terça-feira, abril 21, 2009

joão araújo, final: lula, obama, cazuza, baby consuelo, roberto marinho...

e vai acabando a odisséia. em pleno feriado (mas não pra mim...), desencanta o último trecho da entrevista com joão araújo.

pas - [...continuação] onde você se situa politicamente?

ja - eu sou da esquerda não-radical. mas meu pensamento sempre foi de esquerda. isso doutor roberto sabia, sempre respeitou. quando era garoto, até os 18 anos, eu era da direita ferrenha. era lacerdista. mas todo mundo que conheço que foi lacerdista depois ficou com ódio do [carlos] lacerda, não sei por quê.

pas - você também?

ja - não tomei ódio. eu pensava o seguinte: não tenho nada que ver com o pensamento dele. eu, que ia ver os discursos dele, matava aula para ver quando ele tinha que fazer discurso na tribuna com vieira de mello do outro lado.

pas - você gostava mesmo, se matava aula pra ver os discursos.

ja - pra ver discurso, mas é que vieira de mello era um espetáculo que eu só via parecido quando num júri tinha de um lado romero neto e do outro evaristo de moraes. era um negócio fantástico. você não precisava mais ler, via aqueles homens discutindo e aprendia muita coisa [para e observa as cotações na tevê]. agora vai passar, quer ver?

pas - qual você quer ver?

ja - olha lá, tá vendo? já baixou. petrobras. de 29% para 25%, já empobreci.

pas - você tem ações na petrobras?

ja - pouquinhas, mas tenho. mas sempre fui muito político.

pas - você foi?

ja - sempre fui. tínhamos uma turma de uns dez rapazinhos, fazíamos um negócio chamado vigília cívica. éramos que nem a rádio continental, estávamos em todo lugar onde tinha algum acontecimento político. por exemplo, república do galeão, estávamos lá. vão depor fulano de tal, a gente corria lá para ver. Ddpois ficávamos num posto de gasolina do leblon discutindo, até seis, sete da manhã. não tinha o que fazer, né?

pas - não sei se entendi direito, você disse que Boni "não existia" politicamente?

ja - não conheço boni como um ser participante de política.

pas - e voc,ê é diferente?

ja - eu sou diferente, sou participante mesmo. respeito a religião e a política de todo mundo, aprendi isso com meu avô por parte de mãe. ele era ateu, e sabe quem ia jogar xadrez com ele toda sexta-feira na minha casa? o cardeal dom sebastião leme. pode isso? agora, pergunta se falavam sobre religião? nunca falaram.

pas - um cara de esquerda não-radical, como você se definiu, hoje vota em quem, acredita em quem?

ja - eu voto no lula. sou lula, gosto muito dele. pessoalmente não conheço, só fui apresentado, mas admiro muito o lula. do pt não posso dizer a mesma coisa. mas lula eu acho admirável, que o metalúrgico possa ter se transformado num líder mundial, que é o que ele é [a entrevista com joão aconteceu um dia antes de barack obama definir luiz inácio como "o político mais popular da terra"].

pas - votaria no candidato dele?

ja - não sei, aí tenho que pensar. não sou tão carneirinho assim, né? minha cabecinha pensa. mas não sei, se lula dissesse "vote" [ri], se eu votaria ou não... acho que por princípio, não. e tem outra coisa que a nação me protege: eu sou idoso [risos], não preciso votar. mas faço questão de votar.

uma coisa que saquei a propósito da eleição do obama... eu sou obama, detestava o bush, prometi que não iria para os estados unidos - não fui, só fui para apanhar o grammy, mas não iria enquanto bush estivesse lá. tenho ódio dele. mas apareceram lá os candidatos, comecei a sentir pelo noticiário a movimentação dos jovens. a coisa que me bateu primeiro foi que ele não tinha condição de se eleger nos estados unidos, porque tem o sobrenome hussein e é negro. impossível os estados unidos elegerem um negro com nome de hussein. o que os republicanos vão explorar..., e o americano médio estava realmente puto com os árabes por causa dos atentados. mas o tempo foi passando, eu estava em paris quando teve uma manifestação pró-obama, não entendi por quê. lia algumas coisas no "le monde", e quando cheguei ao brasil estava cheio de notícias sobre o sucesso do obama, mas um sucesso que ninguém dizia por quê. estava um inverno rigorosíssimo nos estados unidos, mas via as fotografias dos jovens na fila para pegar senha às cinco horas da manhã, isso não é natural, o voto não é obrigatório. então havia um movimento qualquer... você tem cabeça pra pensar, pra formar juízos, e pensei comigo que estava acontecendo alguma coisa de novo naquele país pra mobilizar os jovens.

