quarta-feira, fevereiro 18, 2009

jair de todos os ritmos

tá, é carnaval e eu vou falar de samba. de um tipo de samba que não tem muita entrada na folia pernambucana, na baiana, quanto mais na carioca. samba de paulista lá na beiradinha de minas gerais, mora?

tem até geraldo vandré no esquindô, com as bênçãos de pete seeger, calexico, victor jara, geraldo filme, até mesmo do candombe uruguaio.

e já adianto que o joão marcello bôscoli reagiu ao trecho que lhe diz respeito, e argumento que as coisas não são bem assim. mas saio de folga daqui a pouco, e fica para a volta uma abordagem mais cuidadosa sobre os argumentos de joão marcello na barafunda, na barra funda.

é mais uma da "carta capital" 522, de 18 de fevereiro de 2009:


JAIR DE TODOS OS RITMOS
O intérprete de vasto repertório e voz de blues completa 50 anos de carreira à margem da MPB queridinha

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

O Brasil aceitaria e apoiaria um artista que cantasse ao mesmo tempo sambas e canções sertanejas, jazz e serestas? Aos 70 anos de idade e 50 de carreira, Jair Rodrigues ainda não encontrou uma resposta definitiva.

Parece ser um sonoro e simples sim, considerados o êxito constante e duradouro e a extensa lista de canções por ele imortalizadas de 1963 em diante. Passaram por sua garganta, às dezenas, sucessos em tempo de bossa (O Morro Não Tem Vez), samba impuro (Deixa Isso pra Lá, Tristeza, Triste Madrugada), samba puro (Casa de Bamba, Pra Que Dinheiro), seresta (Chão de Estrelas), samba-enredo (Festa para um Rei Negro, Tengo Tengo), abertura de novela (Irmãos Coragem), moda caipira e sertaneja (Disparada, O Menino da Porteira, Majestade o Sabiá)...

Mas a resposta também poderia ser não, ao levar-se em conta o fato de Jair ser solenemente ignorado, ou no mínimo relegado a segundo plano, em círculos supostamente refinados de amantes da música nacional. Talvez por causa do agressivo vozeirão anti-bossa-novista, ou por misturar sem preconceitos samba e moda de viola, ou por outras razões quaisquer, Jair Rodrigues nunca foi um dos eleitos pela mídia. Construiu uma história colossal (são 42 álbuns até hoje, três deles em dupla com Elis Regina, outra militante anti-bossa), sempre à margem e à revelia de normas e padrinhos ditos "intelectuais".

A habitual resistência contra quem não cabe em rótulos musicais estanques lhe trouxe conflitos, como Jair conta a CartaCapital, refestelado num dos jardins da ampla casa onde mora, num sítio povoado de gente, cachorros e galinhas, em Cotia, não muito longe da capital paulista.

"No começo eu era considerado o sambista, apenas. O pessoal torcia o nariz quando eu queria gravar seresta. 'Que nada, você é um sambista, você não pode ficar com pé em duas canoas', diziam. Eu obedecia, mas não obedecia muito, não", conta, entre os gestos largos que o caracterizam.

Jair é ao mesmo tempo sambista e paulista, combinação que costuma gerar desconfiança em quem acredita ser o gênero propriedade registrada do Rio de Janeiro. Ele se refere à rixa com sutileza, ao afirmar que a frase de Vinicius de Moraes sobre São Paulo ser o túmulo do samba foi o que fortaleceu, por reação, a vertente paulista do gênero. Também insinua que a manchete com a tal frase foi distorção da imprensa. "Imagina, Vinicius não saía de São Paulo", espanta-se.

O samba morava mesmo em seu sangue, mas não havia nada de artificial em sua hibridez musical. Não só paulista, Jair é também interiorano, nascido em Igarapava, zona rural, perto da divisa com Minas Gerais. Em sua opinião, foi a vitória no festival da Record de 1966, com a canção de protesto Disparada, de Geraldo Vandré, que o "liberou geral" da obrigatoriedade do rótulo único. "Aí todo mundo acreditou, os produtores inclusive, e deixei de ser sambista para cantar de tudo."



