quarta-feira, abril 22, 2009

todo dia era dia de índio 2

o "jornal do brasil" me pediu um texto sobre os 50 anos de carreira daquele cara lá, o fatídico, e o que saiu foi isto aqui (publicado no domingo, 19, dia do índio e do aniversário do cara) (eu sugeri o título "todo dia era dia de índio", mas acho que não coube):


Os 50 anos de carreira de Roberto Carlos

Pedro Alexandre Sanches, Jornalista, JB Online

RIO - Roberto Carlos é um índio. Você há de estranhar essa minha afirmação, mas, eu digo e repito, e não é só pelo fato de ele ter nascido em 19 de abril, Dia do Índio, três dias antes do aniversário do descobrimento do Brasil. Nem tive tempo (ou presença de espírito) para colocar isso literalmente no papel em meu livro Como dois e dois são cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa), mas foi nessa época, de tanto olhar a clássica imagem de seu rosto tristíssimo na capa do LP de 1972, que comecei vagarosamente a me dar conta de que Roberto Carlos era – e é – um índio.

Não estou tentando dizer que ele seja um tupi, um guarani, um bororó ou um botocudo. Quando o defino como “índio”, quero dizer (e isso consegui escrever no livro, ufa) que RC é o brasileiro por excelência, o brasileiro original e essencial. Tem a expressão triste e massacrada, a docilidade submissa e (novamente) massacrada de todo brasileiro médio, seja índio, negro ou branco. E por isso tanta gente gosta tanto dele. Porque se identifica. E por isso mesmo tanta gente detesta tanto os caracóis vira-latas dos cabelos dele. Porque se identifica.

Ainda aqui você me estranhará. Brasileiríssimo, um cara que quis copiar o matuto Elvis Presley? Um sujeito que trouxe para cá, acaipirado, o yeah yeah yeah dos quatro manés de Liverpool? Pois é, mas o que haveria de novo (ou de velho) nisso? Carmen Miranda não foi interpretar latinas subalternas em Hollywood? Mano Brown não preferia o cego Stevie Wonder ao assum preto Roberto Carlos? Tecneiros de rave e roqueiros "indie" paulistanos não desprezam Chico Science enquanto se juram nascidos na Grã-Bretanha?

Em outros termos, a rejeição à própria origem não é (ou foi) um de nossos trágicos traços distintivos nestes 50 anos de reinado do capixaba do Itapemirim (percebe os nomes indígenas?), tempos de ditadura e tal e coisa?

Minha hipótese é de que, sim, e não é por outra razão, que RC passou tanto tempo disfarçando brasilidades atrás de iê-iê-iês, baladas à Tony Bennett, hinos gospel. E conquistou fãs suburbanos sulistas com os primeiros, românticos interioranos nortistas e nordestinos com os segundos, católicos e evangélicos e candomblezeiros com os terceiros. Enquanto isso, em Gotham City, uns e outros ficaram disfarçando não gostar de seus boleros e assoviando só no chuveiro seus temas de motel, tal qual Waldick Soriano dizia acontecer com socialites que volta e meia apareciam em seus shows. De repente, estava todo mundo gostando de RC, os que admitiam e os que nem às paredes confessavam. De repente, estava todo mundo gostando de si mesmo, sem nem perceber.

Nesse balanço, RC dominou corpos, corações e mercados, ao sabor de cantos indígenas como Quero que vá tudo pro inferno, As curvas da estrada de Santos, Amada amante, Além do horizonte, Amigo, As baleias, Caminhoneiro, Amazônia... Isso sem falar dos sinais de fumaça emitidos por seu parceiro sioux, ou apache, ou nhambiquara, o extraordinário Erasmo Carlos.

Tento afirmar que RC é um mar de rosas? Não, claro que não. Ele também é acomodado, inerte, moralista, mimado, autoritário, censor. Nada disso é legal, mas como condená-lo à forca ou ao degredo, se nós também somos tudo isso? Afinal, Roberto Carlos é eu e você. E nós somos o índio Roberto Carlos.

Pedro Alexandre Sanches é repórter da revista Carta capital e escreveu o livro Como dois e dois são cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004)