quinta-feira, janeiro 24, 2008

a "sombra" do r...e...i...

esta saiu na "carta capital" 478, de 16 de janeiro de 2008.

boa praça pra caramba, o sujeito...


A SOMBRA DO "REI"
"Roberto Carlos não é o meu ídolo", diz Eduardo Lages, maestro que há 29 anos dirige a orquestra do cantor

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

É quase irreconhecível o homem que chega de calça jeans e camisa de botão de veraneio. Quem o vê nos ternos brancos, nas gravatas berrantes, no cabelo acaju e na postura pomposa que costuma usar na regência dos shows de Roberto Carlos não imagina que o maestro Eduardo Lages possa usar outro tipo de figurino ou se movimentar por outro tipo de cenário.

"Às vezes fico aborrecido quando saio, 'pô, ninguém vai me reconhecer hoje?'. Mas, de chinelo, bermudão, no supermercado, como vão me reconhecer?", comenta, brincalhão, num hotel no Brooklin paulistano, onde se hospeda numa segunda-feira de dezembro em que participará do programa de Hebe Camargo. Escudeiro iluminado e eclipsado pela popularidade do "rei", ele afirma que tem o privilégio de poder desfrutar simultaneamente do melhor da fama e do melhor do anonimato.

Lages trabalha à sombra de Roberto Carlos há quase três décadas, desde 1979, e ultimamente tem tentado deslanchar uma carreira própria como pianista e orquestrador. Desde 2005, lançou três discos solo consecutivos pela Som Livre, a gravadora da Rede Globo, da qual era funcionário fixo antes de se alistar na trupe do cantor mais popular do País. Daqui a poucas horas, apresentará à platéia de Hebe o resultado do recém-lançado CD e DVD Com Amor, que gravou ao vivo no Teatro Municipal da cidade onde nasceu há 60 anos, Niterói (RJ).

Não raro interpretado como um possível bode expiatório por trás do ambiente burocrático e aparentemente estático que envolve há décadas a aura de Roberto Carlos, Eduardo Lages se autodefine como um sujeito "muito normal". "Sempre fui uma pessoa feliz, bem-resolvida, filho de classe média, de médico com professora. Sempre tive muita sorte e oportunidades, meu mérito foi saber aproveitá-las na medida do possível", afirma, com gentileza.

Responde de viés sobre se a firmeza profissional de RC em nunca querer mudar corresponde a uma característica dele, o homem atrás dos arranjos estáveis e imóveis de Emoções, Detalhes, Jesus Cristo... "Às vezes é frustrante", diz, duas vezes seguidas. "Mas estou sempre querendo (hesita) impor o meu ponto de vista. Não impor, mas apresentar para ele. Claro, na maioria das vezes prevalece o que ele acha, porque ele é a estrela, o grande artista. Estou ali para atendê-lo."

Ao se referir ao chefe, pronuncia de preferência o nome duplo, na íntegra, sem afetar maiores intimidades. E conclui o raciocínio: "Procuro levar para Roberto Carlos as coisas que busco aqui fora, num mundo que não é o dele. Ele sabe que estou falando do coração quando digo 'que bonito isso que você fez, Roberto', e não por ele ser o rei".

Assim como sonha gravar um CD com "grandes clássicos da MPB", afirma que pediu "pelo menos umas 20 vezes" para RC gravar a bossa Eu Sei Que Vou Te Amar. Diz que lhe ocorreu pela primeira vez, durante a entrevista, a idéia de querer ouvir Canto Triste, de Edu Lobo, na voz do parceiro.

No disco de clássicos de sonhos, promete enfileirar duas, três ou cinco composições de Edu, Tom Jobim, Ivan Lins, Ary Barroso, Lupicinio Rodrigues, Dolores Duran. "Meus ídolos são em primeiro lugar Luizinho Eça (pausa), em segundo Tom Jobim (pausa), em terceiro Ivan Lins (pausa), em quarto Ary Barroso e em quinto Elis Regina. São esses".