Ele não reage com naturalidade à proposição de que nos anos 1960 seu canto tenha representado, ao lado da voz de arrastão de Elis, uma frente de oposição à bossa e à supremacia do sussurro macio orquestrado por João Gilberto. Diz que era fã de Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Nelson Gonçalves, Elizeth Cardoso, Maysa, Agostinho dos Santos (este acima de todos), apenas isso.

"Eu cantava bossa nova, mas do meu jeito. Não ficava naquelas de (canta sussurrado) olha, que coisa mais linda, mais cheia de graça." E abre os braços, e repete os mesmos versos, mas em trovão.

A diferença não o incompatibilizou com o intérprete de O Pato. Emociona-se ao lembrar quando foi convidado a um show de João e depois chamado por ele ao camarim. "Estava cheio de gente, ele me chamou, me abraçou e falou: 'Jair, parabéns, como é o nome de seus filhos?'", conta o pai dos também cantores Jair Oliveira e Luciana Mello.

"Falei os nomes, e ele (cochicha): 'Luciana vai ser a maior cantora do mundo'." A caçula era adolescente e havia gravado um primeiro CD. Mais tarde, João redigiu de punho próprio uma carta de recomendação para ela ser aceita no curso de música em Berkeley, nos Estados Unidos. Luciana não chegou a ir.

Embora comemore o "liberou geral" de Disparada, Jair permaneceu na mesma gravadora, Philips, até 1984, onde gravou dezenas de discos apontados para o samba (e três de serestas clássicas). A parceria musical-televisiva com Elis terminou em 1967, e ela disparou à posição de predileta enquanto ele foi para o povão e conduziu a explosão do samba-enredo salgueirense Festa para um Rei Negro, aquele do refrão olelê, olalá/ pega no ganzê, pega no ganzá.

Confirma uma história que já contou publicamente, de que seu produtor na gravadora, o baiano Roberto Santana, ligado ao núcleo tropicalista, andou desviando para outros intérpretes sambas que haviam sido feitos para seu gogó. Cita o caso de Sufoco, que acabou na voz da sambista maranhense novata Alcione, levada por ele à Philips, e por ele considerada ainda hoje a outra "maior cantora do mundo", junto de Luciana Mello.

Permaneceu sempre próximo a Elis ("Jairzinho nasceu no mesmo dia que ela, 17 de março"), mas o público só foi se lembrar da ligação quando ela morreu, em 1982. Convocado a se manifestar, causou controvérsia e isolou-se ao externar publicamente a perplexidade e a reprovação pelo vínculo entre a morte da amiga e o uso de drogas.
"Quando me perguntaram, falei que os falsos amigos e puxa-sacos ao redor da Elis podiam ter colocado aquilo na bebida dela. Bastou, a carapuça serviu em não sei quem", lembra. "Muitos inventaram que eu entrava no palco doidão e ficava falando mal dos colegas", zanga-se. E busca dissolver a imagem que dele se vendeu: "Eu tinha grande amizade com Raul Seixas, Nelson Gonçalves, Tim Maia".

Aqui, remete outra cutucada sutil à imprensa, ao hábito jornalístico de apelar a títulos sensacionalistas. "Um me perguntou se eu não tinha medo dos traficantes, eu disse que não. Saiu a manchete, como se eu estivesse desafiando: 'Jair declara que não tem medo de traficante'."

A lembrança de Elis o conduz ao filho da parceira, o hoje produtor João Marcello Bôscoli, que lançou pela gravadora Trama os seis títulos mais recentes de Jairzão. Conta que há dois meses Bôscoli lhe propôs fazer um disco com clássicos de compositores "da antiga" como Noel Rosa, cujas obras caíram em domínio público. Aceitou no ato, e marcaram um almoço para discutir o projeto. No dia, esperou mais de duas horas, e Bôscoli (cuja gravadora anda aparentemente parada há cerca de um ano) não apareceu. Reconhece-se magoado: "Cheguei quase chorando aqui em casa, como é que pode isso? Todo respeito que eu tinha pela mãe do cara, de repente ele me faz uma falseta dessa?".

De modo menos diplomático Jair revida outro desafeto recente, Edson Menezes, um dos autores de seu maior emblema musical, Deixa Isso pra Lá, festejada como precursora do rap. Lançada em 1964, é aquela em que ele mais fala do que canta, deixa que digam, que pensem, que falem/ deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem?/ eu não tô fazendo nada, você também/ faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?, entre gestos expressivos com as mãos.



