quarta-feira, março 19, 2008

um clube (semi-)invisível

da "carta capital" 486, de 12 de março de 2008.


O CLUBE IMAGINÁRIO
Repressão, criação coletiva, drogas e sombras num disco liderado por Milton Nascimento em 1972, e agora restaurado


Eu já estou com o pé nessa estrada/ qualquer dia a gente se vê/ sei que nada será como antes/ amanhã. Nas ruas históricas da Diamantina do início dos anos 70, um encontro fortuito entre mineiros fez se cruzarem de repente os caminhos do ex-presidente Juscelino Kubitschek, por um lado, e dos "Beatles brasileiros", por outro. Iam por rotas opostas e, ainda assim, convergentes.

JK vivia exilado na terra natal, por obra da corporação militar que seqüestrara o Brasil desde 1964. Milton Nascimento e os então anônimos Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges se dirigiam sem bússola rumo a um estrelato conturbado, que associaria para sempre evidência e clandestinidade, êxito e exílio. Na cidade das serestas, os jovens hippies mostraram a JK Beco do Mota, canção inspirada na ira do bispo contra o beco local de prostituição, que ocupava quase o mesmo lugar no espaço que a igreja matriz.

Diamantina é o Beco do Mota/ Minas é o Beco do Mota/ Brasil é o Beco do Mota/ viva meu país!, cantaram para o inventor de Brasília. "Vocês são de morte", riu Juscelino, que morreria em agosto de 1976, na rodovia que liga São Paulo e Rio. Os músicos forjavam o nascedouro do álbum Clube da Esquina, um dos testemunhos mais tensos e soturnos da música brasileira sobre aquele período. "Tinha um lado sombrio, mas era melhor fazer aquilo que ficar reclamando", diz hoje Brant, mineiro de Poços de Caldas (*) e autor de letras sinuosas como as de San Vicente e Ao Que Vai Nascer.

Agrupado numa caixa com o subseqüente Clube da Esquina 2 (de 1978), o disco de 1972 é reeditado agora por iniciativa de Milton, que ouviu a minuciosa restauração de Elis & Tom (1974) pela Trama e quis o mesmo para si. Convocou João Marcello Bôscoli, diretor da gravadora e filho de Elis Regina, para repetir o trabalho feito com o disco da mãe.

Não havia fita máster do Clube 1, que foi gravado em apenas dois canais, um para orquestra e todos os instrumentos, outro para a voz de Milton. O trabalho, na comparação de Bôscoli, foi de restaurar sem remover a tinta da Mona Lisa. A multinacional EMI, detentora dos originais da extinta Odeon, pagou à brasileira Trama cerca de 100 mil reais pelo trabalho, que substitui a remasterização anterior, de 1994, por técnicos do estúdio inglês Abbey Road, onde os Beatles gravavam. "Minha voz ficou a voz que acho que tenho", avalia Milton, em sua casa na Barra da Tijuca.

Ele é elemento nuclear e ponto de fuga de um "clube" hipotético que se formava à época e definiria o que ficaria intrinsecamente rotulado como "o som de Minas". O próprio Milton, ironicamente, não era mineiro, mas carioca. A mãe, Maria do Carmo, morreu de tuberculose, e aos 2 anos Milton ficou aos cuidados da família da qual a mãe era empregada doméstica. Mudou-se com eles para Três Pontas, no Sul de Minas.

Vizinho e amigo de infância era o três-pontano Wagner Tiso, futuro arranjador de Clube da Esquina. "Eu trazia a influência do Leste Europeu, uma ciganice", diz Tiso, que começara carreira musical imbuído de jazz e bossa nova, mas na virada dos anos 70 misturava rock e jazz no feroz grupo Som Imaginário. "Porto seguro" de Milton (nas palavras de Tiso) entre 1970 e 1973, o conjunto congregava mineiros (ele e Tavito) e cariocas (Zé Rodrix, Fredera, Robertinho Silva, Luiz Alves).

A "feira moderna" do Som Imaginário se somava ao sangue antigo que Milton trazia nas veias desde a infância: "No rádio se ouvia na época tanto tango quanto música portuguesa, francesa, italiana, Édith Piaf e Angela Maria, bolero, música cubana, espanhola, tudo".

Por que vocês não sabem do lixo ocidental?, perguntava o cantor no disco de 1970, numa canção chamada Para Lennon e McCartney, que desembocava em manifesto: Eu sou da América do Sul/ eu sei, vocês não vão saber/ mas agora sou cowboy/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou Minas Gerais.

Os autores, com Milton (**), eram os irmãos Márcio e Lô Borges, de família belo-horizontina numerosa que desde os anos 60 incorporara à casa o agregado Milton, o "Bituca". Outros freqüentadores eram Nelson Ned, depois ídolo romântico, e Martinha, futuro "Queijinho de Minas" da Jovem Guarda.