Roberto é hors-concours, ou não entra na lista? "Meus ídolos são esses aí. Roberto Carlos não é meu ídolo musical, não." E torna a sentença mais completa, noutro momento, ao ser instado a refletir sobre que qualidades o cantor viu nele para construir parceria tão longeva: "Talvez eu não seja o ídolo de Roberto Carlos, musicalmente, assim como ele não é o meu. Não sou nenhum fenômeno, mas me empenho, sou fiel, dedicado, atendo ao que ele espera".

De fato, Eduardo Lages não é nenhum fenômeno, mas tem presença extensa, e bem anterior à coligação com o ex-rei do iê-iê-iê ("nunca fui da jovem guarda na minha vida"). Ri ao lembrar o início: "Tocava órgão na igreja católica de dia e em puteiro à noite. Brinco que ia do céu ao inferno em dez minutos, de ônibus. Mas nos puteiros e cabarés se apresentavam os grandes artistas brasileiros. Não existiam os espaços de hoje, Credicard Hall, Olympia".

Pouco anos mais novo que a impositiva geração de Roberto, Chico, Caetano, Gil, Elis e Edu, aterrissou no ambiente dos festivais (e até venceu alguns) quando a curva já era descendente. "Cheguei a fazer música de protesto, mas muito mais por ser algo que estava na onda, e não porque estava engajado. Era muito garoto."

Credita o desinteresse à paixão que nutre sempre pela música, nunca pelas letras das canções. "Tenho 19 músicas gravadas pelo Roberto Carlos. Não sei a letra de nenhuma. Nenhuma." Não cita que são canções que não tiveram maior expressão popular, mas usa o parceiro como escudo para justificar, divertido, a má memória: "Nem ele sabe as letras que fez, canta Detalhes lendo".

Em 1970, o músico marcou presença como arranjador e compositor do então rebelde grupo carioca MAU, o Movimento Artístico Universitário, de onde despontaram Ivan Lins, Gonzaguinha e Aldir Blanc. Com Elis, o grupo foi logo cooptado pela Globo, que lançou o turbulento programa musical Som Livre Exportação. Data daí a incorporação de Lages ao santuário conservador global, onde atuou como arranjador "de tudo", do Chacrinha ao Fantástico. Foi como maestro do Globo de Ouro que se aproximou de RC, líder quase cativo das paradas semanais de sucessos (e até hoje funcionário global).

Antes mesmo de sacramentar a união, estreitava laços com o imaginário mais popular, alheio às muralhas artificiais erguidas nos anos 70 para separar a "MPB" dos "cafonas". Trabalhou com Jorge Ben, Benito di Paula, Moacir Franco, mais tarde com Nelson Gonçalves, Chitãozinho & Xororó. "Não tenho preferência musical nenhuma. Nenhuma. Prefiro o que bate aqui e me emociona, pode ser sinfonia de Beethoven ou samba de pagodeiros", resume o maestro popular.

Lages movimentou o projeto Com Amor num ano adverso para RC, um dos poucos em que não lançou o sagrado CD natalino e em que esteve mais presente no noticiário por obter de um juiz-fã a interdição e o recolhimento do livro Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo César de Araújo. O maestro pisa em ovos ao opinar sobre o assunto.

"Dizer que ele censurou acho mentira, Roberto Carlos não está com essa bola toda. Foi à Justiça brigar pelos direitos que achava que tinha, eu faria o mesmo." Não despista o interesse pelo livro: "Corri para ler a parte que falava de mim, que aliás é bem pouco. Nada que o cara escreveu ali é mentira". E conclui, algo constrangido: "Sou contra a censura".

Um derradeiro tema vem à tona. Aos 60 anos, o que pensa sobre política o ex-garoto que acompanhou a boiada global e o símbolo de RC como o brasileiro típico que não costuma pronunciar com todas as letras a palavra "não"?

"O Brasil economicamente vai bem, né? Mas estou desesperado com a falta de educação das pessoas, do povo. Não é uma coisa popular, mas tenho que dizer, porque é minha vida: o que a gente passa em aeroporto hoje... No Galeão não tem ar condicionado, nem elevador". É o máximo de queixa "ideológica" a que se permite, antes de partir ao encontro de Hebe.