não estou me comparando com manuel bandeira, mas a mesma coisa ele falou sobre a bossa nova, sabia? um dia ele chegou pra tomar um goró na casa do pai de nara leão, seu jairo, no leme, e disse: "jairo, presta atenção numa coisa. está surgindo um movimento musical novo no brasil. não sei o nome, só sei que é intimista", olha só. e provou por que ia surgir um movimento: "só pode ser, jairo. está havendo uma invasão imobiliária, prédio por todo lugar, acabaram com as casas de show, tudo se vende e vira prédio". [fixa-se nas cotações na tevê.] deu uma aumentadinha, 29,4%. já posso tomar uns gorozinhos hoje. mas perguntou o manuel bandeira: "me explica, como o namorado vai cantar serenata para a namorada na janela, se agora ela mora agora no 15º andar?". se você não pensa, não raciocina... as pessoas não pensaram, mas ele pensou logo nisso, não sei se eu pensaria. não, o cara vai ter que fazer uma música mais baixinho, que possa cantar no ouvido da namorada, e não aquelas músicas que o chico alves cantava, que chegavam até o céu. não deu outra, ele apenas não deu o nome. quem acho que deu o nome deve ter sido... o primeiro que falou o nome bossa nova, que eu ouvi, foi o juca chaves, naquela música "presidente bossa nova", que era pro juscelino [kubitschek].

então, voltando ao obama, eu vi que tinha alguma coisa mais que um simples passarinho cantando, e que esse algo a mais era o seguinte. aí fui fazer minhas pesquisas junto a pessoas mais autorizadas para saber se em alguma época nos estados unidos os jovens tinham participado tanto de uma eleição como nessa. e a resposta é que não participaram nunca, sempre fugiram como o diabo foge da cruz de ter que ir lá votar. pra mim estava tudo desvendado, o futuro presidente dos estados unidos é obama, a não ser que matem ele. aí, quando ouvi ele falando, ele tinha uma coisa que lembrava muito aquele líder que ficou 20 anos preso na áfrica do sul... o [nelson] mandela. uma dignidade, o jeito de falar, a prudência, a forma de conciliar. tanto que foi eleito e no dia seguinte juntou os ex-presidentes todos num almoço, coisa que nunca tinha sido feita também, e queria o apoio de todos. enfim, ele queria a paz. queria tirar os soldados, foi obrigado pelo acordo anterior a manter 7 mil no afeganistão. porém, já tem data pros soldados do iraque voltarem, como vai ter data pros do afeganistão. já esticou a mão, não fisicamente, para o irã, dizendo que não tem nada contra o irã.

pas - a história do manuel bandeira está registrada, está escrita? como você sabe dela?

ja - quem me contou foi o armando nogueira. quem contou pro armando foi o rubem braga. quem contou pro rubem braga eu não sei, foi o próprio manuel.

pas - talvez não esteja escrita em lugar nenhum...

ja - é verdade.

pas - como também nunca ouço ninguém dizer que quem criou o termo bossa nova foi juca chaves. tem gente que vai ficar nervosa...

ja - mas escuta, pedro, a pergunta que respondi foi a seguinte: quando você ouviu falar de bossa nova pela primeira vez? foi quando juca chaves cantou "presidente bossa nova". aí teve alguém que chegou e, esse sim, disse "essa música é uma bossa nova", isso está muito parecido com a cara do ronaldo bôscoli, né?

pas - é legal conviver e lidar com artistas?

ja - sempre lidei com artistas, então para mim não é nada difícil. sempre lidei com jovens, muito. frequentei muito os jovens, conversava muito com eles. tem dois tipos de pessoas que gosto muito de conversar. são as crianças e os velhos. são os que dizem a verdade, não é isso?

pas - já se coloca no segundo grupo, ou ainda não?

ja - no segundo grupo, não, porque eu vou viver até os 130 anos.

pas - quer dizer que ainda não está falando toda a verdade?

ja - ainda não.

pas - bom saber [risos].

ja - mas pra você? o que falei aqui não retiro uma palavra. como se dizia antigamente, quero ver minha mãe morta atrás da porta, não era assim que se falava?

pas - perguntei sobre artistas porque você conviveu com tantos, e de repente tinha um dentro da casa. estava preparado? por quê ele foi aparecer lá?