Clube da Esquina fora, primeiro, uma letra dos dois irmãos, em referência à rua em que os Borges foram morar, no bairro belo-horizontino de Santa Tereza. "Não tinha nada naquela esquina, era um sobrado velho parecendo a Mooca, em São Paulo", evoca Márcio. "Não tem atrativo, é uma esquina de bairro pouco mais que proletário. O nome das ruas é que era legal, Paraisópolis com Divinópolis."

Ele relata a decepção posterior de jazzistas internacionais, como Pat Metheny e Lyle Mays, que, admiradores do som de Minas e de Milton, vinham a Belo Horizonte e faziam questão de conhecer a esquina e o clube. "Lyle Mays chegou, botou a mão na testa e disse 'my God'. Não viu nada, né? De onde esses caras tiraram essa música, tiraram do ar? Estava crente que era um ambiente que fornecia algo, mas foi do ar mesmo", sintetiza a substância etérea que se espalhou por todo canto do mundo.

Não havia clube, sede, nada. Um clube imaginário vinha se formar ao redor de um mineiro (e/ou carioca) imaginário que produzia um som imaginário, intrincado, mestiço. O nome designava então a turma de amigos e vizinhos (não-músicos) de Lô, e só. Aos 19, ele estrearia em disco como co-autor, o único nome creditado abaixo do de Milton na contracapa do essencialmente coletivo Clube da Esquina. Ali, seria cantor e compositor das melodias de Tudo Que Você Podia Ser, Um Girassol da Cor dos Seus Cabelos, Paisagem da Janela.

"Para mim, a grande originalidade do disco é o contraponto das músicas do Milton, ligadas à africanidade, ao samba, à bossa nova, com as minhas, que tinham uma postura mais rock, mais balada, mais Beatles", reavalia Lô.

Ele lembra que, temeroso de enfrentar um time compacto de músicos ligados ao jazz, propôs levar consigo outro jovem roqueiro, Beto Guedes. Mineiro de sotaque baiano de Montes Claros, norte do estado, ele cantara com Lô, aos 14 anos, no programa televisivo local Petilândia, num grupo chamado The Beavers, os castores.

A vinculação que se fez não era só via "beatlemania", diz Beto. "Os Beatles são de águas diferentes, outra cultura. Criança escuta muito o que o pai escuta, eu ouvi choro, samba-canção, marchinha. Mais pra frente, Beatles, Stones, Who, Led Zeppelin, Genesis. E Liszt, Wagner." Gostava menos de bossa nova que de iê-iê-iê.

Para se mudar para o Rio, Lô teve de dobrar a mãe. E o Exército. Rapaz de 17 anos, pediu dispensa sob o argumento de que fora convidado a gravar com Milton Nascimento no Rio. "O capitão me desancou: 'Você não vai servir porque o Exército não quer gente da sua espécie. Seus comunistas de merda, artistas de merda. Diga a seus amigos que o mesmo tanto que eles não gostam da gente nós também não gostamos de vocês'. Eu era apenas um garoto que amava os Beatles, os Rolling Stones e a Jovem Guarda."

Milton conta que ficava "danado" com duas características (negativas) atribuídas a ele desde que despontou num festival de 1967 com Travessia. "Uma era que minha música não era brasileira, porque não era samba, e mineiro não sabia fazer samba. A segunda era que a música era muito difícil, o povo não ia entender."

Tiso constata um paradoxo: "Muitos sambistas cariocas nasceram em Minas. Ataulfo Alves, Joubert de Carvalho, Geraldo Pereira, Ary Barroso". Todos mineiros. Mas todos, de fato, refutados pelo som rebuscado e repleto de alçapões da nova leva mineira, que agrupava ainda, no Clube 1, Toninho Horta e Nelson Angelo.

A relação com a imprensa, por sinal, era de guerra tácita, de parte a parte. "O primeiro Clube foi massacrado", diz Márcio. "Após 20 anos, aparece no Jornal do Brasil: 'O Sgt. Peppers brasileiro completa 20 anos'. Gracinha da imprensa, né?" Para a Folha de S.Paulo, em 12 de novembro de 1972, as músicas de Milton "só se transformaram em sucesso na voz de outros intérpretes".

"A gente foi bem perseguido. Isso não consta dos livros, da história, mas teve muito", diz Milton, algo misteriosamente. "Para suportar o que acontecia, só fazendo muita música, tomando muita birita e muita droga. Não cheguei a ver ninguém careta nas gravações", evoca Lô, que pôs o pé na estrada e se afastou por seis anos após um álbum-solo feito a toque de caixa, ainda em 1972, o difícil e hoje cultuado "disco do tênis". "O show biz me apavorou. Tive anorexia, estava um palito, só queria saber de droga e loucura."