Essa canção é constantemente requisitada para comerciais tão diversos quanto os de óticas populares e vacina antigripe para idosos. E Menezes tem sistematicamente emperrado o uso publicitário da canção, cobrando valores que os anunciantes não aceitam pagar.

"Nunca vi um compositor tão idiota como esse Edson Menezes", diz. "Telefonei eu mesmo, fazia anos que não nos falávamos. Ele disse: 'Esses caras pensam que a gente está na miséria, não preciso de 8 mil reais'. Eu: 'Edson, é bom, a música fica cada vez mais com o povo. Também não preciso, graças a Deus, mas grana é grana, não rasgo dinheiro'. Ele: 'É pouco, não preciso'. Aí falei: 'Então vai à merda, PT, saudações'", inflama-se.

Menos conhecedor dos trâmites do marketing que Menezes é um cara sobre o qual só após muita conversa Jair faz revelação. Vai contando de mansinho a proposta surpreendente que recebeu, deixa isso pra lá, o que é que tem?, eu não tô fazendo nada, nem você também...

"Eu estava no estúdio da Trama, Geraldo Vandré apareceu por lá. Propôs que eu gravasse um disco só com músicas dele. Falei: 'Velho, vamos fazer o seguinte. Posso regravar Disparada, Fica Mal com Deus, Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, mas, Geraldo, me mostra as inéditas que eu sei que você tem'. Estou sabendo que ele tem 200 músicas inéditas, e uma melhor que a outra!".



Narra a reação do misteriosíssimo músico sumido dos holofotes desde o AI-5. "Vandré respondeu assim: 'Não gosto de frio, vou para o norte. Não, vou para o México, que lá não faz frio. Lá vou me lembrar das músicas, depois te ligo, você vai para lá para a gente cantar junto'", reproduz Jair, às gargalhadas.

Reação de "maluco", tal qual muito se especula sobre o enigmático retiro de Vandré? "Ele é um mistério. Não gosta que o chamem de Geraldo Vandré mais. É Geraldo Abrunhosa de não sei o quê e não sei o quê. Diz: 'Geraldo Vandré está lá fora, ainda não voltou do exílio, não volta mais. Geraldo Vandré morreu'. Mas doido ele não está, ainda não rasgou nem um real perto de mim. Vandré adora é quando faz você pensar que ele está maluco. Mas não está nada, é o cara mais lúcido que existe."

"Passei para João Marcello esse outro projeto, depois liguei para o Vandré, e ele: 'Ô, Cachorrão, vamos fazer'. Mas ele é assim, hoje está aqui, amanhã você o procura, está na Cochinchina. Soube que tem um cartão do Exército ou da Marinha, pode ir onde quiser, não paga nada. De repente diz 'vou para o Rio Grande do Norte'. E vai."

De Noel Rosa a Chitãozinho & Xororó (seus convidados na gravação de Majestade o Sabiá), mundo grande sem porteiras, Jair continua a visitar e ser visitado, sem restrições, pelos mais díspares currais da música brasileira. Recebe Vandré no estúdio e recebia os Racionais MC's nas rodadas de futebol que promovia dez anos atrás em seu sítio. Nos shows que fez no início de fevereiro pelos 50 anos de carreira (e que em breve virarão DVD), cantou com Alcione e Jorge Aragão, Pelé, Rappin' Hood, Chitãozinho & Xororó, seus filhos e os dos amigos Elis (Pedro Mariano) e Wilson Simonal (Simoninha e Max de Castro).

Há um ano e meio, Jair virou avô de Isabela, filha de Jairzinho. Em maio, nascerá a segunda neta, filha de Luciana. Diante dessas visitas, retrai-se, nem parece ele mesmo. "Não estou curtindo ainda a Isabela, por não poder. Quem curte adoidado é (sua esposa) Claudine." O que o impediria de curtir a netinha? "Quando ela nasceu, eu chegava, 'oi, Isabela!'. Ela me via e (imita) começava a chorar. Virei espanta-neném?", ri, repentinamente tímido. "Agora me vê e pede: 'Dança, vovô Jairzão'. Alguém falou que sou doido, ela me vê e diz: 'Vovô é doido'", gargalha e gesticula vovô Jairzão.