ja - ele fazia umas coisas de noite que eu não via. chegava de madrugada e via ele estava batucando a máquina. na manhã seguinte a mesinha de cabeceira estava cheia de papel. já eram letras de música. mas eu não bisbilhotava, não, a mãe dele bisbilhotava bastante. eu não sabia nem que ele tinha esse dom pra cantar. antigamente eu segurava a barra dele era na questão de colégio. ele sempre foi bom aluno, mas teve um ano que foi reprovado. lucinha [araújo, sua esposa] ficava tão indignada, ele só tirava dez, ela achava que ele tinha que tirar dez. ele achava que sabia mais que os professores. ele lia tanto, ficava no quarto com o mapa-múndi e o globo, estudando aquilo. amigos meus ligavam pra ele, com nove anos de idade, sabia a população de sei lá que país. teve um cara que foi na minha casa, que era ministro dos transportes da venezuela e casado com um primo da lucinha. cazuza queria fazer perguntas, estava louco pra conversar com ele. o cara começou, mas falava muita vantagem, tudo que ele tinha feito era o maior. na hora que falou que fez um túnel de 16 quilômetros ligando uma cidade à outra. cazuza subiu no quarto, daqui a pouco voltou, perguntou: "esse túnel não é o túnel...?".

pas - isso com nove anos?

ja - é. o cara disse: "é, isso mesmo". "esse túnel só tem dez quilômetros, hein?" [risos.] quando não passou de ano, ele não ia poder continuar no santo inácio, porque o colégio não aceita repetentes. sabia que ia tomar a maior bronca da lucinha. mas ele achava muito fraco, dizia que sabia mais geografia que o professor. "pô, você é um sábio, então." reprovado, foi direto pra som livre, e queria que eu entrasse em casa com ele. porque muitas vezes, ele era pequenininho, eu chegava... lucinha sabia que eu não admitia bater em criança. ela realmente não batia, tinha adoração por ele, mãe judia. porém, tinha uma coisa de comer tudo que tinha no prato, se não comesse ela dava beliscão, e ficava marca. eu cheguei, ele fez assim [estende o braço, risos]. "que é isso, cazuza?" "nada não, nada não." quer dizer, já tinha me chamado a atenção a respeito disso. eu ia à Lúcia, não na frente dele, claro. "pô, lucinha, você continua beliscando? não é assim que se educa, quer que ele tenha medo? por que não conversa com ele?" "não adianta conversar com cazuza, você sabe." enfim...

pas - ney matogrosso disse numa entrevista recente que você "era um carma na vida de cazuza". tive oportunidade de perguntar sobre isso, ele disse que quis dizer que era um carma para um artista ser filho de um todo-poderoso de gravadora.

ja - eu entendi assim também.

pas - era mesmo?

ja - não, eu nunca me achei todo-poderoso. mas o fato de eu presidir uma firma que era da globo fazia a opinião pública achar que eu era um daqueles todo-poderosos da globo.

pas - mas era muito fácil para seu filho ser questionado por isso, de pensarem que não tinha talento, que era só porque era filho do presidente da gavadora.

ja - é, por isso eu não quis gravar com ele de jeito nenhum. ezequiel neves e guto [graça mello] entraram umas cinco ou seis vezes na minha sala com a fitinha dele, eu me negava a ouvir. eu dizia: "não quero ouvir, porque posso gostar, e eu não vou gravar com ele". tinha muito esse pudor próprio de não querer botar ele numa posição de constrangimento diante de outros artistas, de estar gravando numa gravadora que o pai dele era presidente, o que é isso? mas ele tinha tanta noção das coisas que, quando já tinha gravado, chegou um dia dizendo: "eu tenho que sair daqui, não quero mais ficar. não me sinto confortável. acho que as pessoas estão me dando bom-dia porque sou seu filho". a gente dá bom-dia pra qualquer um, pô. não dou bom-dia pro doutor roberto porque ele é o presidente da globo, dou bom-dia porque não posso dar boa-noite de dia. não havia jeito, ele saiu. e, sobre a saída dele do conjunto [barão vermelho], não gosto de falar, mas tenho minhas ideias. acho que ele se incompatibilizou não com nenhum barão, mas com a ideia de não poder cantar música brasileira. ele gostava muito de música brasileira, e de música romântica brasileira. ele gostava de cantar, por exemplo, "faz parte do meu show", músicas desse tipo, românticas. de vez em quando tinha vontade de cantar músicas românticas da dolores duran. foi criado nesse ambiente. minha casa era um apartamento pequeno, só tinha um quarto, uma sala, e o resto eram artistas que ficavam lá, batendo papo com a gente. os novos baianos, quando vieram para o rio, ficaram lá, dormiram em casa a noite toda.

