quarta-feira, fevereiro 11, 2009

pete fora-da-lei, bob bandoleiro

além de ser linda de morrer, a balada excruciante que abre o novo disco de bruce springsteen, rende muito, muito pano para manga. nos seus oito minutos de duração, e muito além, "outlaw pete" é verde e gelada como a "brokeback mountain" de ang lee.

"outlaw pete" é o lugar onde bruce se sente em casa, a crônica sobre um personagem à margem, um "loser", um fora-da-lei mitológico de faroeste, um "born in the u.s.a." bastardo cuja fina ironia não é todo reagan nem todo bush nem todo junior que consegue captar.

acontece que o pária de bruce se chama pete, e só por isso a balada faz conexão imediata com outro disco da pesada lançado por springsteen há pouco tempo, o pancadão "we shall overcome - the seeger sessions", de 2006.

experimente somar "pete" com "seeger" e ganhe de presente pete seeger - aquele velho cantor folk, o compositor panfletário, o militante político exacerbado, de certo modo um equivalente ianque de nosso geraldo vandré.

seeger foi o herói de bruce em "we shall overcome", inteiramente dedicado a seus espantosos folks de militância político-musical. e pete é o anti-herói da sublime abertura do disco novo do discípulo, "working on a dream".

entre o pete daqui e o seeger de lá, há um interdito. a entrelinha se chama bob dylan - o judeu, o cigano, o pirata, o bandoleiro. um de que bruce springsteen seria xerox esmaecido, segundo muitos disseram quando surgiu, em 1973, e além.

bob e bruce têm muito a ver, é fato. pode-se dizer, sim, que a epopéia dos desvalidos de bruce foi decalcada da odisséia dos marginais do gênio dylan, um folk-panfletário-militante comparável ao precursor seeger, embora sob estratégias menos lineares e didáticas e mais, digamos, tropicalistas (um caetano das montanhas, um gil do gelo), ou melhor, barrocas.

se não faz mal a bob a mitologia de gatuno em torno de dylan, o mesmo não se pode dizer de um dos gatunados por ele, seeger, esse johnny alf do joão gilberto dos grandes lagos. fizesse o que fizesse, tenha feito o que tenha feito, seeger não é lembrado pela música que fez, mas antes como o cara que, enraivecido pela guitarrização do folk promovida pelo ex-discípulo, tentou desplugar a viola do ladrãozinho safado que alçava voo rumo ao mito ("oh, sara"...).

seeger estava mais para elis + vandré, passeata contra a guitarra elétrica..., mas as colunas sociais o retrataram mais como um "zelão", um sérgio ricardo folklore. compusesse a mais linda das canções, não adiantava, ia ser estigmatizado como o insano que desplugou a guitarra, o maluco que quebrou o violão - nem precisava ter as mãos extirpadas a facão como victor jara, o cabo decepado da electric guitar já estava de bom tamanho.

pois bruce springsteen sabe que não é assim, e não cansa de proclamar que pete seeger era o maioral. mesmo à margem, pete seeger era o maioral. a afinidade com os "perdedores" é o melhor que há dentro do "vencedor" springsteen, e é o que o faz glorificar deus no céu e seeger na terra (seeger é de 1919 e ainda está vivo, e se apresentou em dueto com bruce na posse do "companheiro" obama, o lula deles lá onde a esperança também tenta vencer o medo).


deve haver escondido atrás disso tudo algum desconforto de springsteen em relação a bob dylan (pete seeger deve estar lá, escondido, nalgum lugar de "não estou lá", o escorchante, maravilhoso filme de todd haynes sobre dylan). bob pode ter imitado todo mundo, tá na boa, mas quem quer ser conhecido como imitador de dylan, quem quer ser chico césar em 1995? bruce não quer.

há uma agulha aqui, ah, se há. bruce é bob, mas isso não interessa, isso você já leu na "caras", já sabe desde quando não tinha dentes - bruce quer que você descubra onde ele não é bob, onde vandré & elis não são caetano e jair rodrigues & elis não são gilberto gil (por favor, leia "carta capital" neste fim-de-semana para maiores -ou menores- "detalhes").

uma das mais belas canções de bruce ("working on a dream" tem outras candidatas, não é só "outlaw pete", não. é porradão, it's "life itself"...) termina em altíssimas regiões, depois que pete fora-da-lei pintou, bordou, barbarizou e assassinou. a canção termina e pete segue vagando, "evanescido além do horizonte", erasmo de algum roberto, "congelado no topo da montanha", o tolo na colina de zé ramalho da paraíba. mas vivo, vivo, vivo, irremediavelmente vivo, tão vivo quanto obama e osama.

p.s.: eu não consigo compreender por que, mas sempre que ouço bruce springsteen penso imediatamente em milton nascimento. por causa das work songs, das canções de trabalho (e de vagamundagem), do sal da terra, será?