]

q - meu disco tem sample do chico buarque.

cm - o hip-hop está sendo muito confundido com essas culturas que não têm muita eternização, como o funk. é uma cultura do morro e tudo mais, mas tati quebra bBarraco, por exemplo, daqui a dez anos vai ser a garota que fez músicas, falou sobre o sexo explícito, ganhou dinheiro, nunca vai ser lembrada como uma elis regina. o hip-hip tem que ser visto como um movimento musical, elegante, cultural. as pessoas confundem hip-hop com funk, isso dá medo.

q - [discordando] o público do funk é o público do hip-hop.

(...) [o termo "divas", que as meninas repetem algumas vezes, desvia a conversa, numa seqüência que não consigo decupar ou identificar ou lembrar direito o contexto.]

q - não somos divas, nós somos dívidas. para ser diva tem caminhada, não é só a diana ross.

cm - hoje em dia tem um novo conceito, diva é aquela que é gostosa. e até mesmo diana ross foi um produto na época, lembrando bem.

q - mas cantava, né? o negócio não é cantar mais, é ter um conjunto de coisas, carisma, é outra história.

pas - o funk é a música eletrônica brasileira?

q - é uma história muito peculiar, né? gosto muito da batida do funk.

cm - a batida é maravilhosa, mas, gente...

q - fico meio encabulada com as letras, mas gosto daqueles de afirmação, "é som de preto, de favelado/ mas quando toca ninguém fica parado". mr. catra é um figura.

pas - o funk, assim como o hip-hop, mudou a vida de muita gente da periferia, não?

q - o hip-hop está meio assustado com a chegada do funk a são paulo. até chutei a bola para o brown, vai acabar mudando os sets de balada. vai acabar tocando só funk e meia hora de black. mas, não sei, o hip-hop não está de passagem.

pas - catra é rapper e funkeiro, transita entre as duas coisas. não tem uma coisa de o pessoal do rio achar que o rap de São Paulo só fala de violência, enquanto os de são paulo acham que o funk carioca só fala de sexo, e nenhuma das duas partes aceita muito a outra?

q - a gente precisa dessa levada do rap, que fala diretamente com os políticos, vai na ferida, cutuca, como precisa da outra também. por isso eu defendo o r'n'b, porque mistura tudo isso, prega coisas boas. tem gente que não entende e não aceita o linguajar do rap.

pas - e mesmo nesse sentido "antônia" foi importante por ser um passo de superação no discurso da violência, aqui em são paulo.

cm - mas fico preocupada, porque a música brasileira é riquíssima, e eu encaixo o hip-hop dentro da mpb. nós não somos brasileiras? não cantamos em português? se o funk é encaixado dentro da mpb, ele está acabando com a mpb.

pas - mas, cindy, não tem gente que acha o mesmo do rap?

cm - não, não, a gente não pode dizer que o rap dos racionais não contribuiu para a mpb, desculpa.

pas - a música de vocês faz protesto, quer fazer protesto?

q - faz. eu procuro fazer músicas que tragam informação.
trago no pacote a sensualidade, que eu sabia que era uma coisa que batia de frente. fiquei preocupada com a opinião do pessoal do hip-hop ao trazer o r'n'b para cá. as pessoas tacham muito você pelo jeito de se vestir. sempre cantei de salto, minissaia, top. negra li foi a primeira mulher que vi que fez isso, num meio que se vestia como homem. como bati de frente com isso? mostrando que vim para trabalhar, não para brincar.

pas - inclusive assumindo a sensualidade, não?

q - sim, sou mulher. fui fazer uma palestra no rio grande do sul, falaram "é sensual demais o discurso dela". cheguei lá, fui procurar logo a pessoa que tinha falado isso, "desculpa, mas faz parte do pacote". tenho que segurar no peito, mostrar que também sei conversar, que sei o que estou falando e fazendo. também falo da rua, das minhas vivências em heliópolis. no meu segundo disco não quero deixar de fazer r'n'b, mas quero fazer uma coisa muito mais política. na minha música posso dizer que tem informação.

cm - freestyle [o estilo improvisado em que cindy se especializa] é improviso, comecei a fazer isso para ter um diferencial, que eu não agüentava mais fazer refrão. nas minhas letras procuro falar de protesto sem falar com as palavras nuas e cruas.

q - eu falo sobre auto-estima, que é uma coisa de que a gente precisa muito, muito, muito. e de perspectiva de vida.

pas - o hip-hop masculino não mexe muito com sexo, é durão, não é?

q - é, mas agora estão mudando o discurso. tive um marido rapper, que sempre me cobrou que eu falasse outras coisas, "vocês só falam disso?". hoje ele está aí fazendo a mesma coisa. brinco com eles, "e aí, vocês vão falar disso também?".

pas - tomara, não? porque fica como se a mulher fosse só sensual e o homem só fizesse protesto. não seria possível misturar também?