pas - esquecemos de mencionar os novos baianos, mas você foi importante na história deles, tanto na rge como na som livre, não?

ja - ah, fantásticos. quem me recomendou eles foi caetano veloso. só que caetano disse pra eu mandar buscar um conjunto que ele achava sensacional. isso ele falou às cinco horas da tarde. às onze da noite esse povo todo chegou à minha casa [risos], sem dinheiro, com fome. quem antendeu foi o cazuza, molequinho. foi à geladeira, deu tudo que era de comer pra eles.

pas - os hippies invadindo a sua casa...

ja - eles todos depenados, pareciam um monte de maltrapilhos. mas quando as pessoas têm talento... é inegável que eles fazem a diferença, não é? quando perguntei o que tinham pra mostrar, moraes [moreira] meteu logo de cara "preta pretinha", pô. tem outra? tem, vinha não sei qual. tem outra?, tem, tudo porrada. disse: "que vamos fazer o disco vamos, não tenha dúvida, mas depois que vocês jantarem [risos]".

pas - ainda sobre cazuza, o fato de seu filho ser gay foi conflituoso para você?

ja - não foi, não. porque, olha, eu faço uma diferença muito grande entre o gay e o... transformista, o sujeito que se veste de mulher, bota um abacaxi na cabeça, brincos da carmen miranda, salto alto. acho que o gay é uma pura questão de opção sexual, como outra qualquer, não tem nada de horror nisso. cazuza nunca foi de fazer esse tipo de coisa que eu estava dizendo que não gosto. então sempre respeitei muito a vida dele.

pas - você sempre soube? até hoje na sociedade é uma questão complicada, pais e filhos lidarem com isso.

ja - depende da sociedade em que você vive. hoje vivo numa sociedade de pessoas que escolhi para viver, não tenho esse tipo de problema. mas, por exemplo, em são paulo, desculpe, é sua terra, mas lá ninguém morria de aids. fulano morreu de... havia um preconceito tão grande que numa família daquelas que tivesse nome imenso, não podia morrer de aids. tirei isso da minha cabeça quando fui morar em são paulo, no alto de pinheiros, e vi que o paulistano era solidário demais até. queria que ele ficasse perto dos médicos de são paulo, aluguei uma casa ótima, com piscina, ficamos um ano lá. os vizinhos, nunca fui na casa deles nem eles na minha, mas eram de uma gentileza, não sei como souberam que cazuza estava lá. um tinha um sítio, outro uma fazenda, era a coisa mais bonita, chegavam da fazenda e mandavam um embrulho pra casa, era uma paleta de cordeiro, ou uma fruta. era toda a vizinhança, eu não via, porque tinha muitas árvores. achava maravilhosa a solidariedade deles. era pujante, existia. mas, não sei por que, havia talvez nos pais e avós deles, esse preconceito contra a doença.

pas - como você pensa hoje naquele episódio da "veja", que é uma revista paulista?

ja - hoje já consigo pensar, antes nem pensava. antes eu queria matar o cara que escreveu, simplesmente. depois eu vim a saber que ia fazer uma injustiça. esse tal cara que eu queria matar - não digo matar, mas ia dar muita porrada nele - tinha se comprometido comigo em fazer uma matéria fantástica, maravilhosa, que ele tomava a responsabilidade. esse acho que já morreu, era um italiano [alessandro porro]... ninguém sabia o que era a doença, prescreviam azt de forma errada. deram tanto azt pro cazuza que tinha hora que ele ficava fora de si. não era justo. mas a única coisa a favor deles é que cazuza queria fazer a matéria na "veja", cismou, botou na cabeça.

desci de petrópolis ao rio em 38 minutos, liguei para uma amiga jornalista pra saber onde morava o incauto. me deu o endereço, era aqui no leblon. fui, tive um atrito com o porteiro que disse que eu não podia entrar. fui entrando, ele não estava. mas ele não tinha sido o culpado, não. olha como é a vida, muitos anos depois tive acesso a um documento interno da "veja", em que o editor-chefe da revista encomendava a reportagem.

pas - quer dizer, encomendava o tom que ela ia ter?

ja - encomendava o tom. ia ter uma foto patética, uma coisa que não dá pra descrever de tão baixo que era.