Na estréia do show do Clube, Milton entrou embriagado no palco e desmaiou antes de começar a cantar. A guerra interior mitigava a relação com produtores de shows. "Todos os lugares no Rio e em São Paulo se fecharam para nós. Aqui todo mundo falava mal, mas eu ia a Belém ou a uma cidadezinha fazer show para os estudantes e 10 mil pessoas cantavam em coro." O exílio dentro de casa extravasava pelos interiores, um elo de sociedade secreta se formava entre o "clube" e estratos também marginalizados de público.

Era tempo de desbunde, lisergia e tortura nos porões, mas talvez houvesse mais. Em parte integrado ao black power dos primeiros anos 70, Milton era um líder negro numa coletividade em que predominavam artistas brancos. A empresária do artista, Marilene Gondim, salta à frente para afirmar que nunca detectou viés racista nas críticas detratoras. Em seguida, introduz informação não explicada de todo: "A verdade é que ele sofria e sofre até hoje com discriminação. Mas é social, em situações isoladas. Ainda existem eventos, aqui no Brasil, em que Milton é destratado".

Ele, que na juventude era proibido de entrar nos clubes de Três Pontas por ser negro, mantém-se em silêncio. Diante da fala de Marilene, lembra enfim que, na São Paulo dos anos 60, os músicos do Zimbo Trio romperam com a casa de shows Baiúca quando os proprietários os proibiram de levá-lo ali.

A capa de Clube da Esquina estampava uma imagem loquaz de mestiçagem, dois meninos acocorados lado a lado, um branco e o outro negro. Foi criada pelo fotógrafo Cafi e pelo niteroiense Ronaldo Bastos, outro dos letristas centrais do grupo, autor dos versos de Nada Será Como Antes, Cravo e Canela e Cais.

"Cafi e eu andávamos de Fusquinha pelas estradas, fotografando nuvens e circos mambembes. Numa estradinha de terra nos arredores de Nova Friburgo, vimos aquela cena, paramos e Cafi clicou. Depois virou capa", lembra Ronaldo. Até hoje, muitos pensam que os meninos são eles, Lô e Milton. Os "atores" involuntários que os representaram jamais apareceram nem se identificaram.

A capa nua, sem créditos para título ou nome dos cantores, era outra afronta que o Clube praticava com mansa discrição. Outra ainda era o fato de ser um álbum duplo. Membros do "clube" gostam de lembrar que esse teria sido o primeiro disco duplo do Brasil, se Fatal (1971), de Gal Costa, não tivesse sido lançado com maior rapidez. Ignoram ou esquecem (como, de resto, quase todo mundo) a existência do duplo Show em Simonal, lançado em 1967 pelo depois proscrito Wilson Simonal.

O primeiro Clube era essencialmente masculino. "Era aquele efeito testosterona total no ar, um monte de homem brigando o tempo todo", brinca Márcio. A única participação feminina é da bossa-novista carioca (e negra) Alaíde Costa, parceira de Milton em descaracterizar Me Deixa em Paz, um samba bravo de Monsueto Menezes em estilhaços de ritmos impuros: Se você não me queria/ não devia me procurar/ não devia me iludir/ nem deixar eu me apaixonar. "Era um ambiente muito legal, gente tão jovem fazendo aquele tipo tão diferente de música", elogia Alaíde.

A cantora e compositora carioca Joyce, então casada com Nelson Angelo, circulava nos bastidores do "clube". Ela lança uma hipótese para explicar o ambiente "clube do Bolinha": "Eu achava uma coisa meio misógina, não havia nenhuma cantora significante no grupo. Depois cheguei à conclusão de que a musa era mesmo Bituca, uma figura sedutora, disputada, por quem todos eram musicalmente apaixonados. Todos compunham pensando em como soaria na voz dele. Isso é que é uma musa, não é?"

Como lembra Ronaldo, havia musas mais ou menos secretas, como Nana Caymmi, para quem ele fez a letra de Cais, ou Dina Sfat, inspiradora de Cravo e Canela. E havia Elis Regina, pioneira em gravar Milton e o "clube".

Foi pela voz dela que vieram à luz, nos princípios da abertura política, alguns dos versos-símbolo do Clube 2, feitos por Brant para O Que Foi Feito Devera, que ecoa e reverbera na edição restaurada 35 anos depois. Se muito vale o já feito/ mais vale o que será/ e o que foi feito é preciso conhecer/ para melhor prosseguir.

(*) errata 1: fernando brant nasceu em caldas, e não em poços de caldas; copiei o dado do dicionário cravo albim da música popular brasileira, e... errei!

(**) errata 2: milton nascimento não é co-autor de "para lennon e mccartney" com lô e márcio borges. fernando brant é que é. e dessa vez eu errei por mim mesmo... e meus agradecimentos ao fernando em pessoa por me obrigar às justas erratas.