[as respostas não ficaram audíveis..., de fato foi uma sessão acidentada
- embora prazerosa e esclarecedora.
]


2
leilah moreno

pas - pode contar um pouco da sua história?

leilah moreno - nasci em são josé dos campos, venho de uma família musical. cresci cantando no coral da minha família, e eles tinham um grupo de samba também, conhecido na região, o última hora. fazia dublagens de michael jackson, e quando tinha 9 anos entrei na banda da minha mãe, até os 12. aos 12 montei uma banda de rock de garagem e comecei a fazer teatro. com 14, comecei a estudar música, a me profissionalizar, entrei numa banda profissional de baile, que fazia formaturas. fiquei até mudar para são paulo, há sete anos.

pas - você era uma menina de periferia?

lm - na verdade, não. como vim do interior, em são josé dos campos praticamente não tem periferia. mas venho de uma família humilde. na verdade conheci periferias, visitei favelas e conheci essa realidade quando fui fazer o "antônia" mesmo. foi um aprendizado muito grande. tive mais uma vida interiorana, de roça, que de periferia. vim de uma área rural.

pas - é outro tipo de periferia, não?

lm - é, é bem diferente, uma coisa mais caseira. sempre digo que tive uma infância bem mineira. mMas vim para são paulo, já estudava aqui. fazia a universidade livre de música, no bom retiro, e no último ano vim para cá. acabei participando do programa do raul gil, fiquei dois anos contratada pela record. saí e gravei dois cds, um pela warner e outro pela trama. ano passado lancei o último, pela universal.

pas - se formou na ulm?

lm - não, faltando quatro meses para me formar eu parei, porque não tinha grana para pegar ônibus todos os dias. vinha todos os dias para são paulo de ônibus. tive que parar, tranquei. hoje em dia já não penso em voltar a fazer o mesmo curso, porque acho que aprendei muito mais na vida, à vera, que na faculdade. mas tenho vontade de fazer faculdade de cinema. vontade, não, eu vou fazer.

em são paulo, comecei a fazer baladas, eu e dj. foi a forma que achei de sobreviver aqui, porque não tinha mais banda de baile, todas já tinham cantor. eu não queria fazer barzinho, que é meio sacrificante. em balada é diferente, canto com o dj, levava microfone e cantava na base do dj. acabou virando uma supermoda, comecei a fazer todas as melhores baladas. fiquei seis anos na lótus, cantei na disco, na pacha, na ébano, na mood, tantas... cantei em quase todas. a produção do filme me viu cantando numa dessas baladas e me chamou para fazer o teste.

pas - hoje você está gravando novela?

lm - isso, faço "sete pecados" até janeiro e depois faço um longa-metragem, "condomínio jaqueline", do roberto moreira. termino, gravo o novo cd pela universal e em maio faço outra longa, ainda sem nome definido.

pas - atriz e cantora ao mesmo tempo?

lm - é, e produtora. abri uma produtora de clipes para bandas e artistas independentes, chama im, independent movie. é uma sociedade só de gente supernova que ainda faz faculdade de cinema e publicidade, são quatro sócios, pessoas que eu já conhecia. ajudo a dirigir, produzo, faço publicidade. é um universo que adoro. já dirigi quatro clipes, da graça cunha, que canta comigo no "altas horas", um do rappin’ hood com jair rodrigues e de uma banda chamada na pegada. o próximo é de um grupo de rap, anjos do rap, e vou produzir o do thaíde.

pas - em música, você pretende seguir na linha de black music, ou pode variar?

lm - varia, porque na verdade nunca fui cantora de rap. fui começar a fazer e conheci melhor por causa de "antônia". sou intérprete, sempre cantei de tudo nas bandas de baile e na noite. nas baladas fazia house, black, r’n’b e algumas coisas nacionais. gosto muito desse universo. me julgo mais pop que rap.

pas - você é contratada da globo?

lm - é, sou contratada como funcionária do "altas horas", que faço há quase três anos, e como atriz pela globo do rio.

pas - em que "antônia" mudou sua vida?