pas - falava "foto patética"?

ja - é, foto patética, que era "normal da doença". tinha mais coisas, mas me lembro muito bem do enfoque que deram à fotografia. lendo a matéria, ela não era boa, mas não era para provocar a ira satânica que eu tive. lida duas vezes, tudo bem. mas a capa ["uma vítima da aids agoniza em praça pública"], "agonia em praça pública"... cazuza respondeu com um artigo fantástico, está pendurado aqui, "'veja', a agonia de uma revista".

pas - foi um marco inegavelmente negativo na história da revista...

ja - a moça que escreveu [com alessandro porro] se chamava angela não sei o quê [abreu]. ela me explicou como era, você deve conhecer mais que eu. o repórter escreve uma coisa e aquilo vai caminhando por dentro, vai sofrendo uma série de modificações, até que o editor-chefe bate o carimbo. no dia seguinte essa moça pediu demissão. eu arranjei um emprego para ela depois. depois me disseram, não sei se é verdade... teve os protestos todos que você sabe, a classe artística, teatral, cinematográfica, todo mundo assinou um manifesto. todo mundo foi na televisão esculhambar a revista. dizem que tem artistas que até hoje não podem ser citados lá, um deles acho que é marília pêra. por que não tiveram coragem de falar de nenhum dos que tinham assinado? todo mundo assinou, a diva do teatro, minha amiga, fernanda montenegro. ela foi maravilhosa.

pas - o que você ia dizer que não sabe se é verdade ou mentira?

ja - o que era? [hesita, tenta lembrar.] você estava falando que o poeta manuel bandeira falou aquele negócio, e eu falei outra coisa, aí você falou [ele ri, todo mundo ri, todo mundo tenta ajudar]... da bossa nova...

pas - juca chaves?...

ja - ah falei que conheci a palavra bossa nova através de uma música, aliás muito chata [risos].

pas - mas tam esse mérito, ou talvez tenha...

ja - talvez [cantarola "presidente bossa nova"]. e mais nada mais foi dito [risos]. ah, não [lembra], precisa confirmar, mas todo mundo diz que na semana seguinte à matéria a "veja" não circulou, porque os gráficos fizeram greve [confirmo depois no acervo digital da revista, de fato não houve "veja" na semana seguinte. o editorial da próxima revista atribui a ausência à greve dos funcionários da gráfica].

pas - como você interpreta hoje, porque uma revista importante fez aquilo daquele jeito? não era uma sociedade despreparada para lidar com aids, mesmo com sexualidade?

ja - foi um horror. uma revista com 1 milhão de assinantes, de repente pode se considerar com licença poética para qualquer coisa.

pas - licença não-poética, no caso.

ja - é, não-poética.

pas - se você fosse fazer um balanço, em que a globo foi e é boa para o brasil, e em que ela é ruim?

ja - o lado bom eu sei, porque vivi ele todo. se tornar a maior empresa de comunicação da américa latina não é para qualquer um. se fosse só questão de dinheiro, a adversária teria talvez mais condições, porque tira dinheiro dos pobres, tira dízimo. e não consegue. acho que é questão de talento, perseverança, como sempre tiveram com tudo que fizeram. o jornal deles está aí, não discuto a linha política dele. tem outros de que gosto talvez mais, do "el país", por exemplo, na espanha. dizem que está muito mal das pernas, não se sabe se vai continuar. tem uns jornais que leio com satisfação. d'"o globo" não posso cobrar que tenha o meu pensamento político. se leio livro do guevara ou não é problema meu.

eu diria como a baby consuelo, que sumia de casa, a mãe ficava louca atrás dela, e baby dizia à mãe que estava comigo [risos]. dona carmen, coitada, não tinha um parafuso qualquer. a família menna barreto era toda de militares, na época do pega-para-capar que passamos, dona carmen dizia: "o senhor tem que me dizer onde está baby consuelo, eu sou de uma família de militares, eles vão aí para lhe prender". eu não sabia, de repente baby aparecia em casa, "baby, vem cá, você tem que falar com sua mãe. liga aí". ela dizia: "mamãe, quem está falando é baby consuelo. eu tenho cabeça, eu penso e passo, tchau".

pas - depois virou música dela.

ja - é, eu diria como ela.

pas - não é como se as grandes instituições, seja globo, "veja" ou qualquer meio de comunicação, fossem sempre conservadoras, de direita - e tem sempre um monte de gente de esquerda trabalhando dentro delas?

ja - acho que a coisa fica num equilíbrio perfeito. na globo, o doutor roberto dizia, quando se queixavam que tinha muitos comunistas lá: "os comunistas que tenho aqui são os meus comunistas". todo diretor da globo que foi chamado pelo pessoal da ditadura pra depor, como sendo os comunistas e tal, ele foi acompanhar. comigo aconteceu uma coisa incrível, ele me tirou de uma enrascada. [olha para as cotações na tevê] olha lá, está tudo pra cima!

mas um dia fui convidado/intimado para comparecer à polícia federal. levei comigo, não sei por que cargas d'água, um advogado da globo, alcione [barreto, o que não faz um google, hein?], que era um cara de escola de samba também. o lugar era lúgubre, um salão com um pé-direito enorme, sentamos e ficamos esperando. o cara com cara de pinguço chegou, não deu boa tarde, botou o revólver em cima da mesa e o papel na máquina de escrever, e disse: "fala". o advogado tentou perguntar alguma coisa, "o senhor fique quieto, não foi convocado, se falar mais alguma coisa será recolhido ao cárcere". mandei o alcione embora, ele foi. e o cara: "fala". "estou imaginando, o senhor quer que eu fale sobre o quê?" "o tal festival." eu disse que estava viajando, cheguei da europa, sabia que o festival tinha sido realizado com sucesso e que as letras todas tinham sido liberdadas pela censura, e se essa música estava no disco da som livre... ele disse: "mas a som livre gravou e botou no disco". "não, não foi." "como não foi?, está no disco?". ele não sabia o que era um fonograma, expliquei que a gravação não era da som livre, era de outra gravadora, e a som livre tinha um contrato de publciar todas as músicas classificadas no festival. "o senhor vai falando aí as mentiras que o senhor quiser." perguntou mais 50 mil coisas nesse nível de babaquice. a música era [cantarola] "você pode fumar baseado...".

pas - ah, sim, baby consuelo, novamente.

ja - "...baseado em que você pode fazer quase tudo" [trata-se de "o mal é o que sai da boca do homem", defendida por bbaby e pepeu gomes no festival "mpb 80"].

pas - deve ter passado antes por algum censor ingênuo que não entendeu...

ja - é, eu dizia: "doutor, eu não tinha nada com aquilo". e pensava comigo que não tinha escopo para ser o cara que viria a ser procurado pela polícia federal. "não tenho mais o que perguntar, o senhor está incluso no parágrafo não sei qual, e a pena é de dois a quatro anos de prisão sem direito a sursis". ele mesmo me fichou, me fotografou com o número de frente e de perfil. me lembrou do tiro de guerra, o cara dizia: "todo mundo vai ficar nu". todo mundo ficou nu, "levanta o saco, fica de costas, levanta o casco". me lembrei disso quando estava lá, é o mesmo tipo de terror.

aí voltei à televisão, porque tinha que falar com alguém. os caras morreram de rir, [joão carlos] magaldi. mas eu estava aflito, resolvi fazer uma coisa que nunca tinha feito antes. me dava bem com os filhos do doutor eoberto, eles eram garotos, nem estavam na tevê ainda. liguei para a casa do doutor roberto no dia seguinte às 7 horas da manhã. sabia que ele acordava muito cedo. para surpresa minha, atendeu. expliquei que não tinha dormido por causa disso, que aquilo me abalou muito, que precisava falar com ele hoje. "então venha para cá agora." fui, comecei a contar para ele. no início ele não deu muita bola, não. só começou a dar bola quando eu disse: "doutor roberto, eu não sou ninguém para ter o prestígio dessa prisão que querem me dar. deduzo que isso é uma coisa contra o senhor".

pas - foi habilidoso...

ja - ...contra alguém de muita importância da globo, quem sabe contra o senhor próprio. ele disse [imposta a voz]: "o senhor não faz nada,o senhor volta para trabalhar. já estou com as informações necessárias". sabia que ele era uma pessoa solidária, mas não sabia que era tão solidário. depois,eu soube pelo vitório, uma espécie de secretário particular dele, que ele saiu, pegou um jatinho e foi para brasília, exclusivamente para isso. resumo da história, falou com o presidente presidente joão figueiredo, dois dias depois chega na tevê um cara levando tudo, minhas fotos, o texto batido à máquina. botamos tudo na panela do bigode [é o cozinheiro da globo, explica a assessora] e tacamos fogo, acabou a coisa toda. só tenho reconhecimento por esses caras.