lm - descobri com ele que posso fazer muita coisa e que é aqui em são paulo mesmo que tenho que ficar. eu tinha dúvidas. morava sozinha, era mais difícil me situar. depois do filme tive coragem de trazer minha mãe e minha família para morar comigo. estou morando numa casa bacana, antes eu morava de aluguel e tinha medo de trazer minha família. hoje sei que posso continuar e tenho um trabalho bacana para fazer, então não tenho mais o medo que tinha, não tenho medo nenhum. o filme veio para abrir uma porta e mostrar outros horizontes de que estou colhendo os frutos agora.

pas - como você explicou, o hip-hop e a questão da periferia não são exatamente sua realidade. mais indiretamente, ele fala também sobre a questão feminina, sobre racismo, homofobia, preconceito. como você encara essas coisas todas após o filme?

lm - na questão de racismo, nunca fui ligada. sou miscigenada, filha de negra com branco. não defendo nada, não sou militante em relação a isso. respeito tudo e todo mundo e todas as opiniões. sempre pensei a respeito disso, mas acho que o filme mostrou de uma maneira bacana, e para mim não mudou nada.

a questão de machismo, acho muito importante. foi uma sacada muito genial da tata amaral. é um ótimo ponto para a gente pensar. mas minha opinião não mudou nada.

sobre a periferia, acho que só agregou. para quem não conhece, fica uma visão muito diferente do que é a realidade. pensam que é só violência. não é. é um lugar totalmente diferente do que eu achava que fosse, tem uma poesia natural.

sobre o hip-hop, já sou bem próxima, praticamente desde quando nasci. na minha família, a gente ouve desde sempre, quando comecei a mamar já estava ouvindo. sempre fui ligada, não que vá ficar mais ligada, acho que dificilmente agora eu vá me desligar dele.

sobre homofobia, não tenho preconceito nenhum, muito pelo contrário. quando fiquei sabendo que meu irmão no filme seria homossexual, achei o máximo, uma supersacada. queria muito fazer o papel também por isso.

pas - seu personagem é muito forte, também, pela questão de ela passar pela experiência da prisão.

lm - é, gostei muito por isso também. achei bacana de mostrar a realidade da cadeia, também porque eu já conhecia. já trabalhei naquele presídio em que fiz a cena. cantava nas festas de fim de ano, dia das mães, que eles faziam para as detentas. por cinco anos cantei nas festas, as detentas já me conheciam. era muito bacana, elas me respeitavam.

pas - como era a experiência de cantar lá?

lm - era muito diferente, no sentido de que você tem que ter muito cuidado com o que fala. num show normal você fala "até a próxima, galera". ali, não, ninguém quer estar ali no próximo show. nos primeiros shows acabei ficando um pouco mais em silêncio para poder aprender como falar com elas. mas quando você começa a sacar é muito bacana, porque toda palavra de esperança que você dá para elas, de se regenerar, você vê o brilho no olho delas. você passa confiança, e elas guardam isso durante muito tempo, porque não têm muito do que se lembrar ali dentro, não têm muita experiência boa. então qualquer showzinho era uma coisa, mandavam cartas.

pas - emocionalmente deve ser uma experiência forte, não?

lm - muito, muito difícil. para fazer a cena, me deixaram trancada na cela com uma detenta durante muito tempo. depois a detenta saiu e eu fiquei horas sozinha, sem saber que hora eu ia gravar. perdi a noção do tempo, na hora que falaram "ação" saí da cela como se estivesse presa mesmo. e a cena ficou bacana, elas vão me visitar, eu abraço, a gente chora.

pas - é uma das cenas mais bonitas do filme. você disse que o racismo não faz parte de sua realidade, mas nem como vítima de discriminação?

lm - não me sinto porque não dou importância para isso. tudo que vai me fazer mal eu afasto de mim e procuro não processar. racismo é uma coisa que quase não falo sobre, procuro estar sempre colocar a meu favor, de modo positivo para mim.

pas - mas ele existe ao redor, dá para sentir?

lm - é... acho que de repente já senti mais preconceito por classe social. o racial foi o que menos falou comigo.

pas - como é o social?

lm - digamos que você vá a uma festa de gente muito, muito rica, milionária, e você não está vestido adequadamente, e sente esse tipo de preconceito, as pessoas olhando. mas isso foi há muito tempo. depois que fiquei mais adulta e soube me portar e a conversar com as pessoas de igual para igual, elas começam a te tratar de igual